Por Igor Sant’Anna Tamasauskas e Pierpaolo Cruz Bottini
Tempos estranhos que teimam em nos assombrar.
No distante 2007, tivemos a honra de representar a Associação Nacional dos Defensores Públicos na ação direta de inconstitucionalidade 3.493 que questionava a modificação do art. 5º, da Lei da Ação Civil Pública, para incluir a Defensoria Pública como um dos legitimados para esse importante instrumento de defesa de direitos coletivos.
Entendíamos, e defendemos, inclusive com o concurso de um parecer da Profa. Ada Grinover (disponível aqui), que a atuação judicial em prol de causas de hipossuficientes deveria contar também com um mecanismo de tutela coletiva, como vetor de eficiência e uniformidade para a defesa desses direitos. Outros colegas nos sucederam na causa que, ao final, foi julgada improcedente para confirmar a legitimação da defensoria para o ajuizamento de ações civis públicas.
A saudosa professora construiu um argumento bastante poderoso no sentido de que a consolidação da legitimidade da defensoria no texto da lei coroaria o reconhecimento da atuação desse imprescindível ator judicial na defesa dos necessitados, não apenas os carentes no plano econômico, mas também os socialmente vulneráveis. O acesso à justiça de forma mais ampla – típica das tutelas coletivas – passara a ser atribuído também à defensoria pública (muito embora até então decisões judiciais vinham reconhecendo tal legitimação, a fixação no texto legislativo eliminou algumas dúvidas, que, ao fim e ao cabo, foram afastadas por completo pelo Supremo Tribunal Federal, à unanimidade, seguindo o voto da Ministra Cármen Lúcia).
Disputa de longos anos, que inclusive passou por uma modificação constitucional para prever expressamente a atuação em demanda coletiva, mediante a EC n. 80/2014, a legitimação foi conquistada após duros embates pelos defensores públicos, ciosos de seus deveres e missões constitucionais. Sem dúvida, uma jornada que orgulha quem a viveu de perto e pôde testemunhar um importante trabalho por um instrumento na construção de uma sociedade melhor e menos desigual.
A história, essa farsante, infelizmente nos prega peças. Tomamos conhecimento pelos holofotes da mídia (ah, os holofotes), que o resultado dessa luta renhida pela legitimação coletiva foi (mal) utilizado para atacar uma tentativa honorável de uma empresa. Essa empresa, a Magazine Luíza, como todos sabemos, estabeleceu um programa de admissão para o seu quadro de lideranças voltado a candidatos negros.
Sob construtos pseudo-jurídicos, como o “marketing da lacração”, essa ação civil pública contraria frontalmente a inspiração daqueles que procuraram defender a legitimação da defensoria pública em ações coletivas. A ideia do socialmente vulnerável, que confere aos defensores o acesso a essa técnica moderna de tutela não apenas foi desprezada como simplesmente ignorada na ação. É certo que há uma imensa massa de miseráveis e socialmente vulneráveis entre nós brasileiros, que demandaria atenção da defensoria e de outras estruturas do Estado; não menos certo, entretanto, é que tal massa, infelizmente, é bastante mais escura que outros estratos da população.
A Magalu ousou mexer nesse quadro, mediante o programa para preenchimento de certos cargos buscando a diminuição da desigualdade econômica pela cor da pele. Despertou, com isso, críticas incompreensíveis de um “racismo inverso” e outras bobagens que culminaram na indigesta ação civil pública.
Tempos estranhos que teimam em nos assombrar. Que o Judiciário novamente se inspire em lições de gigantes, como a Profa. Ada, e rejeite essa malparada iniciativa do defensor.
Artigo publicado originalmente no Migalhas.
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