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‘Tenho câncer.’ Como falta de informação e de solidariedade pode matar

‘Tenho câncer.’ Como falta de informação e de solidariedade pode matar

Por Vanda Pignato 

Muitas ainda sofrem da falta de acesso a informações sobre a prevenção que pode salvar milhares de vidas de mulheres. Minha experiência me transformou radicalmente

Neste mês de outubro, que é conhecido internacionalmente como o Mês Rosa pela conscientização e para o controle de câncer de mama, pensei muito na minha experiência pessoal na luta contra o câncer. No meu caso foi no endométrio. Muitas mulheres que vivem na pobreza devem enfrentar a triste realidade da falta de acesso a informações sobre o autoexame e aos exames de prevenção que podem ajudar a salvar a milhares de vidas em todo o planeta. A minha experiência foi muito forte e, assim, me transformou radicalmente. Pois me fez renovar minha determinação em lutar principalmente no campo das reivindicações das mulheres.

Em 2009, quando a Frente Farabundo Martí para a Libertação Nacional (FMLN) conquistou com Mauricio Funes o primeiro governo de esquerda em El Salvador, exerci o cargo de primeira-dama e secretária de Inclusão Social. Essa secretaria foi fundada por mim, com o objetivo de criar políticas públicas, principalmente aos grupos mais excluídos, com enfoque nos direitos humanos. Uma das minhas prioridades foi criar um projeto chamado Cidade Mulher (CM). Tratava-se de um programa de fortalecimento institucional que partia da ideia de construção de um novo modelo de gestão pública para a igualdade.

A Cidade Mulher articulava, por meio de centros de atenção integral e integrada, e em uma mesma infraestrutura, 18 instituições do Estado que prestavam diferentes serviços essenciais para as salvadorenhas. Entre eles, saúde sexual e reprodutiva, violência de gênero, educação em direitos e autonomia econômica. Desse modo, era posto em prática um sonho idealizado durante a campanha eleitoral de 2008. As mulheres salvadorenhas representavam 53% da população. Mas, apesar de serem maioria, eram invisíveis nas políticas públicas e, portanto, o objetivo era mudar essa triste realidade.

Acesso a direitos e saúde

A maioria das mulheres prioriza o cuidado da família e dos filhos, colocando suas necessidades essenciais em último lugar. Não conhecem seus direitos, não têm tempo para participação politica, realizam trabalho doméstico, extenuante, não remunerado. E agora, com o agravante da pandemia, a situação é mais dramática. Assim, acabam se descuidando da saúde. Suas necessidades são sempre postergadas e muitas vezes acabam tendo de viver com um agressor por não ter autonomia econômica. As instituições que elas necessitavam para reivindicar seus direitos estavam dispersas e eram ineficientes. Então, tive a ideia de facilitar o acesso às mulheres. Em uma mesma manhã elas podiam realizar diversas consultas em diferentes áreas, enquanto isso, cuidávamos dos seus filhos. Eram mulheres cuidando de mulheres.

Uma das prioridades do CM era a detecção e prevenção ao câncer de mama e serviço uterino (responsável pela morte de milhões de mulheres no mundo). O Cidade Mulher oferecia ambos os exames gratuitos a todas as mulheres, mas era necessário divulgar esse tema nos territórios. Por isso, organizávamos várias atividades nas comunidades na periferia e no campo, mercados, escolas etc.

Em 2014, com a eleição do novo presidente Salvador Sanchez Ceren, a FMLN voltava a ganhar as eleições. O presidente eleito me pediu que seguisse na Secretaria de Inclusão Social. E eu aceitei. Nesse período haviam muitos assassinatos de policias, vítimas dos grupos conhecidos como “pandilleros” ou “Mareros ” (que são criminosos que se dedicam ao narcotráfico, sequestro, roubo, trafico de pessoas, violência extrema com as mulheres, LGBTI e assassinatos por encomenda). Uma espécie de milícia.

Em 2015 foi assassinada a primeira mulher policial. Prestei apoio à família da vítima e fui ao velório. Um mês depois foi assassinada a segunda policial e aí começa a história que quero contar.

Homenagem aos mortos

É costume em El Salvador, quando morre um policial ou um militar, entregar a bandeira de El Salvador à família. Eu cheguei na casa da mãe da falecida antes que qualquer outro funcionário e ela me contou que a filha tinha sido combatente da FMLN durante a guerra. E que era muito injusto que ela tivesse sobrevivido aos horrores da guerra e ter morrido como policial. Ela estava muito indignada e disse que não queria receber a bandeira. Eu disse a ela que respeitava a decisão, mas que a filha foi uma heroína em ambos casos e merecia essa homenagem. Foi um velório muito tenso. Policiais, homens e mulheres, reivindicando mais segurança para eles. 

Saí do velório muito triste, muito mal, e comecei a ter cólicas fortes na área do útero. Liguei para a minha ginecologista e pedi a ela se poderia me atender de emergência pois não aguentava a dor. Ela me disse que não tinha tempo e que me avisaria se conseguisse um buraco na agenda. Eu fiquei puta da vida e mandei ela à merda. Liguei para um amigo que trabalhou com a ministra de Saúde na nossa gestão e ele me indicou uma amiga ginecologista chamada Carolina. Eu liguei e ela me disse que me atenderia imediatamente. E assim foi.

Quando comecei a ser examinada a médica me disse; “você não sabe, mas ajudou o meu pai em um momento muito difícil da vida dele”.  Eu fiquei curiosa para saber quem era o pai dela: “sou filha de Francisco Mena Sandoval”.

