Segundo dados de 2018, o Brasil tem 139 milhões de usuários com acesso à internet (perto de 70% da população), sendo que 127 milhões são usuários ativos do WhatsApp[1].
Hoje, para além das plataformas abertas e públicas de comunicação tais como Twitter ou Facebook, inquestionável a conquista do protagonismo pelo WhatsApp como a principal ferramenta de compartilhamento de informações pelos brasileiros, o que torna ainda mais dificultosa a realização de qualquer controle mínimo de veracidade ou autenticidade das mensagens repassadas. É o que também nos advertem, com propriedade, MACHADO, STEIBEL E KONOPACKI:
“(…) ferramentas de mensagem instantânea e interpessoal como o WhatssApp passaram a ser instrumentos relevantes para a difusão de conteúdo político e eleitoral, sem a mesma capacidade de escrutínio público sobre o conteúdo trocado por seus usuários. Uso intenso de ferramentas de mensagem instantânea como veículo de propaganda de campanhas políticas tornou-se, assim, um terreno propício para a proliferação de notícias falsas, pela ausência de ações específicas que fossem capazes de realizar qualquer tipo de fiscalização ou de medidas de mitigação com relação aos conteúdos trocados dentro destes canais”.
Por outro lado, não bastassem os naturais e intuitivos obstáculos à realização de maiores escrutínios sobre conversas travadas em plataformas interpessoais de comunicação, o fato é o de que, tal como a experiência cotidiana já nos revela, há, visivelmente, inquestionável grau de organização e de estruturação no encaminhamento concatenado, proposital e maciço de mensagens via WhatssApp, aí incluídas mensagens falsas, incompletas ou de conteúdo manipulado. É o que novamente também salientam MACHADO, STEIBEL E KONOPACKI:
“(…). dados apontam para a existência de uma organização elaborada e profissional na comunicação digital via WhatssApp. Essa trama de usuários e grupos foi o meio encontrado pelos estrategistas digitais para se criar uma estrutura de broadcasting e disseminar informação em larga escala para os usuários, de forma direcionada em pessoal. Esses dados levantam preocupações sobre quais tipos de informação são disseminadas nesses meios e eventualmente como estratégias de desinformação podem se beneficiar das capacidades de privacidade do WhatsApp, derivadas da criptografia ponta a ponta, para manipular o debate público”.
É claro que a utilização de estratégias de desinformação em plataformas de comunicação não é novidade entre nós, tendo sido objeto de profundo debate ao menos nos dois últimos pleitos eleitorais, considerado o uso de conteúdos não apenas falsos, mas, por igual, distorcidos, incompletos ou manipulados, como forma de promoção de determinadas agendas, com deterioração do debate político, ou como forma de desconstrução artificial da figura pessoal de candidatos, de lado a lado.
No que se refere à ciência, credita-se muito ao fenômeno da desinformação (desordens informacionais[2]) boicotes a campanhas de vacinação que colocam em fundado risco de reaparecimento algumas doenças já erradicadas.
Evidentemente que, num contexto dramático de pandemia mundial, inevitáveis seriam as desordens informacionais, aí incluída a denominadas “falsa ciência”[3].
Tornou-se caricato, nesse contexto, um áudio de determinado médico amplamente compartilhado em grupos de WhatssApp, com um cenário duro sobre o desenrolar da atual pandemia de covid-16: o áudio tempo depois foi reconhecido como fake, em mensagem que igualmente viralizou; posteriormente, nova mensagem, igualmente viralizada, assentando que aquela outra, que dizia que o vídeo era fake, é que era fake.
Estudos falsos, relatórios falsos, opiniões de pessoas que nem de longe têm qualificação para opinar sobre qualquer tipo de quadro epidemiológico sendo difundidas como nortes a serem seguidos. Houve de tudo. No Brasil e no mundo.
No entanto, nos últimos 3 dias verificou-se de modo muito acentuado no Brasil um dos elementos que costumam turbinar a disseminação da desinformação: uma severa disputa de narrativas sobre quais as melhores políticas a serem adotadas no momento da crise, catalisada por um tecido social ainda profundamente polarizado e politicamente e dividido.
O movimento no compartilhamento de mensagens de conteúdo desvirtuado foi perceptível e sincronizado: no espaço de poucas horas, a mesma mensagem era compartilhada em vários grupos. Horas dois, nova mensagem, a difundir a mesma ideia de modo distorcido, novamente compartilhada simultaneamente em vários grupos.
