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Reconhecimento jurídico do poliamor e o direito fundamental à busca da felicidade

Reconhecimento jurídico do poliamor e o direito fundamental à busca da felicidade

Por Izabella Borges, Tamara Dias Brockhausen e Katarina Brazil

Falar sobre a liberdade de viver relacionamentos poliamorosos nos parece ser um ato revolucionário, sobretudo em um país Ocidental, que tem a monogamia como pilar social, construído ao longo da história sob influências religiosas, diplomáticas e do conceito de propriedade privada, para citar algumas.

Nesse passo, é importante deixar bem fincado que a consolidação da monogamia foi essencial para a construção do sistema patriarcal, que atribui ao homem o poder central na tomada de decisões em uma sociedade.

Basta pensarmos, a título exemplificativo, em como a família monogâmica teve papel primordial no período feudal, no qual se estabeleceu que à mulher caberia o dever de procriar herdeiros, governar a casa, dar ordens às escravas, que por sua vez eram obrigadas a manter relações sexuais com o chefe da família, que se ocupava conquistando títulos e propriedades enquanto era servido por variadas mulheres.

Em dias atuais, apenas se sofisticou o script. Mulheres são estimuladas a crer no mito do amor romântico, que as faz escravas de todo tipo de consumo que hipoteticamente às levaria até uma espécie de príncipe encantado, ao lado de quem se encontraria a fonte do amor inesgotável, o que as estimula a sonhar com um amor único, monogâmico e especial1.

Ao homem — e ao capitalismo, mecanismo que enfatiza o poder do homem desde o surgimento do conceito de propriedade privada —, a situação é bastante conveniente, afinal, à medida que os sonhos femininos aumentam, o homem se torna muito mais requisitado e tem cada vez mais mulheres disponíveis em sua rede de afetos sem que seja preciso abrir mão do relacionamento monogâmico, afinal, é bastante conveniente manter a esposa que procria em casa, enquanto se relaciona às escondidas.

Esse parece ser o ponto central do poliamor. Uma ode à verdade, à ética, já que tem em sua essência que as pessoas integrantes da teia amorosa sabem da existência de todas.

Falar sobre poliamor é considerar que o ser humano tem a capacidade de nutrir múltiplos afetos. Seja como explica Platão em seu Banquete, o amor romântico, o sexual ou o fraternal, a verdade é que é possível sentir todos esses amores por pessoas diferentes, e optar por viver todas essas relações concomitantemente, escolha que nos levaria a uma vida menos hipócrita e mais verdadeira.

Dentro da lógica poliamorista pode haver arranjos diversos, mas o que diferencia a relação de casal aberta para uma relação poliafetiva é o vínculo amoroso existente entre os participantes, que não pressupõe o relacionamento sexual e afetivo entre todos, mas implica no conhecimento da verdade por todos os envolvidos. Em outras palavras, o relacionamento poliafetivo pode se constituir pelo envolvimento amoroso de todos os participantes, ou apenas pelo enlace de uma pessoa com as demais.

Há quem estude essa nova categoria de relacionamento a partir da ideia de que seres humanos podem não ter institutos monogâmicos, razão pela qual não se justificaria a imposição de relacionamento afetivo sexual com exclusividade a uma pessoa.

Nos parece que a depender da consciência evolutiva alcançada por cada ser humano, haverá um argumento a justificar a escolha que lhe faça mais sentido.

Já para outros, com maior grau de comprometimento a seus processos de autoconhecimento, pode fazer mais sentido a compreensão de que a satisfação absoluta dos instintos primários leva ao hedonismo, a busca desenfreada pela satisfação dos desejos, que mantém o sujeito em gozo, estagnado em sua evolução pessoal.

Por mais que para a sociedade monogâmica ocidental pareça que viver uma relação poliamorosa seria esdrúxulo, caricato, swing, adultério, sacanagem, a verdade é que o conceito dessa forma de viver os afetos traz muitas belezas por trás de tantos mitos, como um maior grau de desapego, maturidade emocional, respeito e propósito na escolha desse caminho, pois os envolvidos estão abertos a se desenvolver por meio da manutenção dos vínculos afetivos que julgam essenciais, sem abrir mão da busca pela felicidade.

É curioso que se aceite a escolha de viver um relacionamento aberto, com a manutenção de diversos vínculos sexuais transitórios, e ao mesmo tempo soe estranho que se mantenha a estabilidade afetiva múltipla. Não há qualquer motivo para se justificar ser a banalização do sexo mais valorosa do que o reconhecimento do amor estável por mais de uma pessoa.

Talvez o poliamor possa ser uma forma de nos manter atentos aos nossos afetos verdadeiros, não mais nos anestesiando para suportar a divisão da castração.

Há de se consignar que o poliamor não se confunde com a poligamia, que permite apenas aos homens a multiplicidade de afetos.

No campo do Direito, a questão que se coloca é quanto ao reconhecimento das relações poliamorosas estáveis como espécies de família, justamente pela possibilidade de se constituírem como uniões duradouras.

Para tanto, se faz necessária a desdogmatização do mito da monogamia pelo Direito, para que se apresente um horizonte capaz de pôr fim à invisibilidade dos que escolhem viver múltiplos afetos com estabilidade, e das famílias advindas desses arranjos.

Lembremos que o caráter mais profundo atrás de um mito é o poder que ele exerce sobre nós, geralmente à revelia de nossa natureza, nossos instintos, nossas tendências. O enunciado de um mito anula a crítica, bem como a possibilidade da razão, de tal forma que torna o exercício dela ineficaz2.

Assim, é possível afirmar que o mito da monogamia não se sustenta diante das contradições que envolvem a prática e os costumes sociais, pois monogamia não implica em fidelidade.

