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Pergunta: Palavras importam? Retirar “ofício” ou “livre” importa?

Pergunta: Palavras importam? Retirar “ofício” ou “livre” importa?

1. A expunção da expressão “de ofício” sobre prisão preventiva
Outro dia escrevi aqui sobre a nomeação da juíza Amy para a Suprema Corte americana (aqui). Fiz comparações e até algumas ironias sobre o originalismo de lá e o garantismo “de cá”. Não vou me repetir aqui.

Ao ofício. Sabemos que a nova Lei 13.926/2019, apelidada pelo governo de “pacote anticrime”, estabeleceu que os juízes não podem mais decretar prisões preventivas de ofício. Só poderão fazê-lo a requerimento do Ministério Público, do assistente de acusação ou “por representação da autoridade policial”. A expressão “de ofício” foi expungida, deletada.

Pois na última sessão em que participou o ministro Celso na 2ª Turma do STF houve unanimidade, não só nas homenagens ao sainte, como para sufragar aquilo que o legislador disse. Já explicarei.

Nas palavras de Celso de Mello, a Lei 13.926 “ao suprimir a expressão ‘de ofício’, vedou de forma total e absoluta a decretação da prisão preventiva sem o prévio requerimento das partes ou por representação da polícia e do Ministério Público”. Ou seja, a partir do caso “deixa de ser lícita a atuação ‘ex officio’ do juízo processante em tema de privação cautelar da liberdade”.

Pronto. Por 5×0, o STF disse que onde não estava mais escrito x, devia-se ler exatamente “não há mais x”.

Para quem leu meu texto sobre a juíza Amy, citado no início, sabe que não advogo e nunca advoguei textualismo. Ou originalismo. Escrevi muito sobre hermenêutica, o “fit” (ajuste), lancei o Dicionário, tudo para superar essas falsas dicotomias.

A questão que fica é: por qual razão é tão difícil cumprir a lei em uma democracia? Por que isso teve que chegar ao STF, se era tão fácil? É mais ou menos como levar ao STF a prisão de alguém por um sabonete e “obrigar” o STF a conceder habeas corpus. Mas, veja-se: tribunais da federação e o próprio STJ interpreta(va)m a retirada da expressão “de ofício” como irrelevante. Por isso, a interferência do Supremo Tribunal. Por 5×0.

O ponto é: Por que isso não “funcionou” antes, na origem e nos tribunais intermediários, que se encontram antes do STF?

Esta é a pergunta que deve ser feita pela teoria do direito. Há poucos dias lancei a Função Social da Teoria do Direito (FSTD). Para tratar assuntos como esse.

Uma prisão decretada de ofício é ilegal, disse o STF. Por quê? Porque é uma prisão decretada contra expresso texto legal. Óbvio do óbvio.

Na verdade, um caso como esse deveria ser um easy case, mesmo que, para quem foi preso, tenha sido um hard case. Quiçá um tragic case, dependendo do que ocorreu no interior do ergástulo. E pouco importa de que crime se tratou. O direito é do fato e não do autor.

Vejam o tamanho do imbróglio hermenêutico bem brasileiro: precisamos ir até a Suprema Corte para que saibamos que “não se pode decretar preventiva de ofício” porque a lei mudou. E que não se deu atenção à essa alteração.

Permito-me dizer, em uma respeitosa análise hermenêutica: no Brasil, cumprir a Constituição, enfim, a legalidade constitucional (Elias Diaz) virou uma atitude revolucionária.

2. Da expunção da palavra “ofício” à expunção da palavra “livre”
Seguindo a mesma linha interpretativa do STF no caso desse HC (n. 188.888), tem-se muito claramente que também o artigo 371 do CPC expungiu a expressão “livre”. Antes de 2015 dizia que “o juiz apreciará (…) e indicará na decisão as razões da formação do seu LIVRE convencimento”. Com o novo CPC, foi retirada a palavra LIVRE.

