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Aspectos penais do novo coronavírus: sair de casa pode ser crime?

No último dia 30 de janeiro de 2020, a Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou, para além da situação de Emergência de Saúde Pública Internacional, o estado de pandemia do novo coronavírus (Covid-19), pois a doença infecciosa e contagiosa disseminou-se rapidamente ao redor do mundo.

Desde dezembro de 2019, o Covid-19 já se espalhou por cinco continentes e em mais de cento e oitenta e sete países; sendo que, em 26 de fevereiro de 2020, teve-se notícia do primeiro caso confirmado no Brasil.

Diante do cenário global, em 3 de fevereiro de 2020, o Ministério da Saúde encaminhou Anteprojeto de Lei à Presidência para adequar a legislação interna, coordenando as ações e os serviços do Sistema Único de Saúde (SUS), a fim de permitir uma atuação eficiente no enfrentamento da pandemia. Ato contínuo, o Projeto foi apresentado ao Congresso Nacional, o qual, após tramitação em regime de urgência, aprovou o Projeto, dando origem à Lei nº. 13.979, de 6 de fevereiro de 2020 (a qual já sofreu alterações pela Medida Provisória nº. 926, de 20 de março de 2020).

Esta lei dispõe, enfim, sobre as medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública – de importância internacional – decorrentes do coronavírus. Dentre suas determinações, o artigo 3º[1] define, exatamente, as medidas que as autoridades poderão adotar no âmbito de suas competências para enfrentamento do Covid-19, das quais se destacam: (i) isolamento[1], (ii) quarentena[2] e (iii) determinação de realização compulsória de: (a) exames médicos, (b) testes laboratoriais, (c) vacinação, (d) tratamentos médicos específicos, entre outros; além da (iv) restrição excepcional e temporária de entrada e saída do país e locomoção interestadual e intermunicipal por rodovias, portos ou aeroportos, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária.

Ato contínuo, em 11 de março de 2020, o Ministério da Saúde publicou a Portaria nº. 356, a fim de regulamentar e operacionalizar referida Lei. Além disso, em conjunto com o Ministério da Justiça e Segurança Pública, foi instituída a Portaria Interministerial nº. 5, publicada no último dia 17 de março, a qual, em dez artigos, dispõe sobre a compulsoriedade das medidas de enfrentamento da emergência de saúde pública previstas na Lei nº.13.979/2020.

Nesse sentido, a Portaria prevê que o descumprimento das medidas previstas no artigo 3º da Lei nº. 13.979/2020 acarretará a responsabilização civil, administrativa e penal dos agentes infratores.

Especificamente com relação às sanções penais, a Portaria, em seus artigos 4º e 5º, menciona que o descumprimento das medidas previstas na referida Lei[1] poderá sujeitar os infratores às sanções penais previstas nos artigos 268 e artigo 330 do Código Penal, isso se o fato não constituir crime mais grave.

Quer dizer, aquele indivíduo que descumprir as determinações de isolamento, quarentena ou realização compulsória de exames, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos, poderá responder pelo cometimento dos crimes de infração de medida sanitária preventiva (artigo 268, do Código Penal) ou desobediência (artigo 330, do Código Penal), cujas penas são, respectivamente, de detenção, de um mês a um ano; e de quinze dias a seis meses; prevendo-se, ainda, para ambos os delitos, o pagamento de multa.

No que tange ao isolamento, para que seja possível a responsabilização penal, é preciso que a pessoa afetada tenha sido comunicada, expressa e previamente, quanto à compulsoriedade da medida, conforme previsão do § 7º[1] do artigo 3º da Portaria nº. 356, de 11.3.2020, do Ministério da Saúde.

Com relação à realização compulsória de exames, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos, da mesma forma, a obrigatoriedade das medidas dependerá de prévia indicação médica ou de profissional de saúde, conforme previsto no artigo 6º[2] da já mencionada Portaria nº. 356. Portanto, mais uma vez, só estará sujeito à responsabilização criminal aquele a quem agente de saúde tenha expressamente indicado a necessidade de realização de exame, teste ou tratamento.

Também no que atina à quarentena, a compulsoriedade desta medida dependerá de prévio ato específico das autoridades competentes, nos termos do § 1º[3], do artigo 4º, da Portaria nº. 356.

Diante desta última recomendação, em 22.3.2020, o Governo do Estado de São Paulo, por meio do Decreto nº. 64.881, estatuiu quarentena, no período de 24 de março a 7 de abril de 2020, consistindo na restrição de atividades capazes de acelerar a possível contaminação ou propagação do coronavírus Covid-19. É bem possível que o prazo seja prorrogado. Outros Estados e Municípios adotaram datas diferentes para o término da quarentena, sendo que alguns não fixaram data e, ainda, há os que não restringiram o comércio (como alguns Municípios do MS e da BA, até a presente data).

Assim, suspendeu-se o atendimento presencial ao público em estabelecimentos comerciais e prestadores de serviços, especialmente em casas noturnas, “shopping centers”, galerias e estabelecimentos congêneres, academias e centros de ginástica, ressalvadas as atividades internas, bem como o consumo local em bares, restaurantes, padarias e supermercados, sem prejuízo dos serviços de entrega (“delivery”) e “drive thru”.

