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‘Enfrentamos hoje a volta de um estado de fome epidêmica no Brasil’, diz historiadora

‘Enfrentamos hoje a volta de um estado de fome epidêmica no Brasil’, diz historiadora

Por Emilio Sant’Anna

Após anos dedicados aos estudos sobre a fome e os hábitos alimentares dos brasileiros, é de sua presença diária nas ruas da zona norte de São Paulo, alimentando uma legião de famintos e desempregados, que a historiadora Adriana Salay, 36, tira suas conclusões.

“Se esse Estado que está hoje colocado não entende que essa população precisa sair da situação de fome, temos que fazer uma mobilização da sociedade civil e criar esse enfrentamento com o Estado”, afirma.

Ao lado do marido, Rodrigo Oliveira, chef do restaurante Mocotó, Adriana criou o projeto Quebrada Alimentada, que distribui 200 marmitas por dia e 220 cestas básicas por mês desde o início da pandemia do novo coronavírus.

Debruçada sobre a obra de Josué de Castro, autor de “Geografia da Fome” e ex-presidente do Conselho Executivo da FAO, o órgão das Nações Unidas para agricultura e alimentação, ela vê a fome epidêmica, causada pela emergência sanitária, se juntar à fome endêmica no país.

Segundo a Pesquisa de Orçamentos Familiares (POF) do IBGE, 37% das famílias viviam em insegurança alimentar em 2018. Essa porcentagem era de 23% em 2013.

A realidade de 2020 deve se revelar ainda pior. Não à toa, o Relatório Global de Crises Alimentares, do Programa Mundial de Alimentação (PMA), da ONU, apontou que a pandemia pode fazer o número de pessoas em insegurança alimentar duplicar no mundo.

Na última sexta-feira (9), o programa da ONU ganhou o Prêmio Nobel da Paz pelos esforços em combater a fome e evitar que ela seja usada como arma em conflitos.

Nesta semana, o projeto de Adriana e Rodrigo fará parte de uma ação batizada de “Gente é pra brilhar, não pra morrer de fome”. Organizada pelo coletivo Banquetaço, a campanha terá programação online (genteprabrilhar.org) para debater a fome a partir desta segunda (12) até sexta (16). No sábado (17) e no domingo (18), “marmitaços” em diferentes capitais devem distribuir refeições nas ruas.

Chefs como Rodrigo, Helena Rizzo, Paola Carosella, Bel Coelho e Bela Gil fazem parte da campanha.

O que mudou na geografia da fome desde que Josué de Castro publicou o livro homônimo?  Tivemos avanços importantes. Quando ele publicou (1946), há dados expressivos de que populações periféricas do Recife, por exemplo, usavam 70% da renda em alimentação. Isso era normal. Não que hoje isso tenha passado, mas tivemos avanços como os programas de transferência de renda e de cisternas no sertão. Passamos por uma seca importante recentemente no sertão que não gerou retirantes e situações de fome como estavam colocadas na época do Josué de Castro.

Eu encontrei na imprensa, por exemplo, cenas de canibalismo nas secas sertanejas nos anos 30. Cenas como essas e campos de concentração para refugiados das secas, em 1932, não estão mais colocadas hoje.

Josué separa fomes epidêmicas —devido a crises— e endêmicas —estruturais. Agora, temos menos crises de fome, mas temos uma manutenção da fome endêmica.

Hoje, devido à pandemia, temos a volta da fome epidêmica? Sim. Na minha perspectiva, sim. E por isso vem toda essa movimentação. Por causa da Quebrada Alimentada começamos a gravar um documentário com depoimentos de pessoas que procuram o programa. Há depoimentos que são muito representativos desse momento. Alguém que ganha um salário mínimo (R$1.045) e vive com mais três pessoas, por exemplo, está em uma situação de fome estrutural, porque o salário mínimo hoje no Brasil não alimenta adequadamente quatro pessoas com os outros custos de vida. Outras pessoas que não estavam nessa situação são alçadas a esse lugar porque perderam renda.