Assim, se o STF enfim disse que devemos ler x onde a lei diz que x, bom, será que enfim poderemos dizer que não há mais livre convencimento? O raciocínio é o mesmo.

Imaginem um originalista norte-americano interpretando esse texto do CPC. Olharia a exposição de motivos e lá encontraria claramente que o objetivo da emenda supressiva foi a de retirar o livre convencimento para evitar a apropriação da prova, o subjetivismo etc. (ver aqui, aquiaqui [Ziel e Lucio Delfino], aqui, [Karina Fonseca e Fernando Knoerr] e aqui [Guilherme Valle Brum]). “Intenção do legislador”, não é? Talvez isso seja mais controverso em questão constitucional lá nos EUA, onde se busca descobrir o que os pais fundadores ou os drafters queriam dizer. Aqui, não é assim tão difícil saber o que o legislador quis dizer. Está claro o que constou na justificativa da emenda feita pelo Relator Paulo Teixeira. Posso dizer como testemunha, porque fui eu quem elaborou a sugestão. Fredie Didier estava presente.

Embora a clareza do texto e da “mens legislatoris“, há muitos autores de direito dizendo que a expulsão da palavra “livre” nada quer dizer (ver aqui a bela resposta dada por Danilo Lima e Ziel Lopes). Pois é. No caso da prisão “de ofício”, os mesmos doutrinadores que negam a força da supressão da palavra “livre” diriam a mesma coisa? Diriam que, embora não mais existir a previsão “de preventiva de ofício”, isso não tem importância e os juízes podem continuar a prender de ofício? Quer dizer: Não pode mais prender de ofício, mas não é “bem assim”?

Como seria então? Que bom que temos a Suprema Corte para dizer que é bem assim quando é bem assim, embora ela — a Suprema Corte — por vezes assim não proceda.

Ao mesmo tempo, há que se dizer: que pena que precisamos da Suprema Corte para desvelar a obviedade do óbvio. Tão fácil. E tão difícil.

Numa palavra final: Há coisas que não deveriam ser tema de discussão. Deveriam gerar acordos fáceis. Todos nós sabemos o que está dito ali. É claro que eu reconheço a importância de disputas interpretativas em vários momentos do direito. Mas tudo tem limite. Se as autoridades competentes começam a inventar o sentido do texto de maneira completamente arbitrária, acabou a hermenêutica jurídica e aí a discussão é para a ciência política: podemos chamar isso de democracia? Lembro aqui de Gadamer:

[…] para a possibilidade de uma hermenêutica jurídica é essencial que a lei vincule por igual todos os membros da comunidade jurídica. Quando não é este o caso, como no absolutismo, onde a vontade do chefe supremo está acima da lei, já não é possível hermenêutica alguma, “pois um chefe supremo pode explicar suas palavras até contra as regras da interpretação comum”. Neste caso nem sequer se coloca a tarefa de interpretar a lei, de modo que o caso concreto se decida com justiça dentro do sentido jurídico da lei. A vontade do monarca não sujeito à lei pode sempre impor o que lhe parece justo, sem atender à lei, isto é, sem o esforço de interpretação. A tarefa de compreender e de interpretar subsiste onde uma regra estabelecida tem valor vinculante e irrevogável.1

Essa reflexão de Gadamer me inspirou para o Hermenêutica Jurídica e(m) Crise. Aprendi que, para que haja hermenêutica jurídica é preciso que haja democracia. E vice-versa, me permito acrescentar!

Enfim, deixo a pergunta para os leitores: em uma democracia saudável, é normal termos que fazer uma verdadeira guerra doutrinária e jurisprudencial, apenas para afirmar que a retirada das palavras “de ofício” e “livre” querem dizer que a decisão não é mais de ofício e a apreciação da prova não é mais livre?


1 GADAMER, Hans-Georg. Verdade e método I: traços fundamentais de uma hermenêutica filosófica. Tradução de Ênio Paulo Giachini. 12. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 432.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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