Ao contrário, é comum se observar que certos arranjos monogâmicos amorosos não possuem como fonte apenas o matrimônio, mas também relacionamentos de fato, como as uniões paralelas, o concubinato e os relacionamentos extraconjugais. Assim, é forçoso reconhecer que o adultério decorre da monogamia, “se assim o é, porque injetar tantos preconceitos nas relações poliamorosas? Talvez não seja possível responder à essa indagação sem uma boa dose de hipocrisia”3.

Lembremos que há proteção jurídica reconhecida para o concubinato, construção jurisprudencial necessária para atender às demandas da vida em sociedade. Por outro lado, o Supremo Tribunal Federal já flexibilizou os ditames do artigo 226 da Constituição Federal, que em seu parágrafo 3º traz que “para efeito da proteção do Estado, é reconhecida a união estável entre o homem e a mulher como entidade familiar, devendo a lei facilitar sua conversão em casamento”.

Isto porque na ocasião do julgamento da ADPF 132 e da ADI 4277 se consignou que nosso sistema jurídico não possui meios para catalogar todas as famílias que surgem a partir das configurações eleitas pelos indivíduos, razão pela qual em prestígio às garantias constitucionais da dignidade da pessoa humana, da igualdade entre homens e mulheres, da liberdade individual e da segurança jurídica, se reconheceu a união estável havida entre pessoas com a mesma identidade de gênero, ficando vedadas quaisquer formas de discriminação em razão dessa escolha.

As uniões poliamorosas devem caminhar pela mesma via de reconhecimento, ainda que vagarosamente, já que a análise paradigmática citada fincou a afetividade, a estabilidade e a continuidade como elementos jurídicos aptos a constituir entidades familiares.

Em 2012, na cidade de Tupã, interior de São Paulo, se registrou a primeira ata notarial declaratória de união poliafetiva entre três pessoas, posteriormente anulada pelo Conselho Nacional de Justiça, em 2018, ocasião na qual se proibiu outras lavraturas da mesma espécie.

Na julgamento em tela, o Instituto Brasileiro de Direito de Família defendeu que fosse reconhecido o registro, sob o argumento de não haver limitação constitucional quanto aos modelos de constituição de família, citando o estado laico como condição para a viabilização da democracia e suas ideias plurais, que se desprendem da necessidade de enquadramento a qualquer estrutura legal predefinida quanto aos possíveis arranjos familiares.

Ressaltemos que a monogamia não tem status normativo, mas de valor individual, eis que a autonomia privada quanta às escolhas dos arranjos familiares não pode sofrer intervenções estatais limitadoras, assim como as garantias constitucionais já citadas nesse texto devem prevalecer em detrimento de quaisquer valores morais e convenções religiosas, ainda que tenham sido eleitos pela maioria.

Os tempos mudaram, e ao Direito cabe reconhecer as novas criações familiares que têm por finalidade o exercício do afeto por múltiplas maneiras, sendo necessária releitura constitucional que priorize a liberdade sexual, o direito à intimidade, a dignidade da pessoa humana, além da autonomia da vontade dos sujeitos.

Por tais razões, o reconhecimento das relações poliamorosas como entidades familiares não pode ser questionado quanto às possíveis consequências patrimoniais. Muito embora os questionamentos sejam muitos, não podem servir de argumento válido para limitar o exercício da liberdade individual, mesmo que possam impactar direitos previdenciários ou sucessórios, ao Estado cabe encampar a necessidade de ajuste, em respeito ao princípio da não discriminação.

Assim, não há qualquer justificativa válida para se retirar as garantias de liberdade dos grupos que optam por diferentes arranjos amorosos, hipótese na qual a autodeterminação afetiva dos sujeitos estaria prejudicada, afinal a forma de se organizar em família é escolha individual, ainda que algumas formações agridam grupos da sociedade, é preciso que se busque formas de assegurar a isonomia legal às diversas maneiras de se constituir família, mesmo que excêntricas ou transgressoras dos valores monogâmicos.

É por meio do livre exercício das escolhas individuais de constituição familiar que se retoma o verdadeiro sentido da família como base da sociedade, na qual as relações de afeto são apoiadas nos princípios da dignidade da pessoa humana e da solidariedade, independente do modelo familiar escolhido.

Temos muito a evoluir para que alcancemos um olhar mais empático, desprendido da visão etnocêntrica que exclui modelos portadores de traços de diferença em relação ao grupo dominante, sobretudo para que aceitemos as escolhas alheias como exercícios da liberdade individual, ao invés de ameaças às nossas escolhas pessoais.

O caminho para o debate sobre arranjos familiares contemporâneos nos provoca o exercício da humanidade que existe em nós, e também pode nos levar a conjecturar sobre os motivos de nossas próprias escolhas.

Talvez seja utópico, mas é bom sonhar com os bons ventos que podem nos inspirar a decisões pessoais pautadas na verdade, na responsabilidade afetiva, no autoconhecimento, e porque não pensar em tudo isso com a liberdade de experimentação garantida pelo Estado Democrático de Direito. Sonhar é bom, mas amar e implementar é ainda melhor.


1 WOLF, Naomi. O mito da beleza: como as imagens de beleza são usadas contra as mulheres. Rio de Janeiro, 11ª ed, Rosa dos Tempos, 2020.

2 ROUGEMONT, Denis de. O amor e o Ocidente. Tradução de Paulo Brandi e Ethel Brandi Cachapuz. Rio de Janeiro: Guanabra, 1988.

3 XEREZ; BRAZIL. Análise jurídica da poliafetividade a partir do filme Eu Tu Eles. Anamorphosis. Revista Internacional de Direito e Literatura, v.5, n. 1, janeiro-junho 2019, p. 149-171

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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