Por Alberto Zacharias Toron e Neuler Mendes Jr.
Como foi noticiado em junho passado, a 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal, por unanimidade, passou a admitir sustentações orais em agravos em ações originárias, divergindo em parte do entendimento da 1ª Turma, que reiteradamente negou pedidos de sustentação oral em agravos fundamentados no artigo 7º, § 2º-B, da Lei nº 8.906/94, argumentando que o Regimento Interno do STF veda a sustentação em agravos (artigo 131, § 2º) e que isso tem força de Lei, supostamente mais específica e prevalente.
Divergiu “em parte”, porque apenas passou a admitir a sustentação em “ações originárias”, limitação que não está presente no artigo 7º, § 2º-B, da Lei nº 8.906/94, e porque o fundamento da decisão não foi expressamente jurídico, mas sim prático: “levando em consideração que são poucos os processos que têm sido levados às sessões presenciais da Turma, o colegiado autorizou o procedimento em relação às ações apresentadas diretamente na Corte” [1].
Muito embora a decisão da 2ª Turma seja um avanço que deva ser comemorado pela advocacia, o fato é que isso ainda não resolve o problema e o Conselho Federal da OAB precisa continuar brigando pelo cumprimento da lei.
Uma via possível, e já anunciada pelo presidente do CFOAB, que já tem bom trâmite, é a proposição de PEC que fixará em definitivo o direito de sustentação oral em agravos, inclusive no STF.
Contudo, independentemente dela, o fato é que o entendimento da 1ª Turma sobre a suposta prevalência do Regimento Interno sobre a Lei Federal está equivocado, pois: (1) ignora a disposição constitucional que é expressa sobre o assunto e, pior, (2) parece ter interpretado erroneamente o conteúdo do precedente que utiliza como fundamento.
(1) Sobre o primeiro ponto, fixe-se, como adiantado, que o argumento utilizado pela 1ª Turma para negar a sustentação oral é o de que o RISTF tem força de Lei, veda a sustentação oral em agravo no seu artigo 131, § 2º, e que essa norma seria mais específica do que a do artigo 7º, § 2º-B, da Lei nº 8.906/94, por isso ela prevaleceria.
Já desde a perspectiva infraconstitucional seria possível questionar o entendimento, afinal não há qualquer elemento normativo ou especificidade presente no artigo 131, § 2º, do RISTF que não esteja presente também no artigo 7º, § 2º-B, da Lei nº 8.906/94, então são normas de igual especialidade. Como conflitam entre si, há de se aplicar o artigo 2º, § 1º, da Lindb, segundo o qual “a lei posterior revoga a anterior (…) quando seja com ela incompatível”. O artigo 7º, § 2º-B, da Lei nº 8.906/94 é a lei mais nova e deveria prevalecer.
Contudo, esse choque aparente não precisa ser solucionado por critério infraconstitucional, porque a própria Constituição já fixa, expressamente, critério diferente para solução de conflitos de normas dessa espécie: a prevalência da lei processual sobre a norma regimental.
De fato, o artigo 96, inciso I, alínea “a”, da CF/88 dispõe expressamente que “compete privativamente” “aos tribunais” “elaborar seus regimentos internos, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes”.
Atenção para a frase grifada: os tribunais devem elaborar os seus regimentos internos, insista-se, com observância das normas de processo e das garantias processuais das partes.
Se a lei processual mudou, é intuitivo que a regra regimental não pode sobreviver.
Seria difícil negar que o cabimento da sustentação oral é matéria de direito processual, mas, para não haver dúvida, veja-se que o tema recebe detalhada disciplina no artigo 937 do Código de Processo Civil, o que atesta a sua natureza processual.
Assim, a solução do aparente conflito de normas entre o artigo 131, § 2º, do RISTF e o artigo 7º, § 2º-B, da Lei nº 8.906/94 não se dá apenas pelo critério da especialidade, como tem feito a 1ª Turma do STF, mas antes pelo superior e constitucional critério da prevalência da lei processual.
Então, o artigo 96, inciso I, alínea ‘a’, da CF/88 tem sido solenemente ignorado.
(2) Mas isso não é tudo. Além disso, como dito, a 1ª Turma do STF parece ter interpretado equivocadamente o conteúdo do precedente que usa como fundamento. Veja-se:
Ao indeferir o pedido de sustentação oral do CFOAB, enquanto amicus curiae, no julgamento do AgRg na RCL nº 61.944, o presidente da 1ª Turma, ministro Alexandre de Moraes, disse que o entendimento já tinha sido pacificado no julgamento do AgRg na Ação Originária nº 2.666.
No aludido julgamento, no que foi acompanhado pelos pares, ele argumentou o seguinte: “entendo, como já definido anteriormente nos embargos infringentes, pelo Plenário, o caráter legal e de norma especial do Regimento Interno do Supremo Tribunal Federal, que não prevê, em casos de agravo, a sustentação oral” [2] (grifo acrescido).
