Por Pierpaolo Cruz Bottini e Augusto de Arruda Botelho
Vivemos uma pandemia cujo controle exige respeito ao isolamento e às medidas sanitárias impostas pelas autoridades. Ao que consta, o coronavírus não se sensibilizou com argumentos sobre os prejuízos econômicos das quarentenas e segue ameaçando idosos, jovens e o sistema de saúde. Até o momento da redação deste artigo, centenas de pessoas morreram da doença, segundo números oficiais. Há quem diga que há muitos outros casos subnotificados.
Nesse contexto, medidas urgentes são decididas. Pagamentos compensatórios a trabalhadores,adiamento da cobrança de impostos,instalação de leitos em estádios de futebol, determinação de soltura de detentos em certas condições para evitar contaminação em presídios. Cada qual, em seu setor, pensa em soluções para minimizar danos e contribuir com a saúde pública.
Mas, ao lado destes, há quem dedique tempo em busca de bodes expiatórios, dos culpados pela pandemia, como se a identificação de alguém para expiação pública solucionasse os graves problemas pelos quais passamos.
Autoridades sacam de suas algibeiras o pouco conhecido art. 268 do Código Penal que pune com pena de um mês a um ano aquele que infringir determinação do poder público, destinada a impedir introdução ou propagação de doença contagiosa. À primeira vista, parece o instrumento ideal para caçar banhistas na praia,frequentadores de bares e igrejas, ou mesmo aqueles que passeiam na rua em grupos, e aplicar punições exemplares para que percebam o custo em vidas de sua irresponsabilidade.
Mas — gostemos ou não — o direito penal tem limites.
Esse crime só pode ser praticado de forma intencional (dolosa). Isso significa que o agente deve conhecer as determinações do poder público e ter a intenção de descumpri-las. Vale lembrar que parcelas grandes da população brasileira não tem acesso pleno à informação e a ignorância das regras sanitárias afasta o crime, seja por falta de dolo, seja por falta de potencial consciência do ilícito.
Mais do que isso, o delito só existirá se a conduta criar um risco efetivo de propagação da doença. O suspeito de contágio que quebrar a quarentena somente pratica o crime se testar positivo para o vírus. Por mais que viole as regras de cuidado, aquele que descobre depois não ter a doença está livre da imputação.
Por último, ainda que realizada a conduta ilícita, não será possível retirar o criminoso de circulação. Pelo tamanho da pena, não se admite prisão preventiva no caso, valendo lembrar que não faria sentido algum prender alguém infectado com o vírus em unidades nas quais o termo aglomeração é uma triste realidade.
Em conclusão, o direito penal até pode ser aplicado em determinados casos, mas não tem a amplitude nem a capacidade de combater o espraiamento da pandemia. Medidas pedagógicas – como propaganda intensiva – e sanções administrativas – como multas – são muito mais efetivas porque tem aplicação mais rápida e efetiva.
Por fim, vale lembrar o risco de governantes oportunistas, sempre prontos a usar o medo da pandemia e o direito penal para ampliar seus poderes além do necessário, apertando passos em direção a regimes totalitários. Na Hungria e na Tailândia o governo suspendeu eleições e criminalizou a divulgação pela imprensa de informações tidas por incorretas, com a justificativa de proteger a população da doença.
Fiquemos em casa, respeitemos a quarentena, mas alertas. Lançar mão da prisão,polícia e da censura não salvará vidas. Apenas acrescerá mais um medo e angústia a um triste cotidiano.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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