Tenho assistido com certo desânimo os debates sobre a suspeição do ex-juiz Moro. Independentemente das inclinações pessoais do leitor, gostaria de oferecer algumas balizas para superar esse impasse ou, ao menos, “limpar o campo” para divergências mais produtivas. E essas balizas vêm da teoria do direito. É estranho constatar isso, mas o direito é uma das poucas áreas do conhecimento na qual as pessoas se orgulham de ser “anti-teóricos”.
Ocorre que sempre teorizamos, mesmo quando dizemos que não. Por trás de nossa prática sempre há uma teoria. Até o maior dos materialistas tem de aceitar o paradoxo de estar propondo uma teoria. Até o pragmatista precisa de uma teorização para rejeitar a teoria.
Pois bem. Há vários modos de analisar o “caso da suspeição” do ex-juiz Moro. Hoje quero fazer uma limpeza, abrir uma clareira nessa floresta densa que é o fenômeno formado pela “lava jato” e força-tarefa, os diálogos capturados, a operação spoofing que, de modo transverso, acabou por validar as mensagens hackeadas, assim como os conceitos de (im)parcialidade, lawfare e agir estratégico do Ministério Público. Bola ao chão. E então ao centro do campo.
Como fazer isso? Simples e complexo. E faço-o a partir de um autor que é muito caro à doutrina jurídica do mundo e de muitos ministros das Cortes brasileiras. Falo de Ronald Dworkin e seu conceito de aguilhão semântico, positivismo e criterialismo. Parecem palavras difíceis, mas tentarei urbanizar essa província.
Como ocorre com praticamente qualquer caso jurídico (engana-se quem diz que isso só se dá nos “casos difíceis”, isto é, os casos sem uma solução direta “à mão” do freguês), podemos ter sobre ele divergências empíricas e divergências teóricas. As primeiras são autoexplicativas. Desacordos empíricos são desacordos sobre os fatos: aconteceu ou não aconteceu? Pense num caso comum de trânsito, de responsabilidade civil. Ocorreu o fato? Meu carro bateu ou não bateu no seu? Podemos divergir. Mas desacordos empíricos são de mais fácil resolução. É mais fácil concordar empiricamente. Temos verificações possíveis, no sentido forte da palavra. Provas factuais.
Já os desacordos teóricos estão em outra esfera. Não discordamos sobre os fatos. Não discordamos sobre o direito aplicável ao caso. Não discordamos sobre as leis ou precedentes relacionados. Mas discordamos sobre os fundamentos do próprio direito e as exigências desses fundamentos diante do caso concreto.
Utilizando esses conceitos, podemos organizar o debate sobre a suspeição nos seguintes pontos:
- Temos convergência sobre as questões empíricas, isto é, os diálogos são o que são. Eles existem. Estão revelados. E periciados. E tratam de relações inapropriadas entre acusação e juiz.
- Neste caso, como consequência, se não temos divergência quanto as questões empíricas, resta-nos saber se temos divergências teóricas (técnico-jurídicas) sobre o significado do empírico (sendo bem simples: qual é “o nome da coisa”?). Vamos discutir, então, se o direito admite ou não admite esse tipo de comportamento. Aqui, tertius non datur.
- Para que alguém insista numa divergência empírica, seria preciso negar a existência dos diálogos, ou aceitar que eles tenham ocorrido, mas minimizar sua frequência.
Diante desse tipo de negacionismo, é despiciendo discutir divergências teóricas. Porque se o empírico é negado, não há espaço para discutir acerca do que o direito tem a dizer sobre as consequências do empírico.
Portanto, admitido que tenhamos convergência sobre o empírico (os diálogos existem e dizem o que dizem), resta-nos enfrentar as divergências teóricas sobre o significado jurídico do empírico, isto é, o fenômeno empírico pode ser nominado de “suspeição-parcialidade”?
Eis o clarear da clareira. Temos de responder à pergunta: sobre o que estamos divergindo?
E é aqui que essa questão tão complexa, de diálogos e hackers e negativas e desculpas e normalizações e julgamentos e tentativas de não julgamento e justificações e notas na imprensa e manchetes e GloboNews e “narrativas” e manifestações com um juiz fantasiado de herói e protestos em frente a casa de ministro do Supremo… fica fácil.