Nos votos escritos se lê manifestação no mesmo sentido do ministro Luiz Fux: “Eu teria objeção formal no sentido de que, no momento em que o regimento foi editado, tínhamos competência legislativa. Na ação penal, o grande fundamento do cabimento dos embargos que o ministro Celso trouxe à tona foi exatamente no sentido de que o regimento era a lei especial a par da lei geral. Queria apenas suscitar que não cabe sustentação oral na turma em agravo regimental” (grifo acrescido).
Apesar de o precedente não ter sido nominalmente especificado pelos ministros, a referência parece dizer respeito ao AgR-ED-EDv-AgR-ED no Agravo de Instrumento nº 727.503, pois ali (1) se discutia justamente a relação entre as normas regimentais e legais sobre os embargos de divergência, (2) a relatoria foi do ministro Celso de Mello e (3) o julgamento foi pelo Plenário, em 10 de novembro de 2011.
Na análise desse precedente, entretanto, percebe-se, primeiro, que ali não se analisou conflito de normas e se deu prevalência ao regimento interno, dizendo ser ele mais específico, como tem sido dito nos julgados da 1ª Turma, pois ali a questão ali era a validade da edição da norma e a sua força na hierarquia normativa, chegando-se a conclusão de que o RISTF tem força de lei, mas não foi dito que se trata de “de norma especial” ou “lei especial a par da lei geral”.
É que a relação entre as normas legais e regimentais tratada ali não era uma relação de contrariedade entre uma e outra, mas sim de complementariedade: como mencionado pelos próprios ministros, a discussão era sobre os embargos de divergência que, como ensina o ministro Luiz Fux, “denomina-os a doutrina de ‘embargos de divergência regimental’ em face de o seu procedimento encontrar-se previsto no regimento interno desses tribunais” (Curso de Direito Processual Civil. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2023, p. 1.038, e-book).
Ademais, a inexistência de relação de contrariedade entre normas naquele caso é atestada pela cirurgicamente precisa intervenção do ministro Marco Aurélio: “o próprio parágrafo único do artigo 546 do Código de Processo Civil, que disciplina os embargos, remete a disciplina ao Regimento Interno” (p. 13 do acórdão).
Se a própria lei processual analisada naquele caso remete a disciplina ao regimento interno, é claro que ali não se discutia relação de contrariedade entre uma norma e outra que demandasse e autorizasse a aplicação do princípio da especialidade, então ali não se afirmou que o regimento interno prevalece sobre a lei processual, como tem sido dito.
A situação, portanto, era completamente distinta do debate sobre o cabimento da sustentação oral em agravo no STF, pois neste caso inegavelmente há relação de contrariedade entre as normas, um conflito e não uma complementação: tanto há conflito que o Supremo expressamente aplica o critério solucionador de conflitos aparentes de normas da especialidade.
Há mais
A análise do precedente revela que na verdade ali foi afirmado o oposto, isto é, justamente a submissão do regimento do STF à lei processual!
É que, logo depois de dizer que “o Supremo Tribunal Federal, no regime constitucional anterior, dispunha, excepcionalmente, de competência para estabelecer, ele próprio, normas de direito processual em seu regimento interno”, o ministro Celso de Mello aponta que “com a superveniência da Constituição promulgada em 1988, no entanto, o STF perdeu essa extraordinária atribuição normativa, passando a submeter-se, como os demais tribunais judiciários, em matéria processual, ao domínio normativo da lei em sentido formal” (p. 12 do acórdão).
Assim, apesar de ali ter se decidido que as normas regimentais têm “força e eficácia de lei”, porquanto validamente editadas, (1) não se afirmou que em um conflito de norma processual com norma regimental esta deve prevalecer por ser mais específica e (2) se disse expressamente que com a CF/88 o STF passou “a submeter-se, como os demais tribunais judiciários, em matéria processual, ao domínio normativo da lei em sentido formal”.
Então, insista-se, há de ser observada a atual regra do artigo 96, inciso I, alínea ‘a’, da CF/88.
Se não isto, estar-se-á dizendo que ainda hoje vige a excepcionalíssima competência legislativa do STF para tratar regimentalmente de direito processual, prevista na abolida Constituição de 1967, editada na ditadura militar, apesar de a Constituição democrática de 1988 expressamente dispor em sentido diametralmente oposto.
É claro que isto ninguém diz
E ainda que alguém sustentasse isso e ignorasse esse superior critério constitucional de solução do conflito aparente de normas regimental e processual, de qualquer modo, ainda que validamente editado o artigo 132, § 2º, do RISTF, ele só teve vigência até a edição nova lei em sentido contrário, dado que, como dito, “a lei posterior revoga a anterior (…) quando seja com ela incompatível” (artigo 2º, § 1º, Lindb) e a edição do artigo 7º, § 2º-B, da Lei nº 8.906/94 é posterior, portanto deve prevalecer.
