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“Moro ainda tem muito a explicar”, diz ex-ministro da Justiça petista

“Moro ainda tem muito a explicar”, diz ex-ministro da Justiça petista

Por Reynaldo Turollo Jr.

José Eduardo Cardozo, que atuou durante boa parte da Lava Jato, critica o ex-juiz, fala da derrocada da operação Lava-Jato e defende resgate de Dilma

Ex-ministro da Justiça no governo de Dilma Rousseff, o petista José Eduardo Cardozo afirma que a iniciativa do ex-juiz e também ex-ministro da Justiça Sergio Moro de divulgar que ganhou 3,7 milhões de reais da consultoria Alvarez & Marsal, que atua na recuperação judicial de empreiteiras quebradas após a Lava Jato, “não resolve o problema”. “É um valor bastante elevado. Parece evidente que há conflito de interesses e o contrato deve ser investigado”, diz Cardozo.

Em entrevista a VEJA, além de comentar o caso Moro e Alvarez & Marsal, o ex-ministro da Justiça fala do legado da Lava Jato, que correu sob sua gestão no ministério, conta que recebeu pressão do partido para controlar a Polícia Federal naquela época e relata um episódio envolvendo uma suposta ilegalidade na troca de informações entre a extinta operação anticorrupção e a Suíça. Cardozo também é favorável à aliança entre Lula e Geraldo Alckmin (ex-PSDB) para a disputa presidencial deste ano, diz que se tornou crítico da lista tríplice para escolha do procurador-geral da República – iniciativa do governo Lula que foi abandonada por Bolsonaro – e defende que, na campanha eleitoral deste ano, o PT faça um resgate do governo Dilma, em vez de escondê-lo. Confira a entrevista.

Depois de semanas de polêmicas em torno dos rendimentos que obteve na Alvarez & Marsal, Moro divulgou que recebeu da consultoria, em um ano, 3,7 milhões de reais, 45 mil dólares por mês. A iniciativa de Moro em abrir o salário encerra o caso?

É um contrato de valor bastante elevado, possivelmente dez vezes o que ganhava como juiz. A grande questão que se coloca é a existência de conflito de interesse. Pode um juiz que julgou empresas e homologou delações premiadas de dirigentes dessas empresas atuar dando consultoria para a companhia que tem relação com as empresas julgadas por ele? Parece evidente que há conflito de interesses, em grau bem mais acentuado do aquele que Moro condenava quando isso acontecia com outras pessoas. O juiz Sergio Moro decretaria medidas de apuração desse contrato dele. Não só determinaria buscas e apreensões como também uma prisãozinha preventiva para que esse Sergio Moro consultor delatasse eventuais comparsas. Acho que o seu contrato deve ser investigado e essa divulgação não resolve definitivamente o problema.

Moro diz que é vítima de arbítrio, porque o TCU investiga seus ganhos na consultoria Alvarez & Marsal e o contrato é privado.

Sergio Moro é um exemplo daquele que faz, mas não quer que seja feito em relação a ele. Vou dar um exemplo: Moro defendeu as dez medidas contra a corrupção. Uma dessas medidas dizia que provas ilícitas deveriam ser utilizadas para condenar pessoas. Ele e seus colegas foram hackeados, suas mensagens foram divulgadas. Qual foi a primeira defesa que Moro fez? “Isso é prova ilegal e não pode ser utilizada.” Aí eu ri. Se tivesse sido aprovada a medida que ele defendia, ele seria condenado por aquilo que foi achado no respectivo celular. Inclusive até hoje ele titubeia, as mensagens são falsas, não são falsas.

O TCU está cometendo alguma arbitrariedade contra Moro?

Eu acho que essa apuração tem que ser feita. Se efetivamente o TCU tem diante de si fatos que podem levar a condutas que envolvem gestos e ações de agentes públicos, ele tem que investigar. A apuração diz respeito ao período de atuação privada dele, mas tem relação com a vida pública. No caso do sítio de Atibaia, Lula já não era mais presidente da República, mas Moro disse que tinha relação com aquilo que ele fez na vida pública. E agora cai nessa contradição ridícula? Ele falava em “corrupção potencial”, teoria hoje aplicável ao caso em que ele se encontra.