Até aí, nada de novo também.
O que chamou a atenção, agora, foram as duas principais estratégias repetidamente utilizadas como uma forma de induzir o receptor a aderir à mensagem e a tê-la como verdadeira.
Ao invés do compartilhamento de matérias de fontes desautorizadas ou completamente desconhecidas (como blogs, sites noticiosos, etc), optou-se, como deliberada forma de indução em erro, pelo compartilhamento de links de fontes reconhecidas e autorizadas (New York Times, Washington Post; El Pais, vg).
No entanto, o link para o site dessas fontes abalizadas do jornalismo (a grande maioria de jornais em língua estrangeira), era acompanhado de uma “legenda”, de uma “apresentação” que não guardava qualquer relação com o conteúdo mesmo daquilo que efetivamente veiculado na respectiva reportagem.
Uma mensagem dizia o seguinte: “Governador de Nova York acabou de dizer numa coletiva que vai voltar atrás no lockdown que ele mesmo decretou, pois as pessoas precisam voltar ao trabalho. Parece que a racionalidade está vencendo a imbecilidade no 1º Mundo”. Junto a esta narrativa, um link para um vídeo lançado na página do New York Times, com uma coletiva do Governador.
Como o link era de um site reconhecidamente sério (NYT) e como ninguém ou quase ninguém se dispôs a ouvir a coletiva, a mensagem percorreu grupos e grupos e foi utilizada como argumento de autoridade na defesa de uma dada narrativa, no sentido de que a política de isolamento social (hoje adotada pela quase totalidade dos países, sendo a exceção mais visível a Suécia) deve ser IMEDIATAMENTE revogada.
No mesmo espaço de tempo, outro link do NY Times era compartilhado. Agora, com uma legenda que dizia o seguinte: “Donald J. Trump acabou de dizer que, após 15 dias de quarentena, os Estados Unidos vão se abrir e os americanos vão voltar ao trabalho (…)”.
O link, juntamente com essa mesma “descrição” foi amplamente divulgado em vários grupos, juntamente com o suposto discurso (jamais feito) do Prefeito de Nova York.
No entanto, ao clicar na matéria, o que poucos fizeram (já que optaram por compartilhá-la com base no credenciamento da fonte jornalística, sem se atentarem para o fato de que a desinformação estava não na matéria em si, por poucos lida, mas na mensagem que a acompanhava e que a resumia de modo inverídico), fácil era perceber que em nenhum momento o Presidente dos Estados Unidos, naquele pronunciamento, fixou qualquer prazo concreto para o retorno das atividades, até porque a competência para tanto seria eminentemente dos Governadores e autoridades locais.
Houve, portanto, uma mudança na estratégia de captação de adesão do interlocutor, mediante desinformação, qual seja, a busca pela utilização de fontes reconhecidamente acreditadas, com a utilização de legendas intencionalmente falsas, na expectativa de que o leitor não vá, por nenhum modo, no afã de mais rapidamente replicar a notícia, conferir se a matéria realmente diz aquilo que narrado[4].
Outra estratégia facilmente identificada nesses últimos dias e nesse contexto de disputa de narrativas, foi a utilização novamente de fontes credenciadas de informação, mas de textos ou falas feitos há muitos dias e, portanto, completamente desatualizados e descontextualizados.
Uma vez mais a crença de que o destinatário, na instantaneidade de sua comunicação, vá repassar rapidamente a notícia, que é verdadeira, porém desatualizada, sem conferir a data original de sua veiculação.
Um exemplo caricato dessa estratégia veio com a recente propagação, no último dia, de um link do jornal El Pais, acompanhado da seguinte chamada: “Itália muda estratégia contra o coronavírus para combater o alarmismo e proteger a economia”.
Ora, a situação dramática por que passa a Itália é pública e notória.
Ainda assim, a matéria foi amplamente divulgada em grupos, e também reverberada por lideranças políticas, sob pretexto de defesa da narrativa que prega o fim imediato de políticas de isolamento social, consideradas as inexoráveis perdas econômicas delas decorrentes.