Por óbvio, manteve-se o pleno funcionamento dos estabelecimentos que tenham por objeto atividades essenciais, a saber: saúde, alimentação, abastecimento, segurança e serviços públicos indispensáveis ao atendimento das necessidades inadiáveis da comunidade, citando-se, dentre outros, telecomunicação, internet, serviços funerários e serviços postais.

O próprio artigo 3º do Decreto estadual dispõe que a Secretaria da Segurança Pública atentará, em caso de descumprimento das medidas instituídas, ao disposto nos artigos 268 e 330 do Código Penal, se a infração não constituir crime mais grave. Recordando aí, a possibilidade, também, do cometimento do crime de epidemia, punindo com pena de dez a quinze anos (em dobro, se houver morte) aquele que “causar epidemia, mediante a propagação de germes patogênicos”, com intenção de gerar tal resultado ou mesmo por assunção dos riscos de gerá-lo. Crime, este, punido também na modalidade culposa, isto é, no caso em que o sujeito causa epidemia, por violação de dever de cuidado (seja imprudência, imperícia ou negligência). Nesta hipótese, a pena será de um a dois anos (ou em dobro se resultar morte).

Ademais, no artigo 4º, recomenda-se que a circulação de pessoas no âmbito do Estado de São Paulo se limite às necessidades imediatas de alimentação, cuidados de saúde e exercícios de atividades essenciais.

Em suma, as medidas de isolamento e realização compulsória de exames, testes laboratoriais e tratamentos médicos específicos referem-se a pacientes já contaminados pelo Covid-19, que tenham suspeita de contágio ou que apresentem sintomas da doença. Trata-se, de fato, de medida obrigatória e necessária, conforme previsto no artigo 196 da Constituição Federal, devendo a saúde ser assegurada e priorizada. Se descumpridas as determinações das autoridades médicas e sanitárias, o descumprimento por parte deste grupo terá o condão de gerar responsabilização criminal, afinal estar-se-á colocando o bem jurídico “saúde pública” em perigo concreto.

Nesses casos, a autoridade policial poderá lavrar termo circunstanciado por infração de menor potencial ofensivo em face do agente que for surpreendido na prática dos crimes previstos nos artigos 268 e 330, ambos do Código Penal.  Imperioso destacar que conforme determina o artigo 7º da supracitada Portaria, não será imposta prisão a quem assinar termo de compromisso de comparecer aos atos do processo e de não descumprir as medidas estabelecidas no artigo 3º da Lei nº. 13.979/2020, exatamente conforme prevê a própria Lei que dispõe a respeito do procedimento das infrações de menor potencial ofensivo (parágrafo único do artigo 69 da Lei nº. 9.099/95).

Ademais, o artigo 8º da Portaria prevê que a autoridade policial poderá encaminhar as pessoas à sua residência ou estabelecimento hospitalar para cumprimento das medidas estabelecidas no já mencionado artigo 3º da Lei nº. 13.979/2020, conforme determinação das autoridades sanitárias.

Agora, para as pessoas que estejam assintomáticas e sem suspeita e indícios de contágio, o ato de não sair de casa e isolar-se é recomendação. Portanto, neste caso, não há falar-se em descumprimento de medida apta a gerar responsabilização criminal.

A propósito, não é demais recordar a plena vigência dos direitos e garantias previstos na Constituição Federal. A situação é delicada, é de calamidade, mas não de restrição indevida de direitos. A intervenção penal é um instrumento que está à disposição das autoridades públicas, mas deve ser utilizada dentro dos seus limites materiais e constitucionais.

Fato é que, munida de informação técnica e de qualidade, a sociedade está compreendendo a necessidade do isolamento social voluntário a fim de contribuir com o enfrentamento da pandemia, independentemente de haver sintomas e da própria ameaça penal.

A persecução penal se destina aqueles que geram risco concreto à saúde pública por meio de descumprimento a medidas sanitárias prévia e expressamente impostas. O momento é excepcional, assim como a aplicação do Direito Penal. Fiquemos em casa! Superar a velocidade de contágio significa atitude nobre e solidária, apta a evitar o colapso do sistema de saúde e a preservar vidas, independente de cor, credo ou classe social. É momento de união, seja entre brasileiros, seja entre as demais nações; o preconceito e a discriminação, a xenofobia, o racismo, estes também são passíveis de caracterização de conduta criminosa a qualquer tempo.