Um dos depoimentos, por exemplo, é de uma camelô que trabalhava no Brás. Com o fechamento do comércio, ela perdeu toda sua renda. Mesmo tendo conseguido R$ 1.200 de auxílio emergencial do governo federal, porque ela é responsável pela casa e vive com três filhos, não consegue se alimentar a todos. Ela paga R$ 800 de aluguel. Com R$ 400 não consegue. Ela passou 15 dias comendo apenas arroz.

A fome é um processo, não é um fato posto. Ela narra exatamente esse processo da fome. Primeiro, começa a diminuir a quantidade das refeições; depois, a mulher, que é a pessoa que faz a gestão da fome na maioria dos lares, começa a pular refeições. E só então os filhos deixam de comer. Ela narrou exatamente isso, sem ter conhecimento científico, da entrada na situação de crise de fome por causa da pandemia. Antes, ela não estava nesse lugar e tinha renda suficiente para alimentar a família. Ela mora aqui, na Vila Medeiros, na zona norte. É um bairro com algumas vulnerabilidades, mas não é o lugar mais vulnerável. Estamos bem no meio do caminho em termos de IDH na cidade.

É isso que encontram nas ruas quando distribuem marmitas e cestas básicas?  Há duas figuras importantes aí. Fiz entrevistas com 220 famílias que se cadastraram no programa de cestas básicas para entender o que estava acontecendo. Há um perfil de famílias que já estavam em situação difícil e outro muito grande de famílias em que alguém perdeu emprego. Das 220 famílias, 180 estão nesse perfil. O que temos que pensar numa sociedade monetizada como a nossa, é que a renda é fator decisivo para comer ou não.

É só olhar para POF de 2018, que saiu no mês passado, os números de fome aumentaram muito. E São Paulo é o estado, em números absolutos, que tem mais gente nessa situação. E o que significa a pandemia [nesse cenário]? Temos que pensar o que o auxílio emergencial compra em São Paulo e o que compra em uma cidade pequena no interior de Pernambuco. Os R$ 600 podem ser suficientes lá, mas aqui não paga um aluguel. E agora, metade disso.

Qual sua avaliação da atuação das três esferas de governo contra a fome durante a pandemia?  São três esferas diferentes, mas que estão caminhando juntas no combate à fome fazendo muito aquém do que deveriam nesse momento. Vale lembrar que o valor do auxílio emergencial não foi definido no Executivo, mas no Legislativo. É uma medida importante, mas não é o suficiente. Há algumas políticas públicas que deveriam ser implementadas ou mantidas nesse momento, como o programa de aquisição alimentar para o PNAE, que é o programa de alimentação escolar, que praticamente acabou.

escola é um lugar privilegiado para acessar essas famílias em vulnerabilidade. As escolas públicas têm o mapeamento dessas famílias, elas têm um programa de aquisição alimentar que é muito importante, porque 30% desses alimentos precisam vir da agricultura familiar. Quando você desmantela esse programa, não são só essas famílias que são prejudicadas, como também esses agricultores.

Defendemos a implementação de algumas políticas como o auxilio aluguel, a intensificação dos restaurantes populares, e nada disso tem sido feito. Não há uma política de contenção de fome em nenhuma das esferas de governo.

Isso te surpreende de alguma forma, ou em que medida, após o país ter conseguido reduzir de forma expressiva a fome?  Saímos do Mapa da Fome da FAO, em 2014. Mas, em minha concepção, enquanto tivermos alguém passando fome, precisamos falar sobre isso. São inegáveis os avanços dos governos anteriores na erradicação fome, e todos os dados mostram isso. E não só o Brasil avançou. Mas pensando nos governos que estão instalados hoje, não me surpreende. Quando a pandemia chegou, com o entendimento que tenho e olhando para os trabalhos de Josué de Castro, já sabia o que iria ocorrer. As crises são fatores geradores de fome.

