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Desarmando as bombas de ódio nas redes sociais

Desarmando as bombas de ódio nas redes sociais

Precisamos e devemos impor às plataformas responsabilidade civil ajustada à importância que alcançaram

Muitos jovens talvez não se lembrem do Orkut, a primeira rede social de grande alcance entre os brasileiros. Superada e desativada há dez anos, volta a emergir agora em diferente contexto. Integra o julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a constitucionalidade do artigo 19 do Marco Civil da Internet (MCI).

A Corte apreciará o caso de uma comunidade criada por adolescentes na plataforma para debochar de uma professora, que via a atitude como incitação ao ódio. Discute-se a indispensabilidade de decisão judicial para retirada do conteúdo da rede. O caso será apreciado com outro que envolve a criação de perfil falso no Facebook. São, respectivamente, os temas 553 e 987, da repercussão geral do STF.

O fato de o tribunal julgar algo que trata de plataforma já extinta revela o anacronismo da compreensão que as redes sociais têm sobre o artigo 19 do MCI. O tempo passou, sua capacidade de alcance e poder de influência agora impactam o comportamento de indivíduos e comunidades. No entanto, para elas, esse dispositivo criou imunidade que as isenta de responsabilização por conteúdos de terceiros.

A imunidade era até compreensível nos primórdios das redes, quando elas se limitavam à interação orgânica entre usuários. Hoje, no entanto, se transformaram em gigantes tecnológicas. Ombreiam com os grandes grupos editoriais, que viram minguar seus assinantes, cujos feeds foram inundados por anúncios que migraram da mídia tradicional para as plataformas.

A liberdade, garantida pelo MCI, exigia equivalente responsabilidade. O dispositivo nunca proibiu as redes de mediar as publicações, algo que, de fato, elas exerciam, inclusive para garantir aderência a seus protocolos. Com o tempo, ficou claro que elas não fazem mediação quando tal medida implica redução de engajamento e de ganhos.

Isso explica o crescimento exponencial dos conteúdos caça-clique, sem qualquer limite ético. Discursos de ódio, obscurantismo, fake news, teorias conspiratórias e, claro, violência política estão entre os temas mais rentáveis e de maior engajamento.

Se, por um lado, houve aumento de lucros com cliques, por outro, assistimos ao crescimento gradativo dos eventos de violência real nas ruas. São tragédias humanas, concretas, não apenas digitais. Um verdadeiro arsenal de “bombas” de ódio, algumas, infelizmente, já detonadas contra a Justiça.

Preocupada com essa ameaça, a União, por meio da Advocacia-Geral (AGU), participa dos julgamentos em curso no STF. Neles, defende interpretação do artigo 19 do MCI que atribua às redes sociais a obrigatoriedade de implementar mecanismos de mediação mais justos e adequados.

As plataformas não podem seguir com uma postura indiferente. As manifestações há tempos não são mais orgânicas nas redes. Os algoritmos favorecem determinados perfis e postagens em busca de engajamento e ganhos financeiros. Isso escancara o cinismo do argumento de que elas não podem ser responsabilizadas por publicações de terceiros.

Eventual vitória da compreensão de que a exclusão de conteúdo nas redes depende de ordem judicial específica implicaria, ainda, aumento da judicialização. Tal visão aposta na morosidade da Justiça, sem se importar com o fato de que a desinformação requer respostas rápidas, e de que alcança temas essenciais para a coletividade, como saúde e segurança públicas.

Compreendemos a importância das redes para as interações interpessoais e para a economia. Temos compromisso com a liberdade de expressão. Esse valor precisa, no entanto, ser sopesado com garantias igualmente democráticas e constitucionais, a exemplo da privacidade.

Enfim, não é da benevolência das redes sociais que esperamos nossos likes, mas da consideração que elas têm pelos próprios interesses. Precisamos e devemos impor a elas responsabilidade civil ajustada à importância que alcançaram com fundamento numa imunidade que expõe toda a sociedade ao risco de uma irresponsabilidade não republicana.

Artigo publicado originalmente no Jornal O Globo.

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