Por Juliana Sayuri (Texto) E Ricardo Stuckert (fotos)
Fotógrafo Ricardo Stuckert conta bastidores de livro dedicado a povos indígenas do Brasil
Penha Góes era uma jovem de 22 anos quando um fotógrafo brasiliense desembarcou na aldeia de Nazaré, no interior do Amazonas, incumbido de registrar a vida dos yanomami, um dos maiores povos indígenas da América do Sul, para uma edição especial da revista “Veja”. Era 1997 e Ricardo Stuckert, à época com 26 anos, fez uma das fotos mais importantes de sua carreira: um retrato em preto e branco de Penha, com o rosto pintado e os olhos fitando diretamente a câmera. Ricardo nunca esqueceu essa imagem.
“Ficou na minha memória”, conta. Quase 20 anos depois desse registro, ele decidiu voltar à aldeia para reencontrar Penha, em 2014. Demorou dez meses para localizá-la e mais três para conseguir se organizar para viajar de Brasília até lá – tudo graças à companheira, a jornalista Cristina Lino, que ligou diversas vezes para postos da Funai procurando “a moça da foto”. “Lembra de mim?”, ele perguntou ao rever Penha, em 2015. “Lembro, sim”, ela respondeu. Os retratos lembram o famoso paralelo “antes e depois” da afegã Sharbat Gula, feito por Steve McCurry para a revista “National Geographic”. “Conheci uma menina e reencontrei uma mulher mãe de seis filhos, que fez enfermagem e passou a cuidar da aldeia. Uma pessoa iluminada, com o olhar forte que tanto me marcou”, diz Ricardo, hoje aos 51.
Para voltar a Brasília, o fotógrafo primeiro precisou pegar um barco da aldeia a uma cidade próxima, de lá partir para Manaus e enfim embarcar num voo com destino ao distrito federal. No trajeto de barco, sem sinal de celular, pensando na vida e no quanto o Brasil desconhece esse Brasil, foi picado por uma ideia: viajar a aldeias distantes para fotografar povos indígenas, um projeto que se tornou o livro “Povos originários: Guerreiros do tempo”, lançado em março pela editora Tordesilhas. “Assim nasceu o livro, por causa da Penha.”
O livro de 280 páginas e 164 fotos levou sete anos para ficar pronto. Isso porque o tempo não estava especialmente a seu favor: fotógrafo oficial do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva desde 2003, dividindo-se entre Brasília, São Paulo, São Bernardo do Campo e diversas viagens internacionais, Ricardo só podia se dedicar ao projeto autoral nos finais de semana. Cristina foi quem organizou a agenda para as viagens, muitas vezes marcadas por contratempos, como barcos quebrando e informações que chegavam apenas por rádio amador. Ainda assim, ele conseguiu registrar diversas etnias (yanomami, yawanawá, kayapó, kalapalo, kaxinawá, kuikuro, pataxó e xukuru-kariri) e povos isolados.
Depois de tanto tempo trabalhando em Brasília, junto a jornalistas e políticos, o fotógrafo diz que aprendeu nessas viagens lições de vida que nunca teve antes. A primeira e mais simples é sempre ter água e uma lanterna na mochila. A mais importante foi do cacique Raoni Metuktire, uma das principais lideranças indígenas e referência na luta pela preservação da Amazônia: respeitar o tempo. Ricardo e Raoni viajaram juntos de Brasília à aldeia kayapó no Parque Indígena do Xingu, no norte de Mato Grosso. Era uma sexta-feira e o fotógrafo sabia que só teria até o fim de domingo para registrá-los.
Na sexta, já notou que tinha uma hesitação no ar – o cacique não o olhava nos olhos e estava quase que lhe dando as costas. “O fotógrafo, com uma máquina pendurada no pescoço, está entrando na vida de quem está sendo retratado. E logo dá para notar quando alguém não se sente à vontade. O olhar diz tudo”, define. No sábado, Ricardo acordou por volta das 5 horas da manhã, os cachorros começaram a latir, mas todo mundo ainda estava dormindo. Decidiu então voltar para a oca e esperar. O dia amanheceu, todos tomaram café, mas o fotógrafo sentiu que ainda existia uma barreira invisível entre eles. Decidiu então guardar a câmera na mochila e aproveitar o dia junto à comunidade. “Fiquei só ouvindo, ouvindo, ouvindo, prestando atenção nas rodas de conversa sobre as histórias dos ancestrais, as posições do sol e da lua”, lembra. À noite, eles o convidaram para comer tapioca e peixe assado. No domingo, o brasiliense nem encostou na máquina.
“Depois olhei no relógio, 2 horas da tarde, e fui arrumar as coisas para ir embora. Um calor, um sol ardido, e Raoni me perguntou: ‘vamos tomar um banho de rio?’ Vamos, respondi. E ele me lembrou, ‘ué, você não vai levar a máquina?’ Só aí notei que não sabia onde a tinha deixado. Foi como se tivesse virado uma chave: saiu a nuvem, entrou o sol, estava todo mundo feliz. Foi aí que aprendi que tudo na vida é uma questão de tempo, de ver no outro um ser humano, ouvir, observar, respeitar”, relata. Desde então, Ricardo não usa mais relógio – e, apesar da agenda atribulada trabalhando como fotojornalista de política, aprendeu a não apressar os outros. “O tempo é deles, dos guardiões da floresta, dos guerreiros do tempo nessas terras cobiçadas por garimpeiro atrás de ouro ilegal, madeireiro e tudo mais”, diz.
“E quem sou eu? Um cara da cidade, selva de pedra literal, que toma um banho rápido no chuveiro elétrico para economizar água, que não se dá conta do quanto de lixo produz por dia, que às vezes pensa que tem o mundo na mão por causa de um celular. Que toma água em uma garrafa de plástico que vai ficar 200 anos no fundo do mar. Enquanto isso, o planeta chora todo dia, pandemia, guerra, gente morrendo de calor de 50 graus no Canadá, gente morrendo de chuva no Brasil. Eu sou só um grãozinho, um megapixel de um retrato de um mundo que podia aprender muito mais com os povos originários
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