O que mudou para mim? Não posso mais ficar só nos livros. Sei o que está acontecendo e é hora de agir. Aí vem o Quebrada Alimentada e o Gente Nasceu para Brilhar.

Se esse Estado que está hoje colocado não entende que essa população precisa sair dessa situação de fome, temos que fazer uma mobilização da sociedade civil para colocar esse problema na pauta e criar esse enfrentamento com o Estado.

Mas o Estado não tem condições de responder a isso minimamente?  É papel do Estado. Ele tem todas as ferramentas. Tem o cadastro único, que mapeia as pessoas em vulnerabilidade alimentar, CCAs [Centros para Crianças e Adolescentes, serviço municipal] que acolhem as crianças e podem fazer a distribuição por lá, tem os restaurantes populares, o programa de merenda escolar. Tem todas as ferramentas, o que falta é vontade política para que isso aconteça. Não à toa, na nossa campanha são mais de cem grupos que se mobilizaram.

A gente fala muito que estamos enxugando gelo porque não estou resolvendo o problema. Se eu dou uma marmita hoje, essa família vai estar com fome de novo amanhã, porque ela não tem acesso a renda para se alimentar de forma adequada e saudável. É papel do Estado fornecer essa alimentação. O papel da sociedade civil nesse momento se dá para levantar essa bandeira. Esse Estado que está colocado não vai fazer isso por conta própria, a não ser que tenha uma cobrança.

Vocês já sentiram algum tipo de censura a esse tipo de mobilização?  Já. A gente escuta muito que tem gente que pega as marmitas para vender. Tem críticas de quem diz que essa fome é resultado, porque mandaram todo mundo ficar em casa [durante a pandemia]. Mas acredito que o saldo ainda é positivo.

Há pouco tempo a primeira dama do estado de São Paulo, Bia Doria, disse que viver na rua é uma situação cômoda. Qual sua avaliação sobre essa afirmação?  Acredito que é problemático pelo lugar que ela está e atribuo essa fala à falta de conhecimento sobre o estado que o marido dela governa. Se você começar a entender os mecanismos que vão gerar população de rua e de pessoas com fome, você não pode culpar o indivíduo por estar ali. São as dinâmicas sociais que vão gerar essa situação e a falta de conhecimento que vai gerar uma fala equivocada como essa.

De que forma isso faz parte da sua pesquisa? O entendimento desse fenômeno é justamente o centro da minha pesquisa. Essa leitura da fome enquanto crise não deixou de existir. Quando você olha para a fala do presidente Jair Bolsonaro quando ele disse que não existia fome no Brasil porque não existe pessoas esqueléticas na rua, está defendendo uma posição. Ele tira de campo a noção de fome estrutural. Isso não é algo único e posto. É uma disputa.

Existiam as teorias neomalthusianas de que a população cresceria mais do que a produção de alimentos. Isso caiu por terra porque já produzimos para alimentar o mundo, mas ainda somos um mundo com fome porque as pessoas têm acessos diferentes ao alimento. Esses debates e essas disputas existem inclusive sobre os níveis de insegurança alimentar. Hoje, a FAO considera como fome apenas insegurança alimentar grave, só que a insegurança alimentar moderada já é uma família pular refeição. Os nomes formam as coisas. Se eu tiro o termo fome, para boa parte da sociedade isso muda a intensidade do fenômeno.

O Nobel da Paz para o PMA, da ONU, te surpreendeu?  Nesse momento de crise, no qual a fome no mundo pode chegar a índices inimagináveis e o Brasil pode se tornar um dos epicentros emergentes da fome no mundo, segundo a Oxfam, o prêmio deixa seu recado de quais estratégias ele quer fomentar. Josué de Castro, lá nas décadas de 1950 e 1960, já falava que guerra e fome estão interligadas, por isso alimento e paz também.

Acredito que é uma boa resposta aos ataques que essas organizações vêm sofrendo de políticas nacionalistas como as de Trump e Bolsonaro.

Entrevista publicada originalmente na Folha de S.Paulo.

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