Juristas, ligados à atividade acadêmica de ensino e pesquisa, redigiram Carta Aberta ao Congresso Nacional, à Câmara dos Deputados, e à Comissão de Constituição e Justiça.
A iniciativa decorre da preocupação da comunidade jurídica com a validade da representação elaborada pelo Conselho de Ética e Decoro Parlamentar, que, por maioria de votos, opinou pela cassação do mandato do Deputado Glauber Braga.
A Carta salienta os aspectos estritamente constitucionais e legais, relativos ao procedimento parlamentar que encaminha à apreciação e à sugestão por esse Conselho de eventuais penalidades pela quebra dos princípios éticos da atividade parlamentar.
Os juristas, valorando e refletindo a ausência de juridicidade na configuração da pena sugerida pelo Conselho, em sua representação à Comissão de Constituição e Justiça, sublinhando os valores e regras que devem ser observados, no sentido estritamente jurídico, na apreciação do caso.
A iniciativa foi do Professor José Geraldo de Sousa Jr, ex-Reitor da Universidade de Brasília, e conta com o apoio da Academia Paulista de Direito, por seu Presidente Alfredo Attié, Titular da Cadeira San Tiago Dantas, bem como de outras importantes entidades da sociedade civil.
O documento salienta a importância de serem observados os precedentes da Comissão e do Plenário, em primeiro lugar, tendo em vista a garantia de segurança e certeza que uma análise coerente tende a preservar.
Refere, ainda, a imprescindível atenção devida ao princípio de direito constitucional e direito internacional convencional da proporcionalidade, incidente sobre o direito sancionatório, de plena atuação não somente na esfera penal, mas igualmente nas do direito administrativo disciplinar e no direito parlamentar.
A nota alude a normas de natureza constitucional, convencional e penal, a decisões do Supremo Tribunal Federal, da Corte Europeia de Direitos Humanos e da Corte Interamericana de Direitos Humanos.
Também apoiam e firmam o documento Tarso Genro, ex-Ministro da Justiça, Benedito Mariano, ex-Ouvidor das Polícias do Estado de São Paulo, Pedro Armando Egydio de Carvalho, Procurador do Estado de São Paulo, Miguel Pereira Neto, Advogado, entre outros importantes juristas.
O documento segue aberto a assinaturas da comunidade jurídica brasileira e internacional.
Leia a seguir o inteiro teor da carta:
NOTA PÚBLICA DE JURISTAS EM FACE DA AMEAÇA DE CASSAÇÃO DE MANDATO DO DEPUTADO GLÁUBER BRAGA
O Conselho de Ética e Decoro Parlamentar a Câmara dos Deputados aprovou na quarta-feira (09/04/2025) representação que pede a cassação do deputado Glauber Braga (Psol-RJ) por quebra de decoro parlamentar. Por 13 votos favoráveis e 5 votos contrários, os integrantes do Conselho aprovaram o parecer do relator, deputado Paulo Magalhães (PSD-BA), que recomendava a perda do mandato do deputado Glauber Braga.
No parecer, o Relator afirmou ter havido agressão, considerando que o deputado expulsado, com chutes, militante do Movimento Brasil Livre (MBL), das dependências da Câmara dos Deputados, o que configuraria violação ao decoro parlamentar, porque as ações do parlamentar seriam “incompatíveis com o decoro exigido dos parlamentares, conforme o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara”.
O único fundamento, portanto, estaria em que, na interpretação do relator, o deputado teria violado formalmente o Código de Ética e Decoro Parlamentar da Câmara dos Deputados, que estabelece que os parlamentares devem manter conduta compatível com o decoro, tratando com respeito os colegas, servidores e cidadãos que visitam a Casa.
Ocorre que esse alinhamento meramente formal, ao expresso de modo genérico no Código, não se coaduna com outras normas, superiores em eficácia ao Código, porque de ordem constitucional e convencional. Além disso, a decisão não se coaduna com a jurisprudência do próprio Conselho de Ética, caracterizada mais por um juízo político sobre valorizar e ponderar as condutas dos parlamentares.
Nos debates, precedentes à deliberação que fundamenta a representação, a disputa se deu exatamente em relação ao alcance da materialidade necessária, se proporcional a conduta, principalmente quando comparada a situações equivalentes em registros de ocorrências já examinadas pelo Conselho de Ética, pela Comissão de Constituição e Justiça e pelo Plenário da Câmara.
O Conselho já analisou casos semelhantes ao do deputado Glauber Braga, envolvendo alegações de agressão física ou comportamentos considerados incompatíveis com o decoro parlamentar. No geral, todos esses casos — sem carrear juízos comparativos entre os indiciados ou a suas inscrições partidárias – referiam empurrões em reunião, ofensas verbais, comportamentos agressivos, tendo o Conselho optado por arquivar as representações ou aplicar penalidades não capitais – censura verbal, suspensão de mandato — considerando o contexto das ações e a proporcionalidade das sanções.
