Por Reinaldo Azevedo
Sei lá como os pósteros lerão tudo isso. Com bons olhos não será. Entre as muitas inovações trazidas pela Lava Jato ao direito penal — e ao processo penal propriamente —, está o milagre da multiplicação das ações, o que, é evidente, sempre tem um propósito político.
A notícia da hora envolvendo o ex-presidente Lula informa que a Lava Jato de Curitiba ofereceu contra ele uma nova denúncia, com imputações também a Paulo Okamotto e ao ex-ministro Antonio Palocci — este, no entanto, já é beneficiário de um acordo de delação premiada. Adivinhem quem é o centro e o alvo de todas as acusações que o ajudaram a sair da cadeia… Ninguém tem o direito de errar, não é?
Li as 121 páginas da denúncia. É impressionante! Qualquer advogado ou jurista com um pouco de vergonha na cara ficam corados. E vou dizer aqui as razões sem me comportar como juiz, declarando inocência ou culpa, o que nunca faço.
DO QUE TRATA A DENÚNCIA?
Começo observando que, dadas as 121 páginas da peça, não chegam a 10 as que tratam do objeto da denúncia, a saber: a Odebrecht doou, de acordo a lei, R$ 4 milhões para o Instituto Lula. Tudo se fez com o devido recibo, registro, declaração etc.
A força-tarefa sustenta, no entanto, que a doação legal é fruto de relações impróprias que o ex-presidente manteria com a empreiteira. Que provas há disso? Há o testemunho de Palocci, claro!, e e-mails de autoria de Marcelo Odebrecht. Segundo a Lava Jato, ele ordena que a doação seja feita numa espécie de conta corrente para fazer transferências a Lula e ao PT, que negam a existência da dita-cuja.
Pelo menos 100 páginas da denúncia nada têm a ver com o fato em si. Trata-se de uma reedição, agora em prosa, do PowerPoint de Dallagnol. Colocam Lula no centro de uma suposta organização criminosa, que se relacionaria com a Odebrecht e outras empreiteiras. Ressuscitam-se, como diria o poeta, todas as acusações desde as musas.
Prova de que a doação foi ilegal e derivou de contratos superfaturados ou o que seja inexiste. O que se tem é a palavra de delatores. E só. No mais, os procuradores pedem que Luiz Bonat, titular da 13ª Vara Federal de Curitiba, aceite a denúncia não porque existam provas contra Lula, mas porque Lula, afinal de contas, é Lula. Vocês não precisam acreditar em mim. Leiam a denúncia.
A MULTIPLICAÇÃO
Falo em milagre da multiplicação de denúncias por quê? Lula já é réu numa ação penal envolvendo a Odebrecht. A empreiteira teria decidido comprar um terreno para abrigar o Instituto que leva o nome do ex-presidente. Bem, a doação não aconteceu — até porque a entidade se estabeleceu em outro lugar. Mas, da operação, teriam saído recursos para a suposta compra de um apartamento contíguo àquele em que Lula mora em São Bernardo.
Acontece que esse tal imóvel tem um proprietário conhecido, que recebeu aluguel, com recibos. Há mensagens suas cobrando o pagamento. O próprio Sergio Moro descartou a falsidade material dos documentos. O Ministério Público Federal sustenta, no entanto, que eles são “ideologicamente falsos”.
Lula é réu na ação penal, embora o Instituto não esteja no tal terreno que a Odebrecht teria comprado e inexista qualquer evidência fática de que o apartamento lhe pertença.
De todo modo, notem que a denúncia trata de vantagens indevidas que a Odebrecht teria oferecido ao petista. Questão óbvia: por que diabos, então, essa acusação sobre o instituto não está na denúncia que já existe sobre o terreno e o apartamento?
Porque estamos diante de uma tática que consiste em enredar na teia as vítimas escolhidas. Há muito tempo não se está lidando com um Estado que tem a legítima pretensão punitiva diante do que considera uma evidência de malfeito, fazendo-o dentro das regras do jogo. Ao contrário: na Lava Jato, a regra do jogo atrapalha.
PROVAS ILÍCITAS
No dia 11 de fevereiro deste ano, informava o site do Supremo:
O ministro Edson Fachin, do Supremo Tribunal Federal (STF), negou seguimento (considerou inviável a tramitação) ao Habeas Corpus (HC) 180985, em que a defesa do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva pedia a suspensão da ação penal relativa à suposta cessão de terreno para construção da sede do Instituto Lula. Segundo o ministro, a competência do STF para examinar habeas corpus só se inicia após a apreciação do caso por um órgão colegiado, o que ainda não ocorreu.
A defesa sustentava que as provas que servem de base à ação penal seriam ilícitas pelo fato de as mídias apreendidas terem supostamente sofrido interferência externa entre a apreensão e seu encaminhamento ao Ministério Público Federal (MPF) e depois, quando foram enviadas aos peritos criminais federais. No HC ao Supremo, os advogados do ex-presidente questionavam o indeferimento sumário pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ) do incidente de ilicitude de prova apresentado, no qual apontavam “cenário manifestamente abusivo”.
A ILICITUDE
A que ilicitude se refere a defesa de Lula? Reportagem do UOL informou no dia 27 de fevereiro:
Em documento em que ratifica o pedido de absolvição do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) no processo em que ele é acusado pela Lava Jato de ter recebido da Odebrecht um terreno para a construção de uma nova sede para o Instituto Lula, a defesa do ex-presidente alega que os arquivos da Odebrecht foram violados.
No documento, entregue ontem (26) à 13ª Vara Federal de Curitiba, como parte das alegações finais da defesa do ex-presidente, seus advogados afirmam que a cadeia de custódia dos arquivos da Odebrecht foi violada, ou seja, a prova pode ter sofrido alterações no caminho entre os servidores localizados na Suíça (onde estavam armazenados) e a sua inclusão no processo.
Em setembro do ano passado, o UOL revelou que a Lava Jato teve acesso clandestino ao sistema de propina da Odebrecht.
Os arquivos dos sistemas Drousys e Mywebdayb, usados pela Odebrecht para planilhar os dados de propinas e doações eleitorais irregulares pagas pela empresa a diversos políticos, estão entre as principais peças de acusação do MPF (Ministério Público Federal) contra Lula.
Os arquivos teriam sido apreendidos nos servidores suíços usados pela construtora, contudo, a defesa de Lula foi autorizada pelo ministro Edson Fachin, do STF (Supremo Tribunal Federal), a produzir um laudo complementar ao parecer técnico da PF que analisou as provas.
A defesa de Lula contratou o perito Cláudio Wagner, que entrevistou os peritos da Polícia Federal envolvidos no caso. Os peritos da PF afirmaram à defesa de Lula que os arquivos dos sistemas Drousys e Mywebdayb foram colhidos na Odebrecht, e não extraídos diretamente dos servidores da Suíça.
“A Odebrecht recebeu [os arquivos] da Autoridade Suíça e ela abriu isso, e mexeu nisso, durante muito tempo isso ficou lá”, disse o perito da PF Roberto Brunori Júnior ao perito contratado pela defesa de Lula. “Os dados são da Odebrecht, eram dela”, completou o técnico da PF.
Na conversa, o perito contratado pela defesa de Lula diz: “Pelo o que eu concluí lendo, e lendo bastante outras coisas, foi isso. Que a Odebrecht pegou, mexeu lá, empacotou e mandou para o Ministério Público [brasileiro]. Eu não sei se isso que eu estou olhando aqui é o mesmo do Ministério Público da Suíça”.
O perito da PF, então, diz que isso ocorreu por fazer parte do acordo de leniência firmado pela Odebrecht, “que isso é da natureza do jogo”. “O cara [Odebrecht] está dizendo assim: ‘eu vou te entregar o sistema com os registros’. Aí ele vai lá e muda os registros todo [sic] e entrega o sistema. Pode? Claro que pode. Claro. O sistema é dele”, afirma Júnior.
(…)
EM SÍNTESE
1: Das 121 páginas da nova denúncia, nem 10 tratam da doação legal de R$ 4 milhões, que o MPF sustentava fazer parte de um acerto ilícito de contas; o resto repete as acusações genéricas;
2: não há evidência nenhuma de que a doação fosse a face legal de algo ilegal a não ser delações;
3: não há nenhuma razão para a denúncia de agora não integrar a outra, que envolve o terreno e um apartamento em São Bernardo — a não ser a disposição de ficar multiplicando as ditas-cujas para manter enredado o investigado;
4: a defesa aponta evidências consistentes de que o manancial de arquivos da Odebrecht tomados como provas são frutos da “árvore envenenada” pela ilicitude;
5: na outra ação penal envolvendo o instituto, não há prova de que o terreno foi cedido ao Instituto Lula, até porque ele não está lá, nem de que o apartamento de São Bernardo, que também seria fruto do acordo, pertença ao ex-presidente. Aliás, as evidências apontam que não pertence.
PARA REGISTRO FINAL
O cerco volta a se fechar contra Lula à medida que se vai ficando mais perto de votar a eventual anulação da sua condenação no caso do tríplex de Guarujá em razão da óbvia, evidente e escancarada parcialidade de Sergio Moro.
Vem à luz uma nova denúncia contra o ex-presidente no momento em que seus próprios advogados se transformaram em réus em outras peripécias da Lava Jato — nesse caso, a do Rio.
Ah, não! Eu não escrevo aqui um “Lula é inocente”. Nem nesse caso nem em outros. Que a sua defesa o faça e, se for o caso, o juiz. O que digo, sim, com todas as letras é que o conjunto da obra está muito longe de honrar o estado democrático e de direito e o devido processo legal.
E a própria denúncia é a maior evidência disso. Mais de 80% do calhamaço nada têm a ver com a imputação. Trata-se apenas de mais um esforço para demolir a biografia do acusado. Não me peçam para condescender com isso. Não vou. Hoje é com Lula. Amanhã será com quem? Pode chegar a vez, por exemplo, de Sergio Moro, né? Nunca se sabe. E aí se vai gritar o quê? Perseguição?
O processo penal no Brasil não pode continuar a ser uma terra de ninguém, disputada por quem saca primeiro. É essa Lava Jato que Luiz Fux e Edson Fachin exaltam no Supremo.
Nessa trilha, só abismo nos contempla.
Artigo publicado originalmente no UOL.
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