Reconstrução

Mena Sandoval, como era mais conhecido, foi um capitão da Força Armada de El Salvador (Faes) que deixou o exercito salvadorenho, durante a guerra e se encorpou na luta armada guerrilheira. Por ter feito isso ele era considerado um traidor das Forças Armadas. Foi um golpe terrível para a FAES que repercutiu nas bases militares.

Terminada a guerra, com os Acordos de Paz em 1992, Mena Sandoval que estava na clandestinidade solicitou à direção do seu partido – o Exercito Revolucionário do Povo (ERP) – participar do processo de reconstrução iniciado nesse período. A FMLN era composta por cinco partidos: além do ERP, Forças Populares de Libertação (FPL), Partido Revolucionário dos Trabalhadores Centro-Americanos (PRTC), Resistência Nacional (RN) e o Partido Comunista (PC).

A liderança do ERP disse a Mena Sandoval que não era possível nesse momento pois não poderiam garantir sua segurança física dele. E que nenhum deles poderia hospedá-lo em suas casas. Ainda, que sua presença pública causaria incômodo nas Forças Armadas.

Eu, nesse período, já estava vivendo em El Salvador e estava casada com o Ernesto Zelayandia (que era integrante da FMLN especificamente do ERP). Um dia fui à sede do ERP visitar uma amiga. Chegando lá dei de cara com Mena Sandoval e fiquei super feliz em conhecê-lo pessoalmente. Tinha por ele uma grande admiração, por sua coragem, pois me lembrava muito a história do Lamarca. Depois de conversar com ele, me despedi e perguntei onde ele estava morando. Mena Sandoval respondeu: “Vivo aqui nesse colchão”. E apontou o chão do escritório onde estávamos conversando. Eu fiquei tão indignada que não pensei duas vezes.

Doutora Carolina

Disse a ele: “levanta todas suas coisas que você vai morar comigo”. Os dirigentes do ERP, quando ficaram sabendo disso, fizeram uma verdadeira guerra psicológica comigo. Diziam que eu e Ernesto estaríamos em perigo e poderíamos ser alvo de um atentado, já que nossa casa era minúscula e sem nenhuma segurança. Claro que eu não liguei para nada do que estavam dizendo e Mena Sandoval morou comigo e com Ernesto durante uns seis meses, até que consegui um lugar seguro para ele ficar.

Nunca imaginei que um dia a filha dele iria ser a pessoa que me atendeu de emergência. A doutora Carolina me examinou e ao realizar uma ultrassonografia disse que eu tinha um tumor no útero, e que eu deveria fazer uma biópsia. Eu disse a ela que ligaria quando tivesse tempo livre para fazer esse procedimento. Como eu estava tão comprometida com meu trabalho e na convivência com meu filho de 8 anos, eu realmente não priorizei esse cuidado com o meu corpo. Carolina me ligava todos os dias cobrando: “Quando você vai vir?”.

Machismo

Mas de tanto a doutora insistir, decidi ir fazer a biópsia para que ela já não estivesse me ligando tanto. Fiz e fui trabalhar. Uns dias depois estava participando de uma campanha de prevenção de câncer no mercado central da cidade de Colón, na periferia de São Salvador. Quando terminei meu trabalho, subi no carro, suando muito, bebi água e pensei: “Vou ligar para a Carolina para saber o resultado da minha biopsia”. Liguei e ela me disse: “Eu ia te ligar agora, quero que você venha no meu consultório para conversar”. Então me gelou o coração e eu perguntei: “Tenho câncer?”. Ela confirmou.

Fui ao consultório e ela me disse que eu teria de operar com emergência. Saí dali ainda cansada da minha jornada de trabalho e fui para casa, tomei um banho, me deitei na cama e, então, comecei a digerir a notícia. Eu estava em um período muito difícil da minha vida. Acabara de me separar de Mauricio e nossa separação foi muito exposta e utilizada pela ultradireita salvadorenha, que fez uma exposição pública das infidelidades do meu ex.

A Cidade Mulher sempre foi alvo da ultradireita machista salvadorenha, que não queria que as mulheres pudessem disputar espaços no poder. Assim, aproveitaram essa ocasião para tentar me esculhambar. Diziam que era castigo de Deus por eu querer que a mulheres tenham mais poder do que os homens. Outros inventaram até que meu câncer era mentira. Tive de tornar públicos os resultados dos exames.

Salvou minha vida

Agora, éramos eu e meu filho, Gabriel: tinha de pensar rápido o que fazer.

Uma semana depois passei por cirurgia e o médico disse que eu teria de fazer quimioterapia e radioterapia, que meu cabelo iria cair, e assim foi. Minha mãe queria que eu usasse peruca e Gabriel não gostava de me ver careca. Mas decidi que não usaria nada e que, ao contrário, iria utilizar minha imagem para conscientizar as mulheres da necessidade de fazer os exames de prevenção do câncer.  

Quinze dias depois da minha operação eu já estava pronta para voltar ao trabalho e durante a quimioterapia não foi diferente, trabalhei muito, só parei durante a radioterapia, que me derrubou.  

Recebi muito amor, muito apoio desse povo maravilhoso que são os salvadorenhos e salvadorenhas. Foi uma etapa de muita emoção e muita força.

Eu fui diagnosticada com câncer no endométrio, agressivo, e se não tivesse operado imediatamente poderia ter morrido em menos de um ano. E foi assim que a filha do capitão Francisco Mena Sandoval, a doutora Carolina, salvou a minha vida.

Artigo publicado originalmente na Rede Brasil Atual.

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