Por Maria Fortuna e Nelson Gobbi
Projeto Mobile já contabilizou 129 denúncias desde 2019; base de dados será utilizada para dar projeção internacional aos ataques à liberdade de expressão
Qual o tamanho do cerceamento à livre expressão artística no Brasil nos últimos dois anos e meio? Quais as experiências de restrição vividas pelos artistas? Para tentar responder essas questões e mapear denúncias de censura a projetos culturais pelo país foi criado o Movimento Brasileiro Integrado pela Liberdade de Expressão, o Mobile, que lança nesta quinta-feira (12) uma plataforma para receber registros de repressão a iniciativas artísticas. Nos próximos meses serão realizados uma live e cursos sobre o direito à liberdade de expressão.
Até agora, o Mobile contabiliza um total de 129 denúncias: 94 episódios entre 2019 e 2020 e mais 35 no primeiro semestre de 2021. Formado pelas organizações 342 Artes e Artigo 19, em parceria com outras entidades que atuam na defesa da liberdade cultural no Brasil, e com apoio do Instituto Samambaia, o Movimento quer analisar e orientar cada denunciante. Uma ferramenta para coleta e análise técnica e jurídica dos casos foi criada, e é a partir dessas informações que será desenvolvido, com o levantamento dos últimos três anos, o “mapa da censura no Brasil”. Com os perfis dos projetos, a ideia é entender possíveis mecanismos de cerceamento e fazer com que essa base de dados tenha visibilidade no cenário político nacional e internacional. Um dossiê será apresentado à relatoria especial da ONU durante o encontro anual da organização, que acontece de 13 de setembro a 9 de outubro, em Genebra.
No site do projeto, é possível acessar todo o mapeamento de casos ou localizar episódios específicos, indexados por termos como “posicionamento político”, “raça e orientação sexual”, “religião,” e “gênero”. A plataforma também destaca artigos da legislação que defendem a liberdade de expressão e de manifestação artística e também explica como identificar episódios que podem ser caracterizados como censura.
Entre os acontecimentos recentes que constam no mapa, está o Festival de Jazz do Capão, na Bahia, que recebeu parecer desfavorável para captação de recursos através da Lei Rouanet. A justificativa da Fundação Nacional de Artes (Funarte) se baseou em uma postagem na página do Facebook, que posicionou o evento como “antifascista e pela democracia”. O incêndio na Cinemateca Brasileira, que pegou fogo no mês passado após alertas de especialistas sobre a má conservação do local, é outro caso listado.
O cancelamento da live “Roda Bixa” também está no levantamento. O projeto, criado pelo ator e diretor Daniel Olivetto para resgatar a memória de infância de pessoas LGBTQIAP+, foi suspenso pela Prefeitura de Itajaí, em Santa Catarina, na véspera da transmissão, após postagem crítica do secretário Especial da Cultura, Mario Frias.
— Esse tipo de movimento é fundamental. Nos ajuda a entender que estamos amparados, que não estamos sozinhos. Temos percebido que os casos têm se tornado mais constantes — observa Olivetto. — A gente vem se protegendo, se não você gasta o dia respondendo gente violenta que diz coisas horríveis. Mas, no nosso caso, o apoio da sociedade foi maior do que os ataques.
O músico Rowney Scott, organizador do Festival de Jazz do Capão, acrescenta:
— É importante ter um canal aberto, ainda mais em casos de censura velada, que recorrem a justificativas burocráticas para proibir.
A necessidade de criar o Mobile surgiu da percepção de que, além da extinção do Ministério da Cultura, em 2019, havia um movimento em curso para reduzir a diversidade da expressão artística no país, diz Mari Stockler, gestora cultural e coordenadora do 342 Artes.
— A partir da exposição “Queermuseu” (suspensa em 2017, no Santander Cultural, em Porto Alegre), quando organizamos um show do Caetano Veloso para angariar fundos para a mostra no Rio (remontada na EAV do Parque Lage, em 2018), começamos a tomar conhecimento de muitos casos de censura. Passamos a mapeá-los com a ajuda de advogados especialistas na Constituição — conta Mari. — Muitas vezes, as pessoas não têm noção de seus direitos. Queremos oferecer acolhimento e o conteúdo da lei.
A advogada Denise Dora, diretora regional do Artigo 19, organização de direitos humanos criada em Londres, em 1987, afirma que há um “crescimento sistêmico” dos casos de cerceamento a projetos culturais, aprofundado nos últimos dois anos.
— A censura virou uma agenda governamental, que passou também a atingir instituições privadas. O processo de ruptura institucional e democrática deu início a uma sequência de ameaças e restrições a projetos artísticos, como o fechamento de mostras, cancelamento de shows e espetáculos teatrais, festivais, mostras e produtos audiovisuais — cita Denise. — Os casos que estão no mapa foram pesquisados com a metologia de apresentação de casos para a ONU, com documentação, checagem de mais de uma fonte, evidências mesmo.
Para Denise, os eventos não podem ser vistos como episódios isolados, mas como uma política consistente de destruição do ambiente de produção artística e cultural:
— Não é como na ditadura, quando a polícia invadia teatros e batia em atores. Mas é a ideia de evitar, proibir, criar obstáculos para que as pessoas manifestem publicamente suas opiniões em forma de expressões artísticas. Vai do controle prévio do conteúdo das obras ao estrangulamento de linhas de financiamento público.
Procurada para comentar as denúncias dos casos citados como atos de censura, a Secretaria Especial da Cultura não respondeu até a publicação da reportagem.
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