Por Maurício Meireles
Uma das principais criminalistas em atividade no país, Dora Cavalcanti também milita em causas ligada à Justiça
Luan Araújo ainda se lembra do primeiro encontro com a advogada Dora Cavalcanti, numa delegacia de São Paulo. Ele estava lá para depor sobre um episódio que acontecera momentos antes: a deputada bolsonarista Carla Zambelli (PL-SP) o tinha perseguido com uma arma em punho em uma rua de São Paulo, na véspera do segundo turno da eleição presidencial.
“A Dora fez um trabalho de me tranquilizar, mostrar que eu era a vítima e não um criminoso”, diz ele.
Cavalcanti é uma das maiores criminalistas em atividade no país. É conhecida, em parte, pela atuação em casos rumorosos e os clientes famosos —mas, fora isso, também levanta a bandeira de uma série de causas associadas à esquerda. Entre elas, o desarmamento.
“Queriam inverter a narrativa e fazer o Luan de agressor. Mostramos que a deputada só tropeçou, que ela jamais foi vítima de uma agressão física”, lembra Cavalcanti. “Esse caso foi importante para as pessoas verem, às vésperas da eleição, o caminho que estávamos tomando nessa pauta do acesso a armas.”
A atuação no campo dos direitos humanos –em temas como encarceramento em massa e o racismo do sistema criminal– tem feito o nome dela surgir em listas de mulheres que poderiam substituir a ministra Rosa Weber, do STF (Supremo Tribunal Federal), que se aposenta no fim deste mês.
Na última década sobretudo, ela se tornou conhecida pelo público mais amplo como uma voz do garantismo penal no debate público –defendendo direitos dos investigados e réus diante de ações do Ministério Público e do Judiciário.
Quem pensou em Lava Jato está correto. Ela foi a defensora da Odebrecht e de executivos da empresa em diferentes fases do escândalo de corrupção —na fase do inquérito, por exemplo, advogou para o próprio Marcelo Odebrecht. Acabou se tornando uma das principais críticas dos procuradores da força-tarefa e do ex-juiz Sergio Moro.
“Foi um momento solitário, em que apontamos ilegalidades que acabaram prevalecendo por um determinado período, como a manipulação de competência, o indeferimento repetido de tudo o que fosse pedido pela defesa, uma deslealdade na produção de provas”, afirma ela.
Hoje, a defensora é integrante do Prerrogativas, grupo de profissionais progressistas do direito, criado como reação à Lava Jato. E parece observar com uma sensação de triunfo os reveses da operação no Judiciário e na opinião pública.
“Ninguém inventou ainda método melhor de solução de conflitos que não seja a observância ao devido processo legal”, afirma. “Queremos mecanismos de combate à corrupção, mas isso não pode se traduzir em uma violação de todas as regras.”
A Lava Jato foi só um dos episódios que colocou a advogada contra a corrente da opinião pública. Ela também atuou na defesa de réus das operações Satiagraha e Castelo de Areia, entre outros casos.
“As primeiras notícias sobre um caso raramente coincidem com a complexidade por trás das ações humanas. Ajudar nessa travessia turbulenta, da visão pré-concebida até como um episódio se explica por dentro é um papel que gosto de desempenhar”, diz ela, reafirmando a crença no direito de defesa de qualquer um.
“A clareza que tenho da natureza essencial do direito de defesa me dá tranquilidade para atuar em todo tipo de causa com o olhar voltado para o respeito aos direitos e garantias inscritos em pedra na nossa Constituição.”
Recentemente, chegou a defender o empresário Thiago Brennand, que à época tinha sido filmado agredindo uma mulher em uma academia de São Paulo.
Depois, mais de dez mulheres relataram ter sido vítimas dele em casos de agressões sexuais, como estupro, violência doméstica e cárcere privado.
