Por Sheila de Carvalho, Janaína Matida, William Cecconello e Hugo Leonardo
Brasil pode preencher vácuo legislativo que tem levado inocentes à prisão
As prisões injustas por erros de reconhecimento têm se tornado tópico fixo na crônica policial brasileira, com novos casos a cada semana. Na posição de suspeitos, jovens negros que, ao lado de suas famílias, têm de lidar com prejuízos pessoais incalculáveis, infligidos com desconcertante anuência do sistema de Justiça.
A recorrência dos erros escancara o racismo nas práticas do Judiciário e torna inevitável imaginar por quanto tempo tais injustiças encontraram no silêncio das instituições um fator de autoconservação. Especificamente sobre o reconhecimento fotográfico, não se sabe exatamente qual o impacto das tecnologias de produção e difusão de imagens no aumento da escala do problema; contudo, mesmo antes do advento do smartphone, muitos podem ter tido as vidas destruídas até que o tema chegasse ao debate público.
A tecnologia criou novas condições de replicação de preconceitos sociais muito antigos. Nos EUA, um estudo do professor de direito Brandon Garrett (Universidade de Duke) sobre condenações de inocentes revisadas a partir de provas de DNA, analisou 250 revisões criminais e chegou a 190 condenações causadas por reconhecimentos falhos. Em 93 delas (49%), quem reconheceu era de raça diferente de quem foi reconhecido. Em 71 casos (38%), homens negros foram reconhecidos por mulheres brancas.
No Brasil, as frequentes injustiças fizeram pairar desconfianças sobre o reconhecimento como método de produção de prova, especialmente o fotográfico. A psicologia do testemunho, no entanto, revela que não é necessariamente a mídia —isto é, a fotografia— a causa dos reconhecimentos falhos e sim os procedimentos adotados ou a falta deles. Se feitos corretamente, tais procedimentos tendem a reduzir drasticamente a margem de erro do funcionamento da memória —que pode ser sugestionada e involuntariamente produzir uma recordação falsa.
A memória humana, como uma cena de crime, requer cuidados porque pode ter seus conteúdos permanentemente alterados por procedimentos mal feitos. Um dos mais comuns (e o que tem mais riscos de levar um inocente à prisão) é o “show up” —quando um único suspeito é apresentado, pessoalmente ou por foto, distorcendo a memória da testemunha ou vítima a partir desse sugestionamento.
O reconhecimento de pessoas é regulado pelo artigo 226 do Código de Processo Penal (CPP), de 1941, refletindo o descompasso com avanços científicos e práticas internacionais recentes. Esse vácuo legislativo encontra a possibilidade de começar a ser preenchido. Recentemente, o Senado votou o projeto de lei 676/2021, que altera o CPP, aprovando também especificações sobre o reconhecimento fotográfico.
Escrito com a colaboração de especialistas, o texto enviado à Câmara proíbe o “show up” e a apresentação de fotos que se refiram somente a pessoas suspeitas, integrantes de álbuns suspeitos e extraídas de redes sociais. A proposta ainda prevê que seja registrada a raça autodeclarada de quem reconhece e da pessoa eventualmente reconhecida. As modificações visam trazer maior rigor ao reconhecimento, diminuindo o risco de contaminação da memória.
A ciência tem demonstrado que o reconhecimento realizado por procedimentos padronizados é mais confiável, embora o funcionamento regular da memória não deixe de incorporar uma margem de erro. Exatamente por essa razão, deve-se reconhecer o avanço do PL 676/2021, ao determinar que o reconhecimento não corroborado por elementos probatórios independentes é insuficiente para a condenação, bem como para a prisão.
Se for aprovado pelos deputados, o Brasil dará um passo que pode reduzir o número de prisões de inocentes, evitando, assim, a normalização de um problema cuja extensão concreta é desconhecida, mas sabidamente monumental.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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