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A democracia e a livre expressão – uma relação autopoiética

A democracia e a livre expressão – uma relação autopoiética

Por Henrique Sobreira

Poderia o direito autopoiético melhor elucidar o funcionamento da livre expressão do pensamento nas sociedades abertas?

A liberdade de expressão é consagrada como uma das mais importantes prerrogativas cidadãs nas sociedades contemporâneas. Vista como símbolo da civilização ocidental, é o meio mais eficaz de se promover o Estado Democrático de Direito e seu discurso, voltado à proteção das fundamentais garantias individuais. Entretanto, nos últimos tempos, o substrato da liberdade de expressão e o papel por ela desempenhado vem, por alguns de seus pretensos defensores, sendo incompreendido – desde manifestações raivosas de grupos insatisfeitos com a principiologia consagrada pela Constituição de 1988, a um aumento nos casos de “discurso de ódio” que resultam em prisões, parece que a expressão do livre pensamento enfrenta uma verdadeira crise conceitual. Afinal, quais seriam os limites do dizer? como cercear a livre expressão dentro de um sistema de liberdades? E, como diria Karl Popper[1], “deve-se tolerar o intolerante”?

Para o direito, talvez a resposta para tais indagações resida no conceito de autopoiese – vejamos:

Trata-se de noção cunhada pelo biólogo chileno Humberto Maturana há quase 50 anos, quando buscava-se superar uma discussão milenar sobre o funcionamento do fenômeno da existência mundana[2]. A expressão une as palavras gregas auto (significando ‘para si mesmo’) e poiese (‘criação’) para referir-se à capacidade que seres vivos possuem de produzirem a si mesmos, vendo neles a própria causa e o efeito de sua sobrevivência – uma teleologia que gera e nutre o que entendemos por “vida”.

Nesse diapasão, pela notória percuciência dos estudos de Maturana, a autopoiese foi emprestada das ciências biológicas para outros campos de estudo. Para o direito, a noção é de relevantíssima utilidade, especialmente no que tange a sua análise como sistema normativo.

Em síntese, o ordenamento jurídico sob a perspectiva autopoiética é aquele no qual seus elementos, interligados, se comunicam de maneira autorreferencial e organizacional, de modo que as normas que nele estão contidas, também, são geradoras de outras – seria o mesmo que vê-lo como um organismo vivo. Assim, a forma como constituem-se as unidades do sistema jurídico reclamaria sua manutenção.

Por outro lado, para além de promover a criação de mais conteúdo, a conexidade e logicidade do sistema jurídico, da maneira como posta acima, paralelamente o protegeria de sua autodestruição, porventura ocasionada em razão de determinado excesso na produção normativa, dos efeitos dela decorrentes ou pela desvirtuação de seu significado – o que, por fim, acabaria descaracterizando o sistema como um todo, posto que nesse âmbito se objetiva, ademais, a preservação de certa identidade[3].

Não é dizer que o fenômeno jurídico é independente de influências de outros campos de estudo, tal como sempre objetivado pelas grandes discussões científicas da matéria. Muito pelo contrário, cuida-se de defender que, quando consolidado – e se devidamente consolidado, em atenção aos pressupostos de unicidadecoerência e completude[4] –, o ordenamento jurídico é autossuficiente e eficazmente cumpre seu papel de se atualizar diante dos progressos da sociedade que ele próprio tutela, por meio de soluções (i) do sistema, (ii) pelo sistema e (iii) para o sistema. Ao mesmo tempo, tais soluções são as utilizadas para correção de falhas internas.

É justamente essa problemática que atualmente se enfrenta com a liberdade de expressão: se utiliza de um direito que, diga-se de passagem, ao longo de toda história foi o meio mais eficaz de se expandir o rol de atribuições inalienáveis da vida em sociedade, para, ao contrário, ferir o sistema que o próprio abriga – o prelúdio a uma possível implosão do Regime democrático, e de sua identidade progressista.

Eis que, recentemente, ante atividades criminosas voltadas à subversão da ordem democrática – identidade marcante da normativa jurídica nacional –, as cortes superiores delimitam a extensividade da utilização da liberdade de expressão como forma de socorrer os princípios norteadores que, propriamente, criaram o livre pensamento séculos atrás e que ora se veem ameaçados:

“A Constituição Federal não permite a propagação de ideias contrárias à ordem constitucional e ao Estado Democrático (CF, artigos XLIV; e 34, III e IV), tampouco a realização de manifestações nas redes sociais visando ao rompimento do Estado de Direito, com a extinção das cláusulas pétreas constitucionais – Separação de Poderes (CF, artigo 60§ 4º), com a consequente instalação do arbítrio (…) 5. As condutas imputadas ao denunciado pela Procuradoria-Geral da República revelam-se gravíssimas e, ao menos nesta análise preliminar, correspondem ao preceito primário do art. 23II, da Lei n. 7.170/83, sendo atentatórias ao Estado Democrático de Direito brasileiro e suas Instituições Republicanas, pois, conforme descrito na denúncia, o denunciado pretendeu incitar a animosidade entre as Forças Armadas e a SUPREMA CORTE do País, ao fazer alusão, inclusive, às nefastas consequências que advieram do Ato Institucional n. 5, de 13 de dezembro de 1968, entre as quais cita expressamente a cassação de Ministros da CORTE, além de ter instigado que membros da CORTE prendessem o ex-Comandante Geral do Exército, de modo a provocar uma ruptura institucional pelos “homenzinhos de botão dourado”, expressão que utiliza para aludir aos comandantes militares. 6. As manifestações imputadas ao denunciado, realizadas por meio das redes sociais, não só atingiram a honorabilidade e constituíram ameaça ilegal à segurança dos Ministros do SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL, como se revestem de claro intuito visando a impedir o exercício da judicatura, notadamente a independência do Poder Judiciário e a manutenção do Estado Democrático de Direito[5]