O escritório de Cavalcanti deixou o caso dias depois de as denúncias virem à tona, mas afirmou em nota que a saída não tinha a ver com esses relatos. Quando é questionada sobre a atuação em casos do tipo, ela reafirma seu princípio de que todos têm direito à defesa e diz que não deixa de contribuir para a causa das mulheres por advogar para homens.
De todo modo, os casos de colarinho branco ou clientes poderosos não contam toda a carreira de Dora. Um ativismo pelos direitos humanos, sobretudo no campo da justiça criminal, é tão presente na vida dela quanto os casos televisivos.
Hoje, por exemplo, boa parte do tempo da advogada é dedicado ao Innocence Project Brasil, projeto internacional para libertar da prisão pessoas condenadas injustamente —em sua maioria pretas e pardas.
Cavalcanti fundou e dirige a iniciativa no país. Uma das principais bandeiras do projeto tem sido a questão do reconhecimento de suspeitos, que costuma levar inocentes à prisão. Junto a isso, vem a defesa do uso mais frequente de exames de DNA na elucidação de crimes.
“O DNA está no início do Innocence Project nos Estados Unidos”, afirma Cavalcanti. “Aqui, infelizmente, na maioria dos crimes violentos, você pode até ter o material de DNA colhido, mas nem a defesa nem a acusação se lembram de usá-lo. Porque temos uma tradição da prova testemunhal.”
Em partes por causa do trabalho do Innocence Project, que atuou num processo sobre o assunto, o STJ (Superior Tribunal de Justiça) determinou regras para o uso do reconhecimento de suspeitos —e também determinou que esse tipo de evidência não pode justificar por si só uma condenação criminal.
Cavalcanti diz que o desejo de atuar em prol dos direitos humanos veio cedo na carreira e que as visitas a penitenciárias ajudaram nessa tomada de consciência. Logo viu as condições degradantes nas prisões e também a presença massiva de pessoas negras no sistema prisional.
“Impossível ser criminalista sem, de vez em quando, colocar o pé numa penitenciária. Você precisa lembrar como é o som da tranca, o cheiro da quentinha, a rapidez com que uma pessoa se descaracteriza dentro do sistema. Como ela emagrece, perde o brilho no olhar…”
Essas primeiras visitas aconteceram já no início da carreira. Cavalcanti começou nos anos 1990, no escritório do criminalista e ex-ministro da Justiça Márcio Thomaz Bastos, morto em 2014. Dora chegou a virar sócia do escritório dois anos depois de ter entrado lá como estagiária.
“A área criminal trata do bem maior, que é a liberdade. Você não tem uma causa criminal que não seja importante. Tudo diz respeito a essa essência fundamental, o direito de ir e vir.”
Com Thomaz Bastos e outros 34 advogados, ela também foi uma das fundadoras do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa). “Queríamos mostrar que o direito de defesa não é um aliado da impunidade”, afirma ela.
De perfil discreto, resolveu concorrer à presidência da OAB-SP em 2021. Fez uma campanha com forte enfoque na defesa da diversidade de gênero e raça na instituição —foi derrotada, mas conseguiu pautar o assunto dentro da ordem.
“Houve a possibilidade de ela se juntar à chapa que no fim foi a vencedora. Isso daria um lugar de destaque a ela, mas ela teria que descumprir o combinado com o grupo do qual eu faço parte, de pessoas negras. E ela não fez isso”, lembra Lazara Carvalho, que concorreu ao lado de Dora, como vice. “Era algo simples, o dinheiro da campanha era dela. Mas, mesmo quando ela poderia ter tido um ganho pessoal, ela optou pela retidão.”
Quando não está envolvida no trabalho ou nessas causas, Dora Cavalcanti se distrai como pode. Diz ter uma “alma palmeirense desesperada” (é neta de um dos fundadores do clube). É leitora dedicada. Agora, tem na cabeceira o romance “Reparação”, de Ian McEwan —que conta justamente a história de uma acusação injusta de efeitos catastróficos.
Publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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