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O Código de Machado de Assis, estudo definitivo de Miguel Matos

O Código de Machado de Assis, estudo definitivo de Miguel Matos

Por Arnaldo Sampaio de Moraes Godoy

Estudos sobre a relação da obra de Machado de Assis com o Direito são importantes no selo Direito e Literatura. Entre eles, o clássico de Aloísio de Carvalho Filho, Machado de Assis e o Problema Penal, o livro de Nilo Batista, Machado de Assis Criminalista, a par do vigoroso estudo de José Osterno Campos de Araújo, Direito Penal na Literatura de Shakespeare, Machado e outras virtuoses.

Raymundo Faoro também tratou indiretamente do apaixonante tema em Machado de Assis: a Pirâmide e o Trapézio. O propósito do livro de Faoro não era uma investigação do conteúdo jurídico na obra de Machado de Assis. Compôs um estudo abrangente sobre pontos sociológicos, econômicos e políticos dos textos do Bruxo do Cosme Velho (essa referência não poderia faltar no assunto), porém marcados com os olhos de um jurista. Não nos esqueçamos que Raymundo foi também advogado militante, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil, de 1977 a 1979.

Opino aqui que o estudo definitivo sobre o assunto, Machado de Assis e o Direito, está contido no fascinante livro de Miguel Matos, O Código de Machado de Assis. Há um estudo anterior do assunto, que Miguel Matos publicou com Cássio Schubsky, quando os autores divulgaram trabalho então pioneiro sobre o direito na vida e na obra de Machado. Conheci Cássio, que morreu precocemente de infarto; tinha 45 anos. Era um apaixonado pela história do direito. A ConJur publicou uma entrevista do Cássio na edição de 8 de fevereiro de 2011.

Miguel Matos aprofundou e avançou no assunto. É o maior especialista na matéria. O Código de Machado de Assis é um livro inteligente, sutil, irônico muitas vezes, como assim também era o escritor estudado. A obra é organizada na forma de um Código, seguindo a estrutura da Lei Complementar nº 95, de 26 de fevereiro de 1998, texto que regulamenta a composição de normas jurídicas: um documento fundamental para quem estuda legística, ciência que se ocupa com a qualidade das leis.

O Código de Machado de Assis é um livro completo sobre os aspectos jurídicos da obra machadiana. O autor principia com uma “Exposição de Motivos” extremamente provocativa e que conclui com a necessidade de que o interessado também se socorra das fontes primárias; isto é, Miguel Matos exorta para que leiamos o grande escritor brasileiro. O autor divide o livre em três capítulos, que são subdivididos em 13 artigos. Um modo inusitado de expor o legado jurídico de Machado.

O Capítulo I trata de aspectos da vida de nosso grande escritor. Miguel Matos sintetiza a vida de Machado (artigo 1º), comenta (com documentos originais) a trajetória do funcionário público (artigo 2º), assunto pouquíssimo explorado. Nesse tema, lembrou-me apenas do estudo de Paulo Guedes e Elizabeth Hazin, Machado de Assis e a Administração Pública Federal, publicado pelo Senado Federal.

Machado trabalhou no Ministério da Agricultura, elaborou pareceres sobre assuntos gravíssimos, que incluíam problemas relativos a escravos e ações de liberdade. Miguel Matos reproduziu um parecer de Machado, exemplo de concisão e objetividade. Machado principia com a pergunta (Das sentenças (…) contrárias à liberdade, cabe apelação ex-offício?), segue com a opinião direta (Minha resposta é afirmativa) e em seguida justifica o ponto de vista que elegeu como legal e legítimo.

Ainda no Capítulo I, Miguel Matos explora a feição diplomática de Machado de Assis, o que ilustra com a amizade do escritor com Joaquim Nabuco. É o tema do artigo 3º. Em seguida, artigo 4º, o autor cuida da fundação da Academia Brasileira de Letras. Há uma ilustração que fixa Machado no centro de um círculo, e em torno dele gravitam, entre outros, Olavo Bilac, Raimundo Correia, Rodrigo Octavio, Rui Barbosa, Sílvio Romero, Joaquim Nabuco, Inglês de Sousa, Graça Aranha, Eduardo Prado, Coelho Neto, Araripe Júnior. São os fundadores da Academia Brasileira de Letras.

A Capítulo II trata da obra literária de Machado de Assis propriamente dita. No artigo 5º são explorados os romances, excertos sempre marcados por inquietantes questões jurídicas. São nove incisos (que variam de Ressureição a Memorial de Aires). O leitor é premiado com reproduções de recortes de jornais da época, relativos à propaganda e venda dos livros, bem como um fac-símile do contrato que Machado firmou com a Editora Garnier, pertinente à edição de seu último romance.

No artigo 6º Miguel Matos explora a poesia machadiana. O fragmento é dividido em quatro incisos. Miguel Matos reproduz e comenta um poema de Machado, que tem como tema a disputa entre os dois pássaros pelo amor de uma rosa. O sol é o juiz. Miguel Matos provoca o leitor, a propósito do cabimento de peça recursal. No artigo 7º o autor explora as peças teatrais de Machado, com reproduções de jornais, uma delas noticiando a apresentação de um espetáculo de autoria do autor estudado. O artigo 8º é dedicado à atuação de Machado como crítico literário.

A parte relativa às crônicas (artigo 9º) é uma das mais saborosas do livro. Miguel Matos demonstra como Machado enfrentava temas de direito constitucional, eleitoral, civil, notarial, penal. O leitor entusiasma-se com uma carteira da OAB, com foto e assinatura do próprio Machado, e com modelos de petição de Machado, que em crônicas motejava e comentava a atuação dos causídicos da época.

Desfilam pelas análises de Miguel Matos as crônicas de Machado sobre temas superlativamente contemporâneos, a exemplo dos direitos dos animais, da liberdade religiosa, de estatísticas da Justiça, da reforma do Judiciário, do voto feminino, de preconceitos de gênero, de brigas de galo, do problema do excesso de advogados, da dosimetria das penas, e até da legalização da prostituição. Miguel Matos presenteia o leitor com um verdadeiro roteiro para dissertações e teses no campo Direito e Literatura.

No artigo 10 Miguel Matos explora os contos de Machado, expondo a vasta galeria dos “doutores” machadianos, em passo extremamente importante para problematização e exploração de nossa cultura bacharelesca. Ainda no artigo 10, § 2º, Miguel Matos apresenta expressivo conjunto de citações de Machado de Assis.

No Capítulo III, artigo 11, Miguel Matos apresenta precioso inventário dos personagens jurídicos de Machado de Assis. Uma bibliografia completa é objeto do artigo 12. Miguel Matos ironicamente fecha o livro (artigo 13) observando que o trabalho é para a eternidade (glosando Napoleão e seu Código Civil), opondo sardonicamente o veto do Dr. Simão Bacamarte.

O livro é fartamente ilustrado e editado, o que revela paciente estudo do legado iconográfico relativo a Machado de Assis. José Sarney (que é da ABL) apresenta o livro. O ministro Luís Roberto Barroso é autor de um deleitoso prefácio, inclusive com reminiscência de um concurso de fantasias do Hotel Glória (quando estava em sua primeira juventude, afirmando estar agora na terceira, o que é indício de seu fortíssimo e inteligente humor machadiano). O ministro Barroso projeta as categorias do concurso no livro prefaciado.

O Código de Machado de Assis, de Miguel Matos, é uma obra definitiva porque põe pá de cal em assunto até então tratado de modo muito disperso. E é também o ponto de partida para uma aventura intelectual incessante e interminável pela obra literária mais nossa que conhecemos.

Quem me leu até aqui, por favor, pare tudo. E recomece a pensar o direito com referência nessa obra de Miguel Matos, que é marcada por superlativa excelência investigativa, acadêmica e cultural.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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