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Theodomiro Romeiro dos Santos

Theodomiro Romeiro dos Santos

Por Theodomiro Romeiro dos Santos

Preso no dia 27 de outubro de 1970, em Salvador – BA, e condenado, primeiro, à morte, pelo Conselho Especial de Justiça Militar da Auditoria da 6ª Circunscrição Judiciária Militar, pena comutada em prisão perpétua pelo Superior Tribunal Militar, poucos meses depois de imposta, acompanhei e participei da luta pela ANISTIA na Galeria “F” da Penitenciária Lemos Brito, situada no Bairro da Mata Escura, em Salvador, de onde sairia, fugido, apenas em agosto de 1979, quase nove anos após minha prisão, para um exílio que durou até 05 de setembro de 1985.

A resistência dos presos políticos começou tão logo dois deles foram reunidos, crescendo quando transferidos dos quartéis e Delegacias de Polícia Federal, onde se torturava, para as penitenciárias e, inicialmente, limitou-se à organização de “coletivos” que conduziram lutas por melhores condições carcerárias e ao combate no estreito campo jurídico, por redução de penas e obtenção de liberdade condicional.

Naquele período – início dos anos 70 – o Estado ditatorial era presidido pelo General Emílio Garrastazu Médici, de muito triste memória, e o Estado da Bahia governado por delegado nomeado pelas Forças Armadas, o atual Senador Antônio Carlos Peixoto Magalhães. Durante aqueles anos, nosso tratamento carcerário habitual era o destinado aos presos pela prática de delitos comuns, quando estavam de castigo. Anos terríveis, a luta que se travava era pela integridade física e mental. Impunha-se sobreviver. Os presos políticos, então, tinham três tipos de aliados: as famílias, setores da Igreja Católica e os advogados. Em relação aos primeiros, partícipes do nosso calvário e dotados de uma solidariedade cujos limites nunca foi possível vislumbrar, não preciso tecer maiores comentários. Aos segundos, representados pelos Padres Renzo Rossi e Cláudio Perani, santos na acepção católica do termo o que, para um materialista como eu, é difícil de admitir, seremos eternamente devedores. Aos terceiros, que na esmagadora maioria das vezes nos defenderam gratuitamente, enfrentando a hostilidade de um sistema esmagador que não admitia contestação, por menor que fosse, uma homenagem especial. Na Bahia, correndo o risco deliberado de praticar a injustiça da omissão, posso lembrar Augusto de Paula, Pedreira Lapa, Jaime Guimarães e Ronilda Noblat, incansáveis defensores dos direitos humanos e dos presos políticos. Até o fim dos governos Médici e Antônio Carlos, a ANISTIA era uma palavra somente proferida por delirantes sonhadores, dentre os quais Alceu Amoroso Lima, Dom Paulo Evaristo Arns e Sobral Pinto.

O ditador Ernesto Geisel assumiu prometendo distensão política, lenta, gradual e segura. Para a Bahia, foi nomeado outro interventor, Roberto Santos. Entre avanços e recuos, a oposição se reorganiza. Três objetivos políticos conseguiam unificar todas as tendências que se opunham à ditadura: a convocação de uma Assembléia Nacional Constituinte livremente eleita; a eleição direta para Presidente da República; e, finalmente, uma ANISTIA ampla, geral e irrestrita. Esta última provocava divisões, pois expressivos setores da oposição exigiam, igualmente, que ela não fosse recíproca. Surgem o Movimento Feminino pela Anistia e o Comitê Brasileiro pela Anistia. Exilados organizam-se no exterior. Há uma nítida melhoria no tratamento carcerário dispensado aos presos políticos, não sem que antes diversas greves de fome fossem deflagradas pelo Brasil afora. A idéia de volta ao País, para os exilados, e de liberdade, para os presos políticos, começa a tomar dimensões de realidade.

