Por Dora Cavalcanti e Priscila Pamela dos Santos
Cadeia não regenera; precisamos de metas ousadas de desencarceramento
Na formulação de políticas públicas, todo debate para eleger prioridades evidencia que, quanto mais grave o problema, maior é a necessidade de enfrentá-lo de forma transversal. O olhar multidisciplinar é a espinha dorsal da superação dos desafios públicos. É o caso da cruel realidade carcerária no Brasil, mais um retrato do abismo social que nos distancia, reproduzindo desigualdades. E é por isso que o combate ao racismo no Judiciário insere-se entre os temas que merecem a atenção do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social e Sustentável, que temos a honra de integrar.
O combate à cultura do encarceramento em massa, que viola direitos especialmente da população negra e periférica, não pode continuar sendo prioridade apenas das entidades de direitos humanos, das defensorias ou das organizações de familiares, sem as quais a situação seria ainda pior. Por sua composição representativa, o Conselhão pode ser decisivo para imprimir urgência à necessidade de superar as condições desumanas para homens e mulheres nos presídios, em um efeito cascata que espalha miséria e agrava a violência.
O olhar atento para a situação do cárcere desnuda uma realidade de presos que não cometeram crimes, de pessoas paradas na rua sem motivo ou que são enquadradas pela polícia ao voltar do trabalho para casa. Em sua maioria, são pessoas pretas. Se superar o racismo estrutural é prioridade do terceiro governo Lula, abraçar a complexidade do tema e fixar metas concretas de desencarceramento para os próximos anos é um belo desafio para o Conselhão. A frase que dá a partida a essa missão vem do próprio presidente: “Quando se faz política tem que se querer fazer o impossível.”
O Conselho Nacional de Justiça vem trabalhando pela implementação das medidas alternativas à prisão e recentemente aprovou uma resolução sobre o reconhecimento de pessoas para evitar a prisão de inocentes. O Superior Tribunal de Justiça tem dado imensa contribuição ao preconizar que a inobservância de garantias processuais enseja a nulidade das provas, dando um basta às invasões de domicílios sem mandado judicial e às abordagens baseadas na cor da pele. O ministro Silvio Almeida (Direitos Humanos) se soma a essa agenda com o Projeto Mandela e propõe a revisão do encarceramento em massa sob o viés da dignidade humana.
Temos hoje a terceira maior população carcerária do mundo, e isso é sinal de fracasso civilizatório, pois o cárcere não regenera. Precisamos de metas de desencarceramento ousadas, para ao menos alcançarmos uma população prisional compatível com o número de vagas disponíveis. Um olhar moderno, de futuro, atento para o fato de que penas alternativas regeneram mais do que a prisão pode tornar realidade a superação do déficit de vagas hoje existente (aproximadamente 200 mil, de acordo com a Secretaria Nacional de Políticas Penais).
Um quarto dos encarcerados no Brasil tem até 25 anos. Jovens sem formação ou perspectiva, divididos entre o tráfico e o trabalho mal remunerado, imploram por oportunidades. Além das instituições da República mobilizadas para reescrever a história, seria fantástico que a agenda de desencarceramento e respeito aos direitos recebesse a atenção —e o investimento— de bancos, de indústrias, do varejo, das startups, das empresas de saúde. Essa é uma agenda humanitária e também de desenvolvimento econômico, social e sustentável.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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