A Lava Jato, em grande medida, foi possível por causa de leis anticorrupção aprovadas quando o senhor era ministro, como das delações premiadas. O senhor se arrepende?

Todas as leis que foram aprovadas são corretas. O que não avaliamos era o mau uso que seria feito dessas leis, senão teríamos trabalhado maiores detalhamentos. Se eu crio um instituto como a delação premiada e o juiz começa a fazer prisões preventivas para coagir alguém a fazer delação, eu evidentemente não tenho problema na lei, mas na prática do juiz que age de forma abusiva. Das leis, enquanto ideia, eu não me arrependo.  Mas deixou-se muita margem discricionária para o agir do Ministério Público e do juiz. Onde existe discricionariedade, há margem para arbitrariedade. Foi o que acabou acontecendo na Operação Lava Jato.

Num eventual governo do PT, isso vai ser revisto?

Eu diria que teria que ser discutido para ser aperfeiçoado, para retirar a margem de discricionariedade de autoridades.

Como o sr. vê hoje a derrocada da Lava Jato, com condenações sendo anuladas?

A Lava Jato tinha um objetivo que eu chamaria de virtuoso, que era combater a corrupção, mas a despeito de perseguir uma virtude não podemos dar vazão a desejos de carreirismo político e de ambição pessoal. Foi uma das operações mais abusivas da nossa história. O que estava por trás? Acho que existe um componente de messianismo de alguns membros, que se achavam como os inquisidores da Idade Média, para os quais os fins justificam os meios, vale tudo. Mas hoje também fica claro que tinha um projeto pessoal de alguns que queriam seguir carreira política. O resultado foi péssimo, porque atingiu a economia. Em todos os países se investiga a corrupção poupando as pessoas jurídicas, para que elas sejam saneadas, e se punem as pessoas físicas responsáveis. Outro ponto é que, quando se age de maneira abusiva, se deixa no mesmo balaio os impuros e os puros. O Eduardo Cunha hoje se vale exatamente dos abusos da Lava Jato, dizendo que foi injustiçado, para tentar medidas que possam colocá-lo numa situação melhor.

Cunha o acusa de fazer um complô com Dilma e Janot para atingi-lo.

Ele me cita mais de duas centenas de vezes no livro dele, e eu fico muito lisonjeado. Toda vez que ele me ataca, o meu currículo fica abonado, porque a sociedade e a história sabem quem é Eduardo Cunha.

O Judiciário tem anulado condenações por questões formais, mas também houve confissões, recuperação de dinheiro desviado. Anular agora, por questões formais, não causa a desmoralização da própria Justiça?

Questões formais não são meramente burocráticas. A forma da garantia tem um conteúdo, que é justamente evitar o arbítrio, evitar que se construam provas contra inocentes. As garantias existem para que a investigação ocorra de forma limpa, sem perseguições, sem que, por exemplo, um juiz ou promotor que tenha projetos políticos produza provas para conseguir seus minutos de glória. O culpado pela impunidade não é o juiz que anula o processo, é o que conduziu mal o processo. Quem conduz mal um processo é que está soltando a pessoa lá na frente.

O senhor menciona o ex-presidente Lula, que tem dito que foi inocentado, mas na verdade os processos foram anulados por questões formais. Isso pesa para um candidato que se coloca como a esperança da população?

A Constituição diz que só se considera culpada uma pessoa que for condenada com trânsito em julgado de sentença. Quem não é condenado presume-se inocente. Quando o Supremo anulou o processo do presidente Lula, obviamente o colocou na condição de qualquer pessoa que não pode ser acusada de nada, um inocente. Ou seja, o efeito reflexo da anulação do processo de Lula é justamente a sua inocência. A questão da imparcialidade de um juiz é formal, mas atinge o mérito de um processo. Um juiz parcial influencia naquilo que está nos autos, pega as provas que quer, ignora as que não quer, interfere no conteúdo. Sergio Moro fez isso. Essa ideia de que Lula não foi absolvido é errada.

Esse debate vai render na campanha.

Recentemente foi proposto um debate entre Sergio Moro e ex-ministros da Justiça. Eu aceitei. Moro recusou.