A decisão do Conselho de Ética de recomendar a cassação de Glauber Braga, mesmo diante de precedentes em que penalidades mais brandas foram aplicadas, indica uma interpretação mais rigorosa da quebra de decoro parlamentar neste caso específico, mais ainda, indica um afastamento da ponderação que vem sendo adotada, de modo regular e equilibrado, o que só se explica por uma intensificação polarizada de antagonismos políticos, que, a prevalecer tal entendimento retratado na representação, acaba por retirar justa causa ao sistema de sanções principalmente no plano ético.
A questão posta nesses termos toca fundamentos centrais da teoria do delito, do devido processo legal substancial e dos princípios constitucionais e convencionais de limitação do poder punitivo do Estado, inclusive em sua manifestação no direito parlamentar.
Primeiro, pelo afastamento dos precedentes, o que encaminha a uma situação de imprevisibilidade das sanções, sem o exame de posicionamentos anteriores do próprio Conselho.
Mesmo na teoria do delito e especialmente no campo da dogmática penal garantista, como pensada por Luigi Ferrajoli, Eugenio Raúl Zaffaroni, e em certa medida por Claus Roxin, a sanção deve observar um princípio de proporcionalidade, não só com o fato praticado e seu contexto, mas com os precedentes aplicados a condutas similares.
Se a Câmara vinha aplicando sanções mais brandas em casos semelhantes — empurrões, agressões verbais ou até físicas em certos contextos — a intensificação agora pode violar o princípio da confiança legítima e da previsibilidade da sanção, que compõem o devido processo legal substancial.
Segundo, pela afronta à justa causa e à tipicidade sancionatória, uma vez que a justa causa é o que dá fundamento legítimo à persecução penal ou sancionatória. Na seara ética-parlamentar, ela se traduz na existência de elementos concretos que, juridicamente, justifiquem o uso do poder punitivo disciplinar de forma proporcional e necessária.
Se a conduta do deputado se deu em reação a uma provocação direta, num contexto de forte tensão emocional — e se isso for reconhecido — pode haver, analogicamente, elementos de excludente de culpabilidade, como o estado de emoção violenta e mesmo a legítima defesa pessoal e da atuação parlamentar, que mantém laço forme com a importância que lhe é concedida pela Constituição. Isso deveria ser considerado não apenas na apreciação de excludente de responsabilidade do deputado, mas sobretudo na dosimetria da sanção.
Terceiro, do ponto de vista das normas constitucionais e convencionais no âmbito internacional dos direitos humanos, há importantes princípios que limitam a severidade da pena:
Princípio da proporcionalidade (CF/88, art. 5º, LIV + jurisprudência do STF e STJ).
Proibição de penas cruéis, desumanas ou degradantes (Pacto de San José da Costa Rica, art. 5º).
Princípio da intervenção mínima (ultima ratio), também aplicável em contextos sancionatórios-administrativos ou parlamentares.
A sanção tem função remissiva da pena — tão valorizada na doutrina humanista, na jurisprudência do STF, naquela da Corte Europeia de Direitos Humanos e nas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos. No Brasil, essa proporcionalidade tem fundamento no princípio da dignidade da pessoa humana (art. 1º, III, da CF), e nos Tratados e Convenções Internacionais de Direitos Humanos. A pena não deve ser instrumento de vingança institucional, de lawfare (cuidado essencial, em época de polarização tensa das relações políticas), mas de reprovação ética proporcional, considerando a complexidade dos fatos, antecedentes e contexto de provocações e reações recíprocas. O princípio da proporcionalidade, desde que enunciado pelo Tribunal Constitucional Federal da Alemanha, tornou-se, pelo diálogo saudável dos Tribunais nacionais e internacionais, fundamento de todo o direito sancionatório. A desatenção a tal equilíbrio entre conduta e sanção pode levar à intervenção judicial — nacional e subsidiária internacional —, prejudicando o andamento da vida parlamentar, que se deve valorizar sobremaneira, na medida da legitimidade da representação política.
Em conclusão, a intensificação da sanção sem observância dos precedentes, da proporcionalidade e da função ético-pedagógica da pena pode ser caracterizada como violação do princípio da legalidade material, do devido processo substancial e da dignidade da pessoa humana. Além disso, pode configurar uma punição com viés político ou simbólico excessivo, que se afasta dos fundamentos racionais e garantistas que deveriam reger o sistema de responsabilização parlamentar, desfigurando o equilíbrio que o Parlamento deve sublinhar em suas deliberações, tão importante para o juízo democrático de legitimidade da representação.
Para esses fundamentos, desde que o deputado Glauber Braga já se manifestou em sentido recursal, além de sua estoica objeção à própria moralidade da situação, é de se esperar um juízo ad quem da CCJ e em instância final parlamentar, do nobre Plenário da Câmara dos Deputados.
Brasília, 14 de abril de 2025
Publicado originalmente na APD.
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