O ditador João Batista Figueiredo assume a presidência com a campanha pela ANISTIA em franco crescimento. Manifestações são organizadas em todas as partes do País, com número cada vez mais expressivo de participantes. As prisões fervilhavam. As visitas eram muitas e representativas de setores organizados da sociedade civil. Associações de profissionais liberais, sindicatos, diretórios estudantis se fazem presentes. O ator Benvindo Cerqueira organiza espetáculo, para público numerosíssimo, com a renda toda revertida para os presos políticos. São incontáveis as manifestações de solidariedade que presenciei naquela época.

Dois fatos, contudo, estão gravados em minha memória de forma mais vívida, pois foram eles que me deram a certeza da iminência da ANISTIA: o primeiro, a reforma da auto – intitulada Lei de Segurança Nacional; o segundo, a visita realizada pelo Senador Teotônio Vilela, das Alagoas e do partido do governo, a todos os presídios do País.

A reforma da Lei de Segurança Nacional tinha um objeto evidente: esvaziar as prisões, sem criar resistências maiores com os setores de extrema direita, ainda bem organizados e ocupando postos de comando nas Forças Armadas. É que aqueles setores exigiam que a ANISTIA não contemplasse os que haviam praticado “crimes de sangue”, ou seja, quem havia participado da resistência armada contra a ditadura militar. A solução encontrada pelo governo foi a reforma da lei, reduzindo drasticamente as penas, de forma a permitir a libertação dos presos não contemplados pela ANISTIA, seja pelo cumprimento integral da pena, seja pela liberdade condicional. No meu caso específico, estando condenado a 48 anos de prisão, após a readequação, minhas penas foram unificadas em pouco mais de 16 anos, dos quais já havia cumprido quase nove.

A visita do Senador Teotônio Vilela teve por objetivo discutir com os maiores interessados na concessão da ANISTIA, sua forma e seus limites. Os presos políticos da Penitenciária Lemos Brito, expusemos longamente para o Senador nossa opinião. Repudiamos a proposta de limitação, denunciando quão absurda era ela. Não somente porque, do nosso ponto de vista, politicamente não havia diferença entre os que opuseram-se por meios pacíficos à ditadura militar, e os que escolheram o caminho armado, como também porque, juridicamente, enormes absurdos seriam cometidos. Imagine-se um dirigente de partido político que tenha participado da resistência armada contra a ditadura militar e que, por falta de oportunidade, ou simplesmente por questão de segurança e preservação das lideranças, não tenha praticado diretamente ações armadas. Esse seria anistiado. Outros militantes, do mesmíssimo partido e que, por conseqüência, defendiam as mesmas posições, tendo participado diretamente das ações de guerrilha, não seriam (como inicialmente não foram) anistiados. Da mesma forma, manifestamos nossa irresignação contra a reciprocidade da anistia. Antecipando a legislação hoje vigente, explicamos ao Senador que não seria ética, jurídica e politicamente admissível anistiar-se crimes contra a humanidade, como a prática da tortura. Alertamos o Senador para a importância dos torturadores e, principalmente, seus mandantes civis e militares serem julgados, não somente como forma de permitir a ressocialização de delinqüentes tão perigosos, mas também como instrumento de disseminação na consciência da população, do repúdio a formas ditatoriais de governo e da prática da tortura como meio de exercício de poder político. Recordo perfeitamente que, na nossa conversa, a ênfase maior foi dada a esse assunto: a importância política, didática e pedagógica da apuração e penalização dos crimes cometidos durante a ditadura militar.

Infelizmente, o acúmulo de força política pela oposição, quando da votação do projeto da ANISTIA, não foi suficiente para derrotar a proposta do ditador João Figueiredo. Se não me falha a memória, por um voto de diferença foi derrotada a proposta de estender o benefício a todos os presos, banidos, exilados e perseguidos políticos. A primeira ANISTIA, de 1979, foi ampla, geral e irrestrita para os torturadores. Para a oposição, foi parcial, limitada e restrita.

