Por Hugo Fernandes Matias e Kenarik Boujikian
O ano de 2018 foi paradigmático para a tutela coletiva judicial do direito à liberdade, com importantes decisões do Supremo Tribunal Federal proferidas no habeas corpus coletivo 143.641/SP, que tratou do direito à convivência familiar de mulheres adultas e adolescentes com seus filhos, e no habeas corpus coletivo 143.988/ES, que cuidou do tema da superlotação em unidades de adolescentes, o que se deu após o reconhecimento do estado de coisas inconstitucional do sistema prisional, em 2015, no julgamento da ADPF 347.
Os tribunais passaram a olhar com maior entusiasmo para a possibilidade de proteção coletiva do direito à liberdade através dos habeas corpus coletivos, com multiplicação das decisões favoráveis no âmbito superior [1] e nos tribunais estaduais [2].
A pandemia da Covid-19 fez com que o mundo parasse para refletir sobre medidas destinadas à manutenção do bem mais valioso, a vida. Isso, como ensina Agamben [3], diante de um estado real e permanente de exceção, sobretudo na temática do encarceramento e morte de pessoas no Brasil.
O Estado brasileiro tem obrigação, nos termos constitucionais e perante a comunidade internacional, de adotar todas as medidas administrativas, judiciais e legislativas para a promoção dos direitos à vida e saúde da população brasileira. Nesse sentido, no campo do Poder Judiciário, temos a Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça, de março de 2020, que recebeu elogios de órgãos internacionais como a Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH) [4] e de parcela significativa de personagens ligados à promoção de direitos humanos no país [5].
Recentemente, no campo da jurisdição, tivemos decisões importantes para a tutela coletiva da liberdade, proferidas pelo Superior Tribunal de Justiça, e destacaremos três, provocadas pela Defensoria Pública.
A primeira consistiu em liminar em habeas corpus para presos idosos do Rio de Janeiro, deferida por decisão do ministro Nefi Cordeiro, nos autos do HC 568.752/RJ, impetrado pela DPRJ; a segunda decisão determinou o cumprimento de prisão civil por débito de alimentos em regime domiciliar, concedida aos vulneráveis do estado do Ceará, no habeas corpus coletivo nº 568.021/CE, proposto pela DPCE; e a terceira foi prolatada no HC Coletivo 568.693/ES, que tratou da liberdade para presos que foram mantidos encarcerados pelo não recolhimento da fiança, impetrado pela DPES.
Agora, um registro antes de avançarmos: para além da própria decisão de reflexos coletivos, os tribunais superiores potencializaram os efeitos dos habeas corpus coletivos como importantes instrumentos para democratização do acesso à tutela jurisdicional, estendendo os efeitos de suas decisões para outros casos semelhantes, o que ocorre desde a extensão da liminar nos autos do HC 143.988/ES e como se deu recentemente nos processos relativos a Ceará e Espírito Santo, cujas decisões foram ampliadas para todo o país, após provocação da Defensoria da União [6].
O que se comprovou com os avanços recentes da tutela coletiva no campo penal é que os habeas corpus coletivos são fundamentais para suprir o déficit de acesso à Justiça para os vulneráveis, haja vista a carência de Defensorias Públicas em muitas comarcas. Além disso, mostrou-se essencial para a diminuição do número de processos individuais apresentados ao Poder Judiciário, permitindo a decisão em um único processo, ao invés de termos milhares de ações. E, ainda, reforçou o sentimento de justiça e igualdade, com a atuação do Estado-juiz, ofertando uniformidade de decisões.
No sistema socioeducativo, as Defensorias Públicas têm obtido êxito em relação a suspensão de medidas em meio aberto, semiliberdade e, em alguns casos, a suspensão de mandados de busca e apreensão, por vezes fazendo uso da modalidade coletiva do remédio constitucional para a tutela da liberdade [7].
Vivemos um tempo de excepcionalidade jamais imaginado, que está a clamar por medidas que estejam à altura dos acontecimentos. É o que se tem verificado em países da Europa, como Portugal [8], do Oriente Médio e África, como Irã [9], Marrocos [10] e Burkina Faso [11], e até mesmo da nossa América Latina, como na Colômbia [12] e no Chile [13]. Em todos esses países foram adotadas medidas para diminuição das populações carcerárias a fim de promover os direitos fundamentais à vida e saúde.
No Brasil, há insuficiência de insumos básicos e controle sanitário em unidades prisionais, com casos de racionamento de água [14] e dificuldades de acesso a profissionais de saúde. Faltam EPIs para trabalhadoras e trabalhadores do sistema, especialmente para que agentes prisionais possam se proteger da Covid-19. O Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura apontou para a falta de acesso a água e sabão em locais de encarceramento de pessoas. Não há sequer previsão mínima de testagem de internos [15].
Todas as pessoas carregam consigo o atributo da dignidade humana e é inaceitável a postura excludente dos direitos fundamentais da população do sistema prisional e socioeducativo, seja pela ação ou pela omissão. E não se pode esquecer que ao redor dessas pessoas temos seus familiares, agentes prisionais e socioeducativos, além das equipes técnicas que acabam por se colocar em situação de vulnerabilidade [16], com risco de contraírem ou transmitirem a Covid-19, potencializando a difusão da doença em nosso país. Não se trata de preocupação em abstrato, pessoas estão sendo contaminadas e morrendo em razão da Covid-19 no sistema prisional brasileiro, presos e agentes [17].
