Por Alejandro Fabián Poquet – traduzido por Rafael Borges
Ao esvaziar qualquer crime de densidade política, a ordem pública atual fica imune a qualquer mudança
Quando o sangue é derramado, o senso comum instantâneo toma conta da cena trágica. O consenso político que hoje parece utópico (não apenas nesta região), é alcançado imediatamente e sem esforço por um grande público quando se trata de violência. A mesma política incapaz de construir acordos é extremamente hábil na promoção desse sentido coletivo. Esse paradoxo é um mistério de violência, embora para o senso comum a punição não contenha nenhum mistério.
A coisa é simples, não há espaço para reflexão porque as ideias precisam de tempo e o que não há é, precisamente, tempo para enfrentar acontecimentos sangrentos que desafiam fisicamente nossa existência. É uma questão de vida ou morte. De baixo é necessário acalmar a angústia e a vingança, e de cima é necessário dar uma pronta resposta às reivindicações de baixo.
As opiniões pública e publicada concordam que, se houver vítima, deve haver um autor de carne e osso, claramente identificável, convenientemente distinguível do público que assiste aos meios de comunicação ligados à cena do crime. Se possível, não mais de um responsável, pois o que é individual, isolável e palpável facilita a explicação do que aconteceu com a beleza da simplicidade simétrica.
Esse álibi argumentativo ou reação visceral é tão antigo quanto o tempo. No século 18, um homem chamado Damiens tentou matar o rei Luís XV da França. Numa praça parisiense às margens do Sena, o regicida foi submetido a uma histórica provação de horas, torturado, queimado com enxofre, puxado pelos quatro membros por cavalos até ser desmembrado com a ajuda do carrasco.
O público com interesse e paciência esperou que o corpo fosse lançado ao fogo. As cinzas consideraram o ataque resolvido. Para o discurso oficial, o fanatismo foi a causa do crime de lesa-majestade. As intrigas palacianas que poderiam influenciar Damiens não importavam, como funcionário de parlamentares que criticavam e conspiravam contra o rei; nem a violência vivida como soldado no exército; menos sua confissão de apenas chamar a atenção do monarca. A carta que ele escreveu para a vítima real foi obviamente ridicularizada, mesmo por um espírito tão iluminado como Voltaire.
A lógica do atalho individual para que tudo permaneça igual não terminou com o Antigo Regime. Ao contrário, teve seu renascimento científico um século depois, com a brilhante criação do delinquente ou criminoso nato, responsável pelos principais males sofridos por uma sociedade. O médico italiano Cesar Lombroso não poderia estar errado, não só porque sua invenção se baseou nos preconceitos éticos e estéticos da época, mas também porque utilizou os instrumentos das infalíveis ciências naturais. Seu laboratório era a cadeia e o asilo, e ele observava, mediu, comparou e fotografou os criminosos e loucos encarcerados.
É claro que esse método meticuloso não só ignorou o imenso número de pessoas desviantes e tolas que permaneceram impunes em liberdade, mas também os tempos violentos que a Itália atravessava no processo de unificação, em meio a confrontos, pobreza, desigualdade, conflitos internos e lutas. Nenhuma suspeita surgiu de que as mesmas pessoas sempre foram para a cadeia, pobres do sul, marginalizados e derrotados.
Pois bem, mais de um século depois que a natureza não científica desse método etiológico foi revelada, criminólogos confortavelmente financiados do primeiro mundo olham para os desenvolvimentos da neurociência e da genética para continuar com culpa individual. Do flerte desse tipo de neurocriminologia moderna com os poderosos, surge uma despolitização grosseira do crime, algo como um mal natural, sem história nem contexto, nem circunstâncias que vão além do imediato.
Uma impossibilidade lógica que se resume a cromossomos aberrantes, neurônios impotentes, moléculas quimicamente em curto-circuito, hipotálamo disfuncional, glândulas desonestas, lobos frontais danificados, meros déficits de inteligência.
Esta vulgata científica criminológica tem um enorme potencial político e social. Ao esvaziar todo delito de qualquer densidade política, a ordem pública atual fica imune a qualquer mudança. A política continua seu curso como Forrest Gump sua maratona e o senso comum continua mais compacto do que nunca, porque o problema da violência continua sendo individual, episódico, de um outro isolado perigoso ou doente, de acordo com um conhecimento técnico sofisticado, inquestionável e incontaminado de ideologia.
