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Imposto de renda e lavagem de dinheiro no caso Nelson Meurer

Imposto de renda e lavagem de dinheiro no caso Nelson Meurer

Por Pierpaolo Cruz Bottini e Elisabeth Lewandowski Libertuci

Nelson Meurer foi deputado federal. Segundo o STF, teria recebido vantagens indevidas em decorrência do exercício de sua função e, por isso, acabou condenado pela prática de corrupção passiva (CP, art. 317). Ademais, a Corte entendeu que o parlamentar também praticou lavagem de dinheiro porque declarou em seu imposto de renda a disponibilidade de valores em espécie incompatíveis com seus rendimentos.

Seria uma forma de ocultar os recursos ilicitamente recebidos.

Segundo o Ministro Relator, Edson Fachin, em voto vencedor: “a incompatibilidade entre os rendimentos auferidos pelo denunciado Nelson Meurer, as quantias movimentadas em suas contas-correntes e os valores em espécie declarados à Receita Federal” caracterizaria “formação dolosa de patrimônio ilícito inexistente nos anos de 2010 a 2014, conduta que perfeitamente amolda-se ao delito previsto no art.1º, caput, da Lei 9.613/98.” (Acordão Apn996, fls.135 e ss.)

Com o respeito que sempre merecem os votos do STF, não parece existir lavagem de dinheiro no caso em tela.

1. Da Declaração de Ajuste Anual
Uma análise crítica a respeito do tema passa necessariamente sobre a razão de ser da declaração de bens, que integra o imposto de renda da pessoa física, atualmente denominada Declaração de Ajuste Anual (DAA).

Como se sabe, entre março e abril de cada ano, os contribuintes obrigados a declarar rendimentos ao fisco devem informar o patrimônio possuído, em relação pormenorizada, denominada “declaração de bens e direitos”.

Importante saber a origem desta exigência, incorporada em nosso ordenamento jurídico em 1962, por intermédio da Lei nº 4.069. Em seu artigo 51, consta que “como parte integrante da declaração de rendimento a pessoa física apresentará relação pormenorizada, segundo modelo oficial, dos bens imóveis e móveis que, no país ou no estrangeiro, constituem seu patrimônio e de seus dependentes”.

O objetivo dessa obrigatoriedade está disciplinado no parágrafo primeiro do mesmo dispositivo, ao estabelecer que “a autoridade fiscal poderá exigir do contribuinte os esclarecimentos que julgar necessários acerca da origem dos recursos e do destino dos dispêndios ou aplicações, sempre que as alterações declaradas importem em aumento ou diminuição do patrimônio”.

Portanto, a declaração tinha o objetivo de apresentar o patrimônio às autoridades para torna-lo passível de escrutínio e investigação, se necessário.

À época em que foi criada a obrigatoriedade da declaração de bens inexistiam outros mecanismos que identificassem se o patrimônio do contribuinte estava, ou não, compatível com os rendimentos recebidos durante o ano calendário.

Não é o que acontece nos tempos atuais. A Lei nº 9.430/96, em seu artigo 42, define ser presumida a omissão de receita valores creditados em conta de depósito ou de investimento, mantida junto a instituição financeira, de origem não justificada.

Ou seja, a declaração de bens não se presta nem a indicar possível incompatibilidade patrimonial nos tempos atuais. Até porque a situação patrimonial do contribuinte em 31 de dezembro de um ano pode não destoar da situação em dezembro do ano seguinte, e mesmo assim poder ser identificada omissão de receita se analisada a movimentação financeira da pessoa física mês a mês.

Talvez, até valha a pena reflexão sobre a pertinência de manter a obrigatoriedade de se relacionar os bens ao fisco à época da entrega da declaração ao imposto de renda. Na seara internacional esta informação tem sido abolida pelos países, ante a burocracia que gera, sem contrapartida eficiente. Mas isso fica para ser discutido em outro momento.

Se a declaração de bens, nos tempos atuais, não mais se presta para identificar omissão de receita, resta saber quais as consequências práticas de nela constar bem sob a rubrica “dinheiro em espécie”, o que é o mesmo que se analisar se este lançamento pode ser entendido pelas autoridades administrativas como mecanismo eficiente para ocultação de patrimônio.

Inúmeros são os precedentes jurisprudenciais do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais sobre o assunto, que apontam a inaptidão da declaração do dinheiro em espécie para justificar acréscimo patrimonial do contribuinte (acórdão 2301-006.213, 05/06/2019 e Acórdão 2201-002.716, 08/12/2015).

Ao que parece, portanto, dinheiro em espécie constante na declaração de bens não é mecanismo eficiente para a prática de lavagem. Isso porque não são poucos os casos em que a autoridade fiscal simplesmente desconsidera a “existência” desse bem, o que deflagra a autuação por omissão de receita; ou mesmo em casos em que o dinheiro em espécie é reconhecido, somente o é pela inércia da autoridade fiscal em demonstrar a inveracidade da informação.

2. Do tipo penal de lavagem de dinheiro
O crime de lavagem de dinheiro consiste na ocultação e dissimulação da a natureza, origem, localização, disposição, movimentação ou propriedade de bens, direitos ou valores provenientes de infração penal (Lei 9.613/98, art.1º, caput). Declarar a posse de recursos em espécie no imposto de renda, registrar formalmente sua existência, ainda que de origem ilícita, não se adequa a conduta descrita na lei.

Reconhecer que se tem determinados bens é o oposto de escondê-los ou de mascará-los.

Pode-se dizer que nesse caso não se ocultam os bens, mas sua origem. Ocorre que, a declaração não se presta a informar origem dos recursos, mas apenas sua titularidade naquele período específico. E mesmo nesse caso não impede investigações sobre a regularidade patrimonial, como exposto.

Assim, o funcionário que recebe vantagens em decorrência da corrupção, ou alguém que rouba um banco e guarda em casa os valores obtidos, não comete lavagem de dinheiro se declarar os recursos ao imposto de renda. Não há falsidade ou fraude neste gesto, não existe mascaramento.

Ao contrário, o agente expõe ao fisco sua situação patrimonial, permitindo inclusive a análise da adequação da posse daqueles recursos à sua atividade econômica e seus ganhos regulares. A administração da Justiça não é afetada, a não ser que houvesse uma regra garantindo que os valores declarados ao imposto de renda têm presunção de origem lícita e não podem ser objeto de investigação, o que não coaduna com a realidade, como apontado.

A origem e natureza dos recursos em espécie declarados é passível de investigação, inexistindo, portanto, qualquer benefício em tal registro para fins de dissimulação de patrimônio ilícito.

Em suma, a criatividade humana desenvolveu pelos tempos inúmeras formas de ocultar e dissimular patrimônio sujo, sofisticadas ou simples, complexas ou rudimentares, mas a declaração de bens no imposto de renda não é uma delas.

P.S. Terminamos a presente coluna com o lamento pela morte do deputado federal Nelson Meurer, mencionado no início deste artigo, por Covid-19, no Presídio da Papuda, após insistentes demandas por prisão domiciliar. Não foi o primeira e infelizmente não será o último caso do gênero. O Poder Judiciário precisa dar-se conta dos desdobramentos trágicos de certas decisões, e de que a preservação da vida é mais importante que o exemplo punitivo. Não existe qualquer motivo que legitime a manutenção em unidades prisionais de pessoas de idade avançada ou com comorbidades que a tornem mais sensíveis a esta ou outras doenças para as quais não existe tratamento de mínima qualidade no sistema. A banalização da vida é um pecado que não pode ser cometido pelo Estado brasileiro.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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