Tem setores do PT que criticam o senhor como ministro da Justiça de Dilma porque dizem que perdeu o controle sobre a Polícia Federal. Havia uma pressão para que o senhor controlasse a corporação? Como seria esse controle?

Fui criticado como ministro à esquerda e à direita. Gente que apoiava o governo, inclusive companheiros de partido ou da base governista, dizia: “O Cardozo não controla a Polícia Federal”. No entanto, quando as investigações resvalaram para setores oposicionistas, eu era acusado de instrumentalizar a PF. Uma vez fui convocado pelo Congresso porque eu era acusado de ter mandado investigar o cartel do metrô em São Paulo (nos governos do PSDB). Essas duas críticas antagônicas revelam uma má compreensão da visão republicana de Estado. Hoje é curioso porque, quando Bolsonaro tenta matar o espírito republicano na PF, eu vejo pessoas que me criticavam também criticá-lo. E eu digo: “Mas isso que Bolsonaro está fazendo é o que vocês queriam que eu fizesse? Que eu nomeasse um diretor-geral para não investigar gente da minha família? Que eu afastasse um superintendente porque está chegando em interesses econômicos que eu não quero que chegue?”

Quem fazia essa pressão para controlar a PF?

Eu diria que nunca recebi nada direto, era sempre difuso, pessoas comentando, disseram que, falaram que… Nunca ninguém me pediu “faça isso”. O que eu tive da presidente Dilma foi sempre respeito e um respaldo imenso.

Houve um episódio em que apontaram suspeitas de que o senhor pudesse interferir nas investigações da Lava Jato. Marcelo Odebrecht revelou certa vez que procurou o senhor para tentar impedir que as apurações chegassem nas contas da empreiteira na Suíça.

Não foi Marcelo Odebrecht, mas foram seus advogados que me procuraram, e eu sempre recebi juízes, membros do Ministério Público e advogados e coloquei na minha agenda pública. Fui muito acusado por isso. Os advogados me fizeram duas reclamações, e hoje posso falar porque não há mais sigilo: primeiro, não se estava apurando devidamente as escutas colocadas indevidamente na sela de Alberto Youssef (doleiro e delator da operação), como também o Ministério Público, através da Lava Jato, estava recebendo indevidamente provas da Suíça, o que obviamente era ilícito pelos tratados vigentes, porque a recepção de provas tem que vir por um órgão do Ministério da Justiça chamado DRCI (Departamento de Recuperação de Ativos e Cooperação Internacional). Se isso não acontece, a prova é ilegal. Eu fiquei espantado. Pedi que formalizassem e eu despachei para o DRCI me informar.

E tinha ilegalidade?

Naquele mesmo dia, o diretor do DRCI, doutor Ricardo Saad, me disse que havia um problema. “Nós temos demonstrações de que isso ocorreu. O procurador da Suíça nos disse que estava mandando agora pela via oficial porque já havia entregue aos membros da Lava Jato numa visita que fizeram.” Isso não pode ser. A Odebrecht pedia que eu desse uma certidão sobre isso. Eu liguei para o procurador-geral, Rodrigo Janot, e disse: “Fui informado disso, é absolutamente ilegal”. Ele disse que ia ver o que estava acontecendo. Depois ele me retorna e fala que a compreensão do Ministério Público era de que aquilo poderia ser feito porque a delação do Alberto Youssef autorizava. Eu disse: “Isso não afasta os tratados internacionais sobre a matéria, essas provas podem ser invalidadas e eu tenho o dever de informar (à Odebrecht)”. Só que Janot disse que tinha um problema, pois eu estaria cometendo um crime porque o juiz Sergio Moro havia decretado sigilo. Documentei por que não pude fornecer a certidão. Indeferi o pedido da Odebrecht, que foi à Justiça impetrando mandado de segurança contra a minha decisão, porque eles tinham direito de ter aquela informação e eu não poderia dá-la a não ser por ordem judicial. Eles conseguiram uma liminar no Superior Tribunal de Justiça e eu, então, liberei as informações. A partir daí, o que a Odebrecht fez eu não sei. Sei que houve depois a delação e talvez o caso tenha se perdido.