Pela primeira ANISTIA fui beneficiado apenas parcialmente, com a supressão da pena de três anos que me havia sido imposta por pertencer a partido político ilegal. Recusada a minha liberdade condicional por Juiz Auditor cuja tibieza fez com que se curvasse às pressões de extremistas de direita, corria o risco de ficar sozinho na penitenciária, pois os dois outros presos políticos remanescentes, Haroldo Lima e Paulino Vieira, seriam anistiados. O Senador Antônio Carlos Peixoto Magalhães, novamente governando a Bahia, especulou sobre a possibilidade de acontecer algum acidente comigo, em decorrência de “briga de presos”. Tomei então a difícil decisão de não esperar os acontecimentos e fugi. Em outubro de 1979 fui acolhido na Nunciatura Apostólica, onde acompanhei a votação da LEI DA ANISTIA. Em dezembro do mesmo ano, recebido pelo México como asilado político, viajei para a Cidade do México, onde permaneci por dez dias e, em seguida, para Paris, onde residi até minha volta.

Mesmo assim, a conquista da ANISTIA representou inegável vitória das forças que compunham o campo democrático na arena política do País. Esvaziou por completo as prisões; propiciou o retorno dos banidos e exilados. Permitiu que importantes lideranças políticas voltassem a participar de eleições e, por conseqüência, da luta parlamentar. Impôs-se grande derrota à extrema direita. Apenas para recordar, poucos anos antes da ANISTIA, tive oportunidade de ler um livreto editado pela Escola Superior de Guerra, no qual um militar defendia a tese de que a “Revolução de Março de 1964” não se acabaria. Ela iria se extinguir gradualmente “quando seu ideário estivesse dissolvido no inconsciente coletivo do povo brasileiro”. A pretensão de eternidade de toda ditadura é sempre ridícula e patética.

Realizado, ainda que parcialmente, o primeiro objetivo, tempos depois os dois outros seriam alcançados. O Congresso Nacional foi reunido em Assembléia Nacional Constituinte, promulgando a Constituição Federal de outubro de 1988, que consagrou importantes avanços na institucionalização de regras assecuratórias do Estado democrático de direito e na regulamentação dos direitos sociais, que hoje são o principal alvo das investidas do arqueoliberalismo, apelidado de “neo”. Findo o mandato do Presidente José Sarney, eleito ainda por via indireta, o povo brasileiro, depois de uma abstinência de cerca de trinta anos, elegeu o presidente da República pelo voto universal, direto e secreto.

Não pretendo fazer apologia do regime hoje vigente no País. Longe disso! As desigualdades sociais provocadas por uma das piores distribuições de renda do mundo; o estado de miserabilidade de expressivos setores da população; a falência das políticas públicas dirigidas à saúde, educação, habitação e emprego; a renúncia à soberania; o sucateamento da indústria nacional; a delegação do planejamento econômico a instâncias decisórias alienígenas, como o FMI e o Banco Mundial; a má distribuição da terra; a subserviência aos interesses de grupos monopolistas transnacionais; a destruição do meio ambiente; os altos índices de corrupção; etc., são dados de realidade que devem cobrir de vergonha qualquer cidadão brasileiro.

Entretanto, é inegável que vivemos em um regime democrático. A organização política é livre: qualquer grupo de opinião tem o direito de constituir-se em partido e disputar eleições. Os setores homogêneos da sociedade civil podem organizar-se em entidades que defendam seus direitos. Os sindicatos urbanos e entidades estudantis funcionam livremente. Os trabalhadores rurais, com terra ou sem terra, estão organizados e perseguem seus objetivos. A livre manifestação do pensamento é assegurada. Eleições são realizadas regularmente, para todos os cargos políticos.

Para quem não viveu sob uma ditadura pode parecer pouco. Mas para os que, na época, tinham idade suficiente para compreender os mecanismos de controle social pelo terror político, a diferença é ponderável. E se hoje vivemos em um regime democrático, é preciso que se diga que o processo político para conquistá-lo começou pela luta em defesa das ANISTIA.

Publicado originalmente na Fundação Perseu Abramo.

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