Sim, fácil. Veja-se: não temos desacordos empíricos. Os diálogos estão aí e foram periciados. Temos também convergência no sentido de que, mesmo que derivados de ilicitude, os diálogos podem favorecer à defesa.
Eis o possível desacordo teórico: é legítimo que juiz e acusação assim procedam?
Desacordos teóricos, lembremos, são desacordos sobre os fundamentos do direito. Aquilo que entendemos como sendo ‘direito’ ou não sendo ‘direito’.
Aqui, leitor, é por isso que estou sempre fazendo menção e retornando àquela que é a pergunta fundamental. O que é isto — o direito. Essa é a pergunta que surge e volta a todo tempo. E volta agora no “caso da suspeição”. O que é isto — o direito?
Nesse ponto, entramos na discussão sobre como resolver desacordos teóricos1. O critério que emana da obra de Dworkin é a coerência. Para que uma interpretação do que o direito exige naquele caso demonstre ser superior às outras, ela deve ser capaz de oferecer um maior ajuste aos elementos interpretados e um conjunto de justificações mais consistente. Podemos dizer que ela deve apresentar uma “teoria” superior às demais.
Dessa maneira, não vale criar uma interpretação ad hoc para aquele caso, que contrarie todo o resto do Direito. Quem defender que não houve suspeição de Moro está obrigado a praticamente declarar a inconstitucionalidade do CPP nesse ponto, rever toda a jurisprudência e rasgar bibliotecas de doutrina sobre o processo penal. Teorias consistentes não convivem bem com anomalias, gambiarras e excepcionalidades.
Diante disso, sou tentado a negar que exista mesmo um desacordo teórico genuíno sobre a suspeição de Moro, no sentido de uma verdadeira disputa interpretativa sobre o que o direito exige ali. Com todo o respeito — e sempre sou lhano nas discussões — parece-me que o que existe, mesmo, é um lado interpretando o CPP e o outro lado inventando uma decisão sem qualquer ligação com o direito brasileiro — isto é, uma defesa de que o tribunal deve decidir assim, simplesmente porque acham que seria melhor para o país ignorar uma nulidade processual gritante como essa. Bom, isso é consequencialismo. Porém, ainda assim resta uma questão: consequencialismo a favor de quem? Bom para quem? Para Moro? E a história institucional do Direito? Desaparece?
De novo: O Direito admite diálogos como aqueles? O CPP admite? A CF admite?
Pois é. Não me parece que seja o caso. Ou é normal que, com tudo aquilo que foi consagrado desde que inaugurado o paradigma constitucional de 1988 — e o ordenamento é um todo coerente, não um apanhado de regrinhas recortadas —, juiz atue como chefe de acusação?
Desacordos teóricos são parte do Direito. E, como não há desacordo empírico, é possível que alguém venha aqui e diga que sim, que tudo aquilo é normal, é legítimo. Bem, não sou um relativista. Acho que quem disser isso estará errado. Objetivamente errado. Não, não é normal. Assim como torturar crianças é errado em qualquer lugar do mundo. Há, assim, um mínimo de objetividade a ser considerada.
Mas vamos lá. Ainda que se diga que é normal, aquele que assumir essa postura tem de estar preparado para ir com ela até o fim. E não vai poder reclamar quando o réu for outro. E esse réu pode ser, um dia, o próprio sujeito quem diz que isso tudo é normal.
Esse é o busílis. Agora é ver se o VAR vai mandar o jogo seguir ou se vai apontar a infração da qual até o juiz fez parte.
1 A famosa discussão sobre os desacordos é levantada por Dworkin para denunciar a incapacidade do positivismo, com sua visão empirista, de dar conta de aspectos fundamentais do fenômeno jurídico. Assim, o desafio que ele lança inicialmente é como explicar os desacordos teóricos. Um outro problema que enfocamos aqui é: como resolver esses desacordos teóricos? Toda obra de Dworkin oferece o coerentismo como modelo para tanto. Outros autores, como Cass Sunstein e Jeremy Waldron, podem ser lidos como continuadores desse outro debate.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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