Falando em PGR, há notícias de que estão tentando convencer Lula a ignorar a lista tríplice para o órgão caso ele seja presidente. O que pensa sobre isso?

Eu sempre defendi que o Ministério Público pudesse escolher sua própria lista para buscar uma não interferência do governo na escolha do chefe da instituição. Todavia, a experiência que já vinha dos estados começava a me levar à percepção de que isso não ia bem, porque alguém que é eleito exclusivamente por sua corporação faz política para sua corporação, e essa política nem sempre é aquilo que é bom para a sociedade. Começa a oferecer certas vantagens internas, a dar certos privilégios para conquistar votos. Eu acho isso péssimo. Com o tempo, vim me tornando crítico dessa forma de indicação. O que também não me autoriza a ter convicção de que a escolha livre pelo governante seja a melhor. Estou propenso a discutir novos mecanismos para a nomeação de procuradores-gerais que passem por algum tipo de aferição social.

Vários setores cobram do PT um mea-culpa. Não houve corrupção? Não é preciso que as lideranças façam uma autocrítica?

Acho que pedir que uma instituição faça mea-culpa quando não era sua política institucional fazer aquilo que se acusa é um verdadeiro contrassenso. Se todos os partidos que tiveram pessoas acusadas de corrupção tiverem que fazer mea-culpa, eu não sei quem que não terá que fazer no Brasil. Por que só o PT, se a corrupção não nasceu de deliberações partidárias, mas de atos individuais que lamentavelmente aconteceram? Não querem autocrítica, querem uma expiação, com objetivos claramente políticos.

Há quem brinque que tanto o senhor como o ex-prefeito Fernando Haddad são da “ala tucana” do PT. Como o senhor vê a aproximação de Lula e Geraldo Alckmin?

Não só o Haddad, como o falecido Sigmaringa Seixas, eram chamados de “petitucanos”. Isso são estigmas que muitas vezes a disputa dentro do partido acaba colocando. Eu sempre fui petista, desde a fundação do PT, e nunca mudei de partido, mesmo quando convidado a fazê-lo para disputar cargo majoritário. O PT tem claras divergências ideológicas com o PSDB. Porém, há momentos da conjuntura em que temos que ampliar as convergências, como hoje. A ameaça do autoritarismo é real, não só nas próximas eleições. Formou-se no Brasil uma corrente de pensamento autoritário que tem expressão social e matizes claramente fascistas. Só existe uma resposta: a união dos setores democráticos.

O senhor sabe bem como é estar num governo que passou por impeachment. Ter Alckmin na vice não causa temor de que ele queira, como Michel Temer, buscar um impeachment?

Sinceramente, não. Eu não acho que o ex-governador seja um conspirador. Não acho que ele faria coisas que outros fizeram no exercício da vice-presidência. Posso estar enganado? A história poderá me demonstrar o oposto, mas não acredito nisso. Não acho que ele tenha esse espírito de matar a mãe para entrar no baile dos órfãos.

Alguns setores do PT defendem que é preciso esconder o governo Dilma durante a campanha de Lula. Como o senhor enxerga isso?

Um erro brutal, um erro de análise. O governo Dilma foi profundamente atacado e passou por uma crise muito forte. Houve crise econômica, pode-se discutir erros do governo. Mas Dilma é o símbolo-maior da demonização do PT. Ela foi atacada e teve um impeachment sem ter praticado um crime de responsabilidade. Gestão orçamentária era razão de impeachment, quando se provou que não houve acréscimo do endividamento público? Dilma precisa ser resgatada naquilo que o PT precisa resgatar: a tentativa de demonizar uma força política de forma injusta. Dilma é um símbolo de resistência, e esconder essa mulher é uma violência contra o direito das mulheres, como se mulheres que governam tivessem que ser escondidas. É um erro político, eleitoral e histórico. Na verdade, impeachment de Dilma está associado à prisão de Lula, é o mesmo processo. Não dá para dizer que Lula foi injustamente preso sem associar ao que Sergio Moro fez inclusive no impeachment de Dilma, quando divulgou ilicitamente aqueles áudios descontextualizados (entre a ex-presidente e Lula) e depois pediu desculpas ao Supremo.

Entrevista publicada originalmente na Veja.

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