“O direito à livre manifestação do pensamento, embora reconhecido e assegurado em sede constitucional, não se reveste de caráter absoluto nem ilimitado, expondo-se, por isso mesmo, às restrições que emergem do próprio texto da Constituição (…) Constituição da República não protege nem ampara opiniões, escritos ou palavras cuja exteriorização ou divulgação configure hipótese de ilicitude penal (…) pois a liberdade de expressão não traduz franquia constitucional que autorize o exercício abusivo desse direito fundamental” [6]

Paralelamente, a liberdade de expressão, pela sua mencionada utilidade na ampliação do Estado Democrático de Direito, é protegida pela Suprema Corte com muito pudor em conflitos não tão ameaçadores à existência do sistema jurídico atual – seu aspecto estruturante do sistema é amplamente reconhecido:

A Democracia não existirá e a livre participação política não florescerá onde a liberdade de expressão for ceifada, pois esta constitui condição essencial ao pluralismo de ideias, que por sua vez é um valor estruturante para o salutar funcionamento do sistema democrático. 2. A livre discussão, a ampla participação política e o princípio democrático estão interligados com a liberdade de expressão, tendo por objeto não somente a proteção de pensamentos e ideias, mas também opiniões, crenças, realização de juízo de valor e críticas a agentes públicos, no sentido de garantir a real participação dos cidadãos na vida coletiva. 3. São inconstitucionais os dispositivos legais que tenham a nítida finalidade de controlar ou mesmo aniquilar a força do pensamento crítico, indispensável ao regime democrático[7]

Infere-se: ao mesmo tempo que a liberdade de expressão constrói pontes para se consagrar as utopias dos estados liberais, ela pode se tornar justamente o meio para sua subversão. É o que, lamentavelmente, os ventos autoritários das décadas de 1930 e 1940, ao redor de todo globo, demonstraram à humanidade – jaz a razão para não se tolerar a intolerância e, sempre em casos graves como os mencionados, limitar a livre expressão do pensamento.

A relação da liberdade de expressão com outros direitos e garantias fundamentais do ordenamento jurídico é estruturante, e serve como parâmetro para ampliação de uma dogmática jurídica conquistada à duras penas, quando da sepultura, em 1988, de tempos não bem resguardados no imaginário nacional, cujo apelo ou apreciação nunca deve pôr em risco a identidade do sistema atual, responsável por, justamente, amparar e dar real substância à livre expressão.

autopoiese, nesse contexto, se mostra como uma teoria descritiva do nosso ordenamento jurídico que expõe o porquê de um excesso praticado por uma liberdade especifica pode pôr fim à liberdade em sentido mais amplo, resultando em prisões e outras medidas constritivas ao direito de ir vir – uma resposta do sistema pelo problema dentro dele próprio originadoAdemais, a noção em cotejo coloca uma profícua e fundamental justificativa para o sopeso entre demais garantias e direitos individuais, encerrando discussões nos levam à odiosa interpretação de que alguns direitos “valem mais” do que outros. Como diria o médico suíço-alemão, Paracelso, no século XVI: “Somente a dose correta diferencia o veneno do remédio”.


  1. POPPER, Karl. The Open Society and Its Enemies. 
  2. https://www.bbc.com/portuguese/geral-47464093 
  3. Nesse sentido, Alberto Febbrajo e Fernando Rister de Sousa Lima, elucidando o tema à perfeição, explicam o funcionamento do direito autopoiético: “a autopoiese foi utilizada no campo do direito pela teoria dos sistemas para resolver o fundamental problema de delimitar externamente um sistema nos confrontos do seu ambiente, sem excluir a própria capacidade de introduzir ao seu interno mudanças que assegurem a sua sobrevivência (…) o direito como organismo vivo é capaz de produzir-se e de sobreviver mudando a si mesmo de modo autônomo para ser sempre mais adaptado a desenvolver a própria tarefa numa sociedade que muda” (FEBBRAJO, Alberto, LIMA, Fernando Rister de Sousa. Autopoiese. Enciclopédia jurídica da PUC-SP. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga e André Luiz Freire (coords.). Tomo: Teoria Geral e Filosofia do Direito. Celso Fernandes Campilongo, Alvaro de Azevedo Gonzaga, André Luiz Freire (coord. de tomo). 1. ed. São Paulo: Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, 2017. Disponível em: https://enciclopediajuridica.pucsp.br/verbete/152/edicao-1/autopoiese) 
  4. CF: BOBBIO, Norberto. Teoria do Ordenamento Jurídico. 
  5. (Pet 9456, Relator (a): ALEXANDRE DE MORAES, Tribunal Pleno, julgado em 28/04/2021, PROCESSO ELETRÔNICO DJe-118 DIVULG 18-06-2021 PUBLIC 21-06-2021) 
  6. (ARE 891647 ED, Relator (a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 15/09/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-187 DIVULG 18-09-2015 PUBLIC 21-09-2015) 
  7. (ARE 891647 ED, Relator (a): CELSO DE MELLO, Segunda Turma, julgado em 15/09/2015, ACÓRDÃO ELETRÔNICO DJe-187 DIVULG 18-09-2015 PUBLIC 21-09-2015) 

Artigo publicado originalmente no JusBrasil.

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