[1] Art. 3º Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional decorrente do coronavírus, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, dentre outras, as seguintes medidas:

I – isolamento;

II – quarentena;

III – determinação de realização compulsória de:

  1. a) exames médicos;
  2. b) testes laboratoriais;
  3. c) coleta de amostras clínicas;
  4. d) vacinação e outras medidas profiláticas; ou
  5. e) tratamentos médicos específicos;

IV – estudo ou investigação epidemiológica;

V – exumação, necropsia, cremação e manejo de cadáver;

VI – restrição excepcional e temporária, conforme recomendação técnica e fundamentada da Agência Nacional de Vigilância Sanitária, por rodovias, portos ou aeroportos de:               

  1. a) entrada e saída do País; e            
  2. b) locomoção interestadual e intermunicipal;          

VII – requisição de bens e serviços de pessoas naturais e jurídicas, hipótese em que será garantido o pagamento posterior de indenização justa; e

VIII – autorização excepcional e temporária para a importação de produtos sujeitos à vigilância sanitária sem registro na Anvisa, desde que:

  1. a) registrados por autoridade sanitária estrangeira; e
  2. b) previstos em ato do Ministério da Saúde.
  • 1º As medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública.
  • 2º Ficam assegurados às pessoas afetadas pelas medidas previstas neste artigo:

I – o direito de serem informadas permanentemente sobre o seu estado de saúde e a assistência à família conforme regulamento;

II – o direito de receberem tratamento gratuito;

III – o pleno respeito à dignidade, aos direitos humanos e às liberdades fundamentais das pessoas, conforme preconiza o Artigo 3 do Regulamento Sanitário Internacional, constante do Anexo ao Decreto nº. 10.212, de 30 de janeiro de 2020.

  • 3º Será considerado falta justificada ao serviço público ou à atividade laboral privada o período de ausência decorrente das medidas previstas neste artigo.
  • 4º  As pessoas deverão sujeitar-se ao cumprimento das medidas previstas neste artigo, e o descumprimento delas acarretará responsabilização, nos termos previstos em lei.
  • 5º  Ato do Ministro de Estado da Saúde:

I – disporá sobre as condições e os prazos aplicáveis às medidas previstas nos incisos I e II do caput deste artigo; e

II – concederá a autorização a que se refere o inciso VIII do caput deste artigo.

  • 6º Ato conjunto dos Ministros de Estado da Saúde, da Justiça e Segurança Pública e da Infraestrutura disporá sobre a medida prevista no inciso VI do caput.       
  • 6º-A O ato conjunto a que se refere o § 6º poderá estabelecer delegação de competência para a resolução dos casos nele omissos.       
  • 7º As medidas previstas neste artigo poderão ser adotadas:

I – pelo Ministério da Saúde;

II – pelos gestores locais de saúde, desde que autorizados pelo Ministério da Saúde, nas hipóteses dos incisos I, II, V, VI e VIII do caput deste artigo; ou

III – pelos gestores locais de saúde, nas hipóteses dos incisos III, IV e VII do caput deste artigo.

  • 8º As medidas previstas neste artigo, quando adotadas, deverão resguardar o exercício e o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais.          
  • 9º O Presidente da República disporá, mediante decreto, sobre os serviços públicos e atividades essenciais a que se referem o § 8º.          
  • 10.  As medidas a que se referem os incisos I, II e VI do caputquando afetarem a execução de serviços públicos e atividades essenciais, inclusive as reguladas, concedidas ou autorizadas, somente poderão ser adotadas em ato específico e desde que em articulação prévia com o órgão regulador ou o Poder concedente ou autorizador.           
  • 11.  É vedada a restrição à circulação de trabalhadores que possa afetar o funcionamento de serviços públicos e atividades essenciais, definidas nos termos do disposto no § 9º, e cargas de qualquer espécie que possam acarretar desabastecimento de gêneros necessários à população.

[2] Entendido como: “separação de pessoas doentes ou contaminadas, ou de bagagens, meios de transporte, mercadorias ou encomendas postais afetadas, de outros, de maneira a evitar a contaminação ou a propagação do coronavírus”.

[3] Entendida como: “restrição de atividades ou separação de pessoas suspeitas de contaminação das pessoas que não estejam doentes, ou de bagagens, contêineres, animais, meios de transporte ou mercadorias suspeitos de contaminação, de maneira a evitar a possível contaminação ou a propagação do coronavírus”.

[4] Especificamente as previstas nos incisos I, II e nas alíneas “a”, “b” e “e” do inciso III, do caput do artigo 3º.

[5] Art. 3º A medida de isolamento objetiva a separação de pessoas sintomáticas ou assintomáticas, em investigação clínica e laboratorial, de maneira a evitar a propagação da infecção e transmissão local.

  • 7º A medida de isolamento por recomendação será feita por meio de notificação expressa à pessoa contactante, devidamente fundamentada, observado o modelo previsto no Anexo II.

[6] Art. 6º As medidas de realização compulsória no inciso III do art. 3º da Lei n° 13.979, de 2020, serão indicadas mediante ato médico ou por profissional de saúde.

[7] Art. 4º A medida de quarentena tem como objetivo garantir a manutenção dos serviços de saúde em local certo e determinado.

§ 1º A medida de quarentena será determinada mediante ato administrativo formal e devidamente motivado e deverá ser editada por Secretário de Saúde do Estado, do Município, do Distrito Federal ou Ministro de Estado da Saúde ou superiores em cada nível de gestão, publicada no Diário Oficial e amplamente divulgada pelos meios de comunicação.

Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.

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