Estar ao lado do ocupante do Planalto é jogar a favor da fome, da doença e da morte
Ao comentar reportagem sobre o avanço da fome no país, a jornalista Natuza Nery, da GloboNews, usou expressão que muito nos auxilia a compreender o tamanho do buraco em que o país está enfiado. Natuza se referiu às autoridades que, diante da crise, em tendo o poder-dever de tomar providências optam por se omitir como “sócios da tragédia”.
Ela não se referia tão somente ao presidente da república ou ao ministro da economia, Paulo Guedes, que não podem ser acusados apenas de omissão, pois, mais do que omissos, agiram ativamente para afogar o Brasil em sangue e lágrimas.
A jornalista se referia aos congressistas —especialmente aos presidentes da câmara e do Senado, Arthur Lira e Rodrigo Pacheco— mas também aos empresários que um pouco antes aplaudiram efusivamente mais uma sessão de falas ofensivas, golpistas e tresloucadas do ocupante-em-chefe, Jair Bolsonaro.
Mas quero acrescentar aqui mais um exemplo deste arranjo societário em torno do ódio e do sofrimento dos pobres e que, desafortunadamente, é tão compatível com o que se chama de bolsonarismo.
Falo aqui da decisão do STJ (Superior Tribunal de Justiça) sobre o rol de procedimentos médicos estabelecido pela ANS (Agência Nacional de Saúde) e que todas as operadoras de planos de saúdes estariam obrigadas a disponibilizar a seus usuários.
Para quem não pôde acompanhar o debate, o Superior Tribunal de Justiça foi instado a decidir sobre se as operadoras de plano de saúde poderiam negar tratamento a pacientes cujas enfermidades não estivessem taxativa e expressamente contidas no rol, ou se a lista era meramente exemplificativa.
Na decisão por maioria, a 2ª Seção do Superior Tribunal de Justiça considerou o rol como taxativo e, portanto, que os planos de saúde, via de regra, não estavam obrigados a cobrir procedimentos não contidos na lista da ANS.
Na justificativa dos votos chama a atenção a preocupação com a saúde financeira dos planos de saúde, com a previsibilidade contratual, com a segurança jurídica, com a estabilidade do sistema. Do ponto de vista argumentativo, a decisão se escora ideologicamente em todo o receituário neoliberal que leva à crença de que, no seio da selvageria que tomou conta do Brasil, o tal mercado irá apresentar de modo espontâneo a solução para conflitos que, paradoxalmente, só existem no e por causa do mercado.
Só o mais alto grau de entorpecimento ideológico pode levar alguém a sinceramente acreditar que alguém terá condições materiais e até mesmo emocionais de negociar com operadoras de planos de saúde. A mesma conversa sobre os benefícios do laissez-faire já ouvimos antes, como no caso das bagagens despachadas em aviões e, ainda pior, quando do desmonte do sistema de proteção social do trabalho.
A decisão do Superior Tribunal de Justiça relega ao abandono um sem-número de famílias que poderão ficar sem atendimento médico quando mais precisarem, e sem um governo minimamente decente para impor limites à sanha predatória do poder econômico.
E a perspectiva de resistência a este estado de coisas fica ainda mais distante tendo em vista a destruição planejada de sindicatos, a perseguição e criminalização de movimentos sociais e ativistas e o domínio de um pensamento único que, por mais fracassado que possa ser, ainda permanece servindo de fundamento ideológico até mesmo para decisões judiciais.
Esta é, de fato, uma tragédia de vários sócios e cuja responsabilidade não pode ser colocada na conta da técnica. São 33 milhões de pessoas passando fome e metade do país em insegurança alimentar. Sabe-se que parte desta fome vem do desmonte dos programas de segurança alimentar promovido desde o primeiro dia do atual governo.
São mais de 660 mil mortos pela Covid-19, além de aproximadamente 12 milhões de desempregados e outros tantos em situação precária. Qualquer apoio, aplauso ou silêncio diante desta desgraça que, na falta de nome mais apropriado chamamos de governo, está longe de ser uma escolha democrática ou compatível com os interesses do povo brasileiro. Hoje, estar com Bolsonaro ou próximo daquilo que ele representa é alternativa apenas para quem gosta da fome, da doença e da morte.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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