O estranho acesso recente à matéria, que conta com quase um mês, foi tamanho, que o El Pais fez constar de seu texto, aos que conferiram a íntegra da matéria, a seguinte nota da redação: “Nota da redação: Esta reportagem foi publicada em 28 de fevereiro, quando a Itália registrava 17 mortes por coronavírus. Desde então, o país mudou drasticamente a política para endurecer o isolamento e tentar estancar as milhares de mortes que colapsam o sistema de saúde”.
Outro vídeo amplamente divulgado em redes interpessoais de comunicação, e postado, nos últimos dois dias, por conhecidas lideranças políticas, traz o Ministro da Defesa de Israel em pronunciamento em que defende o isolamento meramente cirúrgico entre os mais vulneráveis, como forma mais efetiva de combater a epidemia de covid-19.
O mencionado vídeo é de mais de uma semana atrás, revela o posicionamento meramente pessoal de Naftali Bennet e não foi nem de longe adotado pelo Governo de Benjamin Netanyahu.
Hoje, Israel pratica regime ALTAMENTE SEVERO de isolamento social, com a proibição de afastamento da própria residência em no máximo 100 metros, sendo certo que, em entrevista coletiva dada na data de ontem (mais recentemente, portanto), o próprio Naftali Bennet alerta a população para a grave situação vivenciada pelo país e pela inexistência, em Israel, de aparelhos respiradores em quantidade suficiente.
Ainda assim, o vídeo segue exposto no canal de várias personalidades políticas e segue em compartilhamento.
Evidentemente que, na tentativa de cooptação do interlocutor, serão infindáveis as formas utilizadas para que uma mensagem de conteúdo impreciso, incorreto ou mesmo falso seja recebida como correta, conquistando a aderência do destinatário.
Num contexto como o presenciado, de isolamento social, de perdas econômicas e financeiras, de medo de uma pandemia de grandes proporções, de medo de uma grande recessão, há, evidentemente, uma natural fragilidade no estado emocional de todos.
A existência de mensagens abertamente conflitantes entre si em diferentes grupos de conversa culminou por converter o WhatsApp, essa relevante plataforma interpessoal de inquestionável centralidade na comunicação do Brasil, num ambiente tóxico, insalubre, em resumo, num fator a mais de angústia emocional e de desconfiança.
A responsabilidade social que cabe a cada um de nós nesse momento extremo e de incertezas é, dentre inúmeros outros comportamentos, a de depurar com muita cautela a informação que nos é repassada, conferindo fontes, datas, buscando sites de facts check e não repassando absolutamente nada que não provenha de fontes credenciadas, que seja verificado e devidamente relido.
No mais, se o debate é científico e econômico (e não ideológico ou político), é de prevalecer a regra da DESCONFIANÇA de quem se vale da desinformação como instrumento de defesa de sua narrativa. O recurso às também chamadas “junk news” pode revelar a fragilidade técnica daquilo para o qual se busca conquistar, a todo custo, seu apoio.
*Maria Claudia Bucchianeri Pinheiro, advogada. Mestra em Direito e Estado pela USP. Professora de Direito Constitucional e Eleitoral. Membro da Academia Brasileira de Direito Eleitoral e Político, da Comissão de Direito Eleitoral do IAB, da Comissão Especial de Direito Eleitoral e da Comissão de Assuntos Constitucionais do CFOAB
[1] MACHADO, Caio, STEIBEL, Fabro; KONOPACKI, Marco. O uso de redes sociais em campanhas políticas no Brasil: a transição de estratégias de plataformas abertas para mensageiros interpessoais, in Fake News e as Eleições 2018, Rio de Janeiro: Konrad Adenauer Stifyung, Dezembro de 2018.
[2] VERONESE, Alexandre; FONSECA, Gabriel. “Desinformação, fake News e mercado único digital: a potencial convergência das políticas públicas da União Europeia com os Estados Unidos para melhoria dos conteúdos comunicacionais”.
[3] SCHULZ, Peter. Notícias e ciências, verdadeiras e falsas: a credibilidade da informação científica.
[4] “Conforme observado no artigo ‘The scicence of fake News’, notícias falsas muitas vezes têm maior alcance e mais rápido se propagam por mais nós da rede do que notícias verdadeiras, pois produzem um estímulo psicológico que estimula o compartilhamento pelo senso de novidade e urgência sobre a informação recebida”. MACHADO; STEIBEL e KONOPACKI.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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