Num momento da história em que todas e todos somos vulneráveis, urge a adoção de providências para manutenção da vida, da saúde e da dignidade da pessoa humana como ponto central do nosso ordenamento jurídico, afastando, assim, mais um surgimento de necropoder [18] enraizado na Covid-19.
Um dos caminhos para a adoção de medidas sanitárias no sistema prisional e socioeducativo brasileiro perpassa, obrigatoriamente, pelo manejo do habeas corpus coletivo em todas as esferas do Poder Judiciário, sendo sua admissão e processamento sinônimo de celeridade e economia de recursos e, sobretudo, essenciais para a saúde e vida da sociedade brasileira.
Está nas mãos do Poder Judiciário a efetividade do que chamamos Justiça, no patamar ético da dignidade humana erigida na Constituição brasileira como princípio fundante. Esperamos que saibam fazê-lo com a coragem e a sabedoria necessárias às mulheres e aos homens públicos.
[1] Conferir: <https://www.conjur.com.br/2019-jul-04/ministro-hc-garantir-banho-soldiario-presos-sp>. Acesso em 19 de abril de 2020.
[2] Conferir: <https://seculodiario.com.br/public/jornal/materia/tjes-ordena-que-todos-os-presos-tenham-duas-horas-de-banho-de-sol>, <https://www.conjur.com.br/2019-mai-11/tj-rs-concede-hc-proibindo-presos-fiquem-detidos-viaturas> e <https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/hc-coletivo-ordena-domiciliar-devedores-alimentos-pr>. Acesso em 19 de abril de 2020.
[3] Agamben, Giorgio. 1942 – Estado de exceção. Tradução de Iraci D. Poleti. – São Paulo: Boitempo, 2004 (Estado de sítio).
[4] Conferir: <https://www.conjur.com.br/2020-mar-26/cidh-aprova-recomendacao-cnj-prisoes-durante-pandemia>. Acesso em 19 de abril de 2020.
[5] Conferir nota de apoio de mais de 70 entidades disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-11/70-entidades-apoiam-recomendacao-62-cnj>. Acesso em 19 de abril de 2020.
[6] Sobre a atuação da DPU como custus vulnerabilis, conferir: <https://www.conjur.com.br/2020-abr-06/stj-admite-defensoria-custos-vulnerabilis-penal:. Acesso em 19 de abril de 2020.
[7] A DP/RJ obteve êxito em HC Coletivo para suspensão de mandados de busca e apreensão conforme: <https://www.jornalterceiravia.com.br/2020/04/02/defensoria-publica-obtem-na-justica-suspensao-de-busca-e-apreensao-de-menores-infratores/>. Acesso em 19 de abril de 2020.
[8] Disponível em: <https://www.publico.pt/2020/04/10/politica/noticia/covid19-presidente-salienta-indultos-nao-aplicam-presos-homicidio-pedofilia-1911831> Acesso em 19 de abril de 2020.
[9] Conferir: <https://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/efe/2020/03/24/com-1934-mortos-pela-covid-19-ira-estende-liberdade-provisoria-a-presos.htm > Acesso em 19 de abril de 2020.
[10] Conferir: <https://www.saudemais.tv/noticia/11331-covid-19-marrocos-concede-perdao-a-mais-de-5-000-presos-como-medida-preventiva >. Acesso em 19 de abril de 2020.
[11] Conferir: <https://www.dw.com/pt-002/covid-19-17-mil-presos-recebem-indulto-no-burkina-faso/a-53004198>. Acesso em 19 de abril de 2020.
[12] Conferir: <https://www.metropoles.com/mundo/covid-19-4-mil-detentos-vao-para-prisao-domiciliar-na-colombia>. Acesso em 19 de abril de 2020.
[13] Disponível em: <http://www.rfi.fr/br/geral/20200415-covid-19-nas-pris%C3%B5es-chile-aumenta-indultos-e-fran%C3%A7a-tem-menos-10-mil-presos-em-1-m%C3%AAs> Acesso em 19 de abril de 2020.
[14] O CNJ pediu apuração em relação a racionamento de água em Minas Gerais: <https://www.cnj.jus.br/cnj-pede-apuracao-sobre-racionamento-de-agua-em-presidios-de-mg/> Acesso em 19 de abril de 2020.
[15] Dados publicados pelo Observatório sobre o Covid-19 nas prisões. Disponível no instagram @ infovírus. Acesso em 19 de abril de 2020.
[16] Os riscos decorrentes da atuação como força de segurança foram reconhecidos pelo Ministério da Saúde para fins de vacinação contra a influenza, conforme: <https://www.saude.gov.br/noticias/agencia-saude/45380-nova-etapa-de-vacinacao-contra-gripe-comeca-e-inclui-forcas-de-seguranca-e-salvamento>. Acesso em 19 de abril de 2020.
[17] Conferir: <https://noticias.uol.com.br/saude/ultimas-noticias/redacao/2020/04/16/rj-quatro-agentes-penitenciarios-contaminados-e-um-morto-por-coronavirus.htm>, <https://www.correiobraziliense.com.br/app/noticia/cidades/2020/04/17/interna_cidadesdf,845822/papuda-tem-67-casos-de-coronavirus-entre-agentes-e-internos.shtml> e <https://saude.estadao.com.br/noticias/geral,rio-confirma-primeiro-preso-morto-por-covid-19,70003274570> Acesso em 19 de abril de 2020.
[18] Nas palavras de Mbembe, “a expressão máxima da soberania reside, em grande medida, no poder e na capacidade de ditar quem pode morrer e quem deve viver”. “Necropolítica, biopoder, soberania, estado de exceção, política de morte”. 3ª edição, São Paulo, 2018.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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