Por Patricia Pillar, Paulo Saldiva e Guilherme Leal
Vitimando mais negros, letalidade policial é o sintoma mais agudo do racismo
A violência e a letalidade contra cidadãos pela polícia do estado de São Paulo têm aumentado vertiginosamente. Aumento que atinge, sobretudo, cidadãos negros.
Nesse sentido, várias organizações da sociedade civil pediram ao governador João Doria (PSDB) uma audiência em junho. Sem sucesso, solicitaram novamente em julho com o apoio de vários cidadãos entre os quais nos encontramos. No momento em que escrevemos, a solicitação ainda não resultou na pretendida audiência.
A proposta dos signatários é que seja uma reunião propositiva, com o intuito de discutir medidas a serem tomadas para combater esse estado de coisas inconstitucional. Estaremos presentes não para falar, mas como uma maneira de dar suporte ao protagonismo das organizações negras, de direitos humanos e de familiares das vítimas da violência de Estado. É também nossa maneira de dizer que esse é um assunto urgente para toda a sociedade.
Consideramos que nesse momento histórico, em que o mundo inteiro rediscute o papel da polícia, o governo do estado de São Paulo tem nas mãos a oportunidade de tomar a vanguarda do debate no Brasil, abrindo o diálogo com a sociedade civil. Diálogo fundamental, pois sem ele qualquer iniciativa estará fadada ao fracasso.
O monopólio da força, que só ao Estado pertence, tem como contrapartida a segurança de seus cidadãos. A essa concepção soberana do Estado se opõe o mau hábito de pensamento segundo o qual não há como evitar mortes acidentais e violência casual pela polícia contra cidadãos em bairros pobres e, especificamente, contra cidadãos negros.
Num país racista, em que todos somos racistas em certo grau —pois o racismo nos caracteriza e nada tem de acidental ou casual—, não surpreende que se queira explicar a violência policial de natureza racista como ação de um ou outro policial que acidentalmente mata e comete violência mais contra negros do que contra os demais cidadãos.
Pensando dessa maneira, o alto índice de mortes pela polícia corresponderia a eventos pontuais, causados por uma minoria de maus policiais. Vitimando muito mais negros do que brancos, a letalidade policial é, na realidade, o sintoma mais agudo do racismo que ao longo de nossa história distorceu inclusive o molde de políticas públicas, como é o caso da segurança.
Dessa forma, não surpreende que se trate como acidental aquilo que é estrutural, pois, como racistas que somos, considerar o estrutural como acidental é um modo de escapar de um fundamento que nos define.
Alguns, ou muitos, dirão que essa é a vida como ela é. Mas a vida como ela é provém de onde ela deve ser. Devemos continuar com a vida social como ela é mesmo sendo ela racista? Não há cidadãos plenos se todos não o são. Não há cidadãos plenos se uma cidadania democrática não é praticada e não é incentivada pelo Estado.
Enquanto houver racismo não haverá democracia.
André Lara Resende, Antônio Fagundes, Ari Weinfeld, Armínio Fraga, Ariovaldo Ramos, Beatriz Bracher, Bel Coelho, Belisário dos Santos Jr., Cao Hamburger , Djamila Ribeiro, Emicida, Evandro Fióti, Fernando Meirelles, Flavio Ermírio de Moraes, Guilherme Leal, José Carlos Dias, José Vicente, Juca Kfouri, Luiz Carlos Bresser Pereira, Luis Terepins, Luiza Helena Trajano, Marcio Utsch, Maria Alice Setubal, Maria Filomena Gregori, Milton Hatoum, Michel Schlesinger, Monique Gardenberg, Patricia Pillar, Padre Julio Lancellotti, Paulo Saldiva, Paulo Sérgio Pinheiro, Vinícius Lima, Walter Casagrande, Yalorixá Nivia Luz, Zezé Motta, são signatários, junto com organizações da sociedade civil, do ofício que solicita reunião com o governador João Doria (PSDB)
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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