Para concluir, vale apontar que o atual entendimento da 1ª Turma contraria o que o próprio STF já decidiu sobre o assunto em outras oportunidades:
Com o advento da CF de 1988, delimitou-se, de forma mais criteriosa, o campo de regulamentação das leis e o dos regimentos internos dos tribunais, cabendo a estes últimos o respeito à reserva de lei federal para a edição de regras de natureza processual (CF, art. 22, I), bem como às garantias processuais das partes, ‘dispondo sobre a competência e o funcionamento dos respectivos órgãos jurisdicionais e administrativos’ (CF, art. 96, I, a). São normas de direito processual as relativas às garantias do contraditório, do devido processo legal, dos poderes, direitos e ônus que constituem a relação processual, como também as normas que regulem os atos destinados a realizar a causa finalis da jurisdição. (…) (ADI nº 2.970, Rel. Min. Ellen Gracie, Plenário, DJ 12.05.2006).
Em matéria processual prevalece a lei, no que tange ao funcionamento dos tribunais o regimento interno prepondera. Constituição, artigo 5º, LIV e LV, e 96, I, a. Relevância jurídica da questão: precedente do STF e resolução do Senado. Razoabilidade da suspensão cautelar de norma que alterou a ordem dos julgamentos, que é deferida até o julgamento da ação direta (ADI nº 1.105-MC, Rel. Min. Paulo Brossard, Plenário, DJ 17.04.01).
Portanto, em face da atual Carta Magna, os tribunais têm amplo poder de dispor, em seus regimentos internos, sobre a competência de seus órgãos jurisdicionais, desde que respeitadas as regras de processo e os direitos processuais das partes (HC nº 74.190, Rel. Min. Moreira Alves, 1ª Turma, DJe 07.03.97).
Nessa linha, também vale mencionar que mesmo antes da edição da Lei nº 14.365/2022 — portanto, quando nem sequer existia norma expressa sobre o cabimento da sustentação oral em agravos —, no julgamento do AgRg no HC nº 164.593, DJe 09.06.20, pelo Plenário do STF, alguns ministros já votavam pela sua admissão em habeas corpus e apontavam:
(1) “inexiste óbice material à possibilidade de sustentações orais nos agravos regimentais em habeas corpus, visto que o sistema virtual viabilizou a sua generalização de modo a fortalecer o direito de defesa e o contraditório, sem fragilizar a necessária celeridade da prestação jurisdicional” (Min. Gilmar Mendes, p. 31 do acórdão);
(2) “O habeas corpus é de envergadura maior, voltado a preservar o direito de ir e vir. Se a decisão recorrida foi terminativa, em ação que normalmente viria ao Colegiado, entendo adequada a sustentação oral no agravo” (Min. Marco Aurélio, p. 33 do acórdão);
(3) “no caso de habeas corpus, remédio constitucional (CF, art. 5º, LXVIII) que tutela direito fundamental tão caro para a sociedade brasileira – a liberdade -, a sustentação oral é a expressão mais relevante de efetivação do postulado da ampla defesa (CF, art. 5º, LV), preceito de ordem constitucional hierarquicamente superior às normas regimentais, sobretudo porque o habeas corpus é o instrumento mais nobre que a Constituição Federal acolheu em seu bojo para a defesa dos direitos fundamentais” (Min. Dias Toffoli, p. 40 do acórdão).
Agora, com uma lei que expressamente o diz e com um dispositivo constitucional que dá prevalência a essa lei sobre a norma regimental, não há mais como negá-lo.
O Congresso — i.e., a Câmara dos Deputados e o Senado — elaborou, discutiu e aprovou, por meio de centenas de representantes legítimos da vontade da população, a norma do artigo 7º, § 2º-B, da Lei nº 8.906/94 e o presidente da República, também representante legítimo da vontade da população, sancionou-a. O STF deve aplicá-la, sobretudo porque o próprio texto constitucional o impõe.
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[1] Portal de notícias do Supremo Tribunal Federal. “2ª Turma do STF permite sustentações orais em recursos de ações originárias”. Disponível em: <https://noticias.stf.jus.br/postsnoticias/2a-turma-do-stf-permite-sustentacoes-orais-em-recursos-de-acoes-originarias/>. Acesso em 7 ago. 2024.
[2] Gravação audiovisual, realizada e disponibilizada no sítio eletrônico desse eg. STF, da sessão da col. Primeira Turma de 11 de novembro de 2022, às 1:23:27 da gravação. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=kXP8jZOiYuE&ab_channel=STF.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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