Por Marina Coelho Araújo e Nicolau da Rocha Cavalcanti
Por mais adequadas que possam ser, as respostas penais não enfrentam os problemas de fundo que criaram a crise atual
Os atos do 8 de Janeiro suscitaram diversos inquéritos e ações penais. Trata-se de medida necessária. Crimes contra o regime democrático não podem ficar impunes.
Mas não basta investigar o passado. Diante de tão grave problema, é preciso cuidar do futuro. Sozinho, o Direito Penal é incapaz de dar conta desses desafios. Ele atua no pós-fato. A experiência brasileira das últimas décadas é incontestável: a resposta punitivista – aumentando penas, por exemplo – não é apenas insuficiente, mas muitas vezes contraproducente.
A gravidade dos ataques às instituições democráticas explicita a necessidade de ir além do Direito Penal. É preciso transformar a cultura, formando as novas gerações sobre o que é cidadania. É preciso trabalhar pelas condições de longo prazo de respeito aos direitos humanos e à democracia. Tudo isso é tarefa do poder público, mas é também de cada um de nós, de toda a sociedade.
A resposta estatal ao 8 de Janeiro tem gerado amplos debates sobre a legitimidade e a correção