Temos o melhor Marco Civil Da Internet (MCI) do mundo. A Europa se inspira no Brasil. Mas, como o assunto é fake news, lá vem um “remédio” forte que, além de não curar o doente — é como aumentar penas de crimes, que nunca funcionou — vai mata-lo.
O tal “remédio” está em dois frascos (vejam: não duvido da boa intenção dos proponentes!): um na Câmara (PL 1429) e outro no Senado (PL 2630), que pretendem regular a liberdade de expressão na internet, no Brasil.
O PL 2630 seria apreciado em Plenário em 2 de junho — retirado de pauta no mesmo dia. O problema é que os projetos voltarão. E aí é que mora o perigo. Como há muita água suja — e ninguém nega isso — o perigo é de os projetos atirarem junto a criança fora. A probabilidade é grande.
Ponho aqui minha colher nesse angu. Já existe bastante material nas redes falando do assunto. Os principais institutos estão tratando do tema, além de um belo texto de José Rollemberg no Blog do Fausto Macedo (aqui).
Embora Umberto Eco tivesse razão ao dizer que a internet deu voz aos néscios e imbecis, ela deu também voz aos sábios, aos democratas, aos professores, aos velhinhos, às crianças etc.
OK, tem os discursos de ódio e as fake news. Tenho uma tia analfabeta que virou cientista política e espalha que o AI-5 foi uma coisa boa e coisas do gênero. Mas isso não nos permite concluir que temos de manietar a Internet. E nem proibir a tia a priori. E tampouco exigir que os provedores controlem a tia.
Portanto, Eco tinha razão? Sim. Porem, disso não se tira que a frase dele virou sucesso por causa das plataformas. Certa vez, há uns 20 anos, um “profeta” anunciou que o livro iria acabar. E para isso escreveu… exatamente um livro. Pois é. Sem a internet a frase de Eco teria ficado escondida.
Brasil: a construção legislativa do Marco Civil da Internet durou três anos, com amplo debate dos setores e atores do processo. MCI é elogiado internacionalmente. O MCI é uma conquista do direito civil, fazendo com que se recuperasse e realçasse o seu estatuto epistemológico, como sempre bem lembra o professor da USP Otavio Luiz Rodrigues Junior.
Tudo isso poderá ser desconstruído em poucos dias. Como disse o grande juiz Sir Edward Coke ao rei absolutista no início do século XVII, isso não pode ser assim. É nossa tarefa alterar os perigos de projetos sem prognose.
Há coisas bizarras nos desejos regulatórios, como a determinação de que uma mesma mensagem não pode ser remetida para mais de cinco pessoas ou grupos — isso já acontece. Bom, logo será uma mensagem por pessoa e por dia. Acho que os legisladores estão se inspirando nos modelos “vencedores” da Indonésia ou China.
Ora, liberdade de expressão é pilar da democracia. E tem um custo. Cada pessoa tem de pagá-lo. Mas sem tabula rasa. Não se pode estuprar em nome da continuidade da raça, como alertava Millôr Fernandes.
A história é ciência. E tem nos mostrado que o grau de desenvolvimento da sociedade é proporcional a sua liberdade de expressão. Não depende só disso, é claro. Mas é um elemento fundamental.
Volto à tia de cada um. E à tia de cada dia. A Internet não pode ditar o conteúdo. A tia também não. Por isso não podemos julgar o papel da desinformação a partir dela mesma, a desinformação. Por quê? Porque não há elementos nos projetos de lei que nos informem, de forma confiável, que esse modelo “tipo indonésia” é melhor do que o nosso MCI já testado e aprovado.
Veja-se. Os projetos não se baseiam em dados ou elementos científicos. Tratam apenas de contentar certo imaginário. Lida com “jogos morais”. Sobre os quais não tem nenhuma certeza. Na verdade, melhor: sobre os quais não nos podem dar nenhuma convicção de que melhorará o sistema.
Prognose? Nenhuma. Os proponentes dos projetos deveriam ler livros que mostram que o Direito não pode lidar com esses “jogos morais” ou “escolhas dilemáticas”. Por exemplo, se o resultado que se pretende é apenas fruto de “aposta”, o risco é, mesmo, o de uma aposta. Tem 50% de probabilidade de dar errado. E piorar. É como o sujeito que, para salvar cinco pessoas, mata um. Em termos de cálculo, foi exitoso. Só que o sujeito que foi morto poderia ser o cara que inventaria a vacina contra o câncer; e entre os salvos, três terroristas que matariam centenas ou milhares de pessoas. Por isso, Direito — isto é, MCI — não pode ser utilizado para escolhas ou jogos políticos do momento. Pode dar muito errado.
Poderia listar tantas bizarrices dos projetos. Uma delas são os requisitos para abrir uma conta nos provedores.
Os discursos de ódio? Vamos combate-los impondo censura prévia? Quem fará esse juízo? Alguém posta um texto que outra pessoa não gosta ou, que ao seu juízo, seja ofensivo. O provedor tem de tirar do ar imediatamente? Cautelarmente? Quem diz o que é ofensivo? O STF já disse que não se admite discurso de ódio, a partir do famoso Caso Ellwanger. Mas nunca disse que tivéssemos que fazer censura prévia. Aliás, como diz a Ministra Carmen, “cala a boca já morreu”.
O mais grave é se pretende responsabilizar os provedores, a partir de uma espécie de censura por delegação. Veja-se o artigo 10, pelo qual se busca a responsabilização dos provedores de aplicação pelos conteúdos postados por terceiros. Ou seja, o provedor terá que verificar se é verdade o postado? Como assim? Um consumidor que se queixa de um estabelecimento, fala a verdade ou mente?
Ainda sobre o artigo 10: brincando um pouco, se um advogado ou professor escreve que Kelsen separou direito e moral… o provedor terá que avisá-lo de que isso é mentira? Ora, nem vou falar da medicina. Se eu postar — e isso é fato — que o médico fulano, ao me aconselhar um tratamento para meu dedo com artrose, errou e tive que buscar outro… isso é o quê? Notícia falsa contra o primeiro médico? Mundo mundo vasto mundo, talvez os proponentes tivessem que ler algo sobre interpretação de textos. Ibis redibis non peribis íbis (irás, retornarás, não perecerás lá), disse o oráculo ao soldado, que levou sua esposa para ouvir. Passado um tempo, a esposa descobriu que o marido morrera na guerra. Foi reclamar na defesa do consumidor contra a mentira do oráculo. A defesa do oráculo foi simples. “— Você não sabe nada de hermenêutica. Eu disse Ibis, redibis non, peribis íbis (irás, retornarás não, perecerás lá).” Imagine uma postagem assim no face book…!
Na verdade, hoje o MCI resolve isso tudo no artigo 19, conquista brasileira que serve de exemplo ao mundo. Os projetos não podem ser uma espécie de AI-5 digital.
Para fechar, lembro o art. 11, mal redigido, aliás. Tentando entende-lo, diz que os provedores devem prestar esclarecimentos aos usuários sobre o conteúdo postado, e advertir igualmente aos outros utentes do seu serviço. Bom, disso já falei acima. Transformar as plataformas em oráculos (íbis, redibis…!) ou em Sodalício da Aferição da Verdade (ou Consensos Falsos?) não parece uma boa ideia, para dizer o mínimo.
Na democracia, o trânsito informacional deve ser delimitado por seu conteúdo (caso seja ilícito). De que modo podemos afirmar ou presumir que, por exemplo, o número de pessoas atingidas desinforma? Na Alemanha, no ano de 1958, no famoso caso Lüth, já disse o Tribunal Constitucional que fazer propaganda (pregar boicote) contra um filme não era vedado. Era um direito constitucional de liberdade de informação. Ou seja, no exemplo, não posso espalhar para milhares de pessoas que o filme x é ruim ou sexista ou coisa assim? E quanto ao filme ser ou não ruim ou sexista, como aferir? Eu até teria como aferir isso a partir da tese da resposta correta, porém, os usuários e os provedores não são obrigados a conhecer e concordar com essa proposta teórica, se me permitem apontar os limites e paroxismos dessa previsão do projeto.
Sem falar no problema que essa alteração legislativa provocará nas eleições. Cachorro mordido por cobra tem medo de linguiça. Porém, de novo, cuidemos apenas da água suja.
Quanto aos limites circulatórios de informações, o projeto não pode querer abarcar as inúmeras hipóteses de excessos ou mentiras, como se houvesse um centro controlador por parte do Estado. A livre iniciativa, nesse aspecto, ficará tisnada se os projetos forem aprovados. Enfim, salvemos o MCI.
Dê-se ao Estado esse Poder e ele não terá nenhum pudor em tirar as manguinhas de fora.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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