Mas o crime, como qualquer outra experiência humana, é dotado de sentido e vai além de seu protagonista. Mesmo o suicídio transcende as fronteiras do eu, sendo também um ato de cunho coletivo, como explica em várias páginas um importante sociólogo francês do final do século XIX e início do seguinte. Não é absurdo ir mais longe e afirmar que o crime é mesmo um mistério que precisa ser revelado, como qualquer outro. Você não pode deixar de interpretar, estabelecer relações, conhecer fatores por mais longe que tenha que ir, seja história, cultura, estrutura, política. Também a imaginação (desculpe a racionalidade punitiva) é útil para a construção da ponte entre o individual e o coletivo.
Acabaram de atentar contra a vida da vice-presidente da Argentina, Cristina Fernández. Um brasileiro de 35 anos residente no país tentou atirar no rosto dela com uma pistola 32, no momento em que ela cumprimentava pessoas que a esperavam na frente de sua casa. Como qualquer assassinato, é uma oportunidade imbatível de analisar o que aconteceu com um olhar atento.
A primeira resposta é a do senso comum que se identifica com a solução rápida sem sair do seu conforto, é a resposta imediata, limitada ao que as câmeras de televisão mostram. Um estrangeiro com antecedentes criminais, mitomaníaco, vítima de bullying, esquisito, carente de atenção, sem nada a perder, como definido por alguém próximo.
Será a resposta final dos ofícios judiciários, interessados em não contrariar a opinião pública, cientes de que é a opinião publicada, que é algo bem diferente. É a resposta, aliás, do mínimo esforço que cabe a essa corporação para não atrapalhar o lento ritmo burocrático: um estrangeiro sem nenhum ganho político, pego em flagrante à vista de todo o país. Prisão imediata e julgamento expresso. Matéria acabada.
Por sua vez, o presidente decretou feriado nacional no dia seguinte ao atentado, considerando-o o evento mais grave desde a recuperação da democracia. Além do fato de que o ex-presidente Raúl Alfonsín também foi vítima de um atentado fracassado após deixar o cargo, ao enfatizar as consequências institucionais e coletivas da tentativa de assassinato, a pausa nacional é propícia à busca de uma resposta à altura da tarefa deste extraordinário feito.
Não nego que o desejo de cinco minutos de fama possa ter pesado sobre o tédio existencial, mas mesmo neste caso esse tédio não pode ser entendido fora de uma cultura que celebra o sucesso rápido e a popularidade fácil, que também é dessa posição que precisa recorrer ao coletivo.
Tampouco ouso descartar uma mistura com alguma estrutura de personalidade vacilante, mas seria um grave erro deixar esse dano humano, político e social nas mãos de especialistas em saúde. As nosotaxias ou classificações psiquiátricas se movem em um determinado ambiente social, não se movem como sonâmbulos, mas são contidas, atrasadas ou aceleradas de acordo com o clima midiático, social e político.
Criticar a visão individual estreita do senso comum não significa negar o óbvio, a arma foi disparada por um homem com nome e sobrenome. Mas essa violência frontal geralmente é a ponta de um iceberg, um convite para mergulhar em uma violência mais profunda, subterrânea e sombria.
Poderia haver alguma ligação, mesmo inconsciente, entre o disparo desse estrangeiro e a ideologia repressiva de seu presidente Bolsonaro, que está levando a sociedade civil brasileira a fazer justiça com as próprias mãos? Um pouco mais aqui, a violência discursiva dos políticos argentinos, somada à violência de omissão da falta de resolução dos grandes problemas nacionais, poderia ter minimizado a barbárie de exibir a arma diante das luzes e câmeras da mídia? Essa barbárie é a forma obscena de buscar centralidade em um sistema que relega e marginaliza? Poderia o ritmo processual e a exposição midiática do processo criminal contra a vice-presidente ter subliminarmente empurrado o dedo do assassino?
São perguntas, não respostas, mas o primeiro passo diante de um fenômeno criminoso dessa magnitude é, certamente, ampliar o horizonte em que é preciso indagar com perguntas. Horizonte que não termina muito menos com essas questões. Um líder social está convencido de que não foi a polícia, mas Deus quem protegeu Cristina Fernández. A polícia, por outro lado, garante que foi a inexperiência ou o nervosismo do iniciante que se esqueceu de arrastar o ferrolho da arma para que a bala entrasse na câmara. Não faltam aqueles que se perguntam como é possível que a vice-presidente tenha aparecido em público sem tomar as precauções mínimas para sua proteção pessoal.
Humanidade, azar ou desígnio divino… e o senso comum se recusa a dotar o crime de mistério.
Publicado originalmente no El Cohete a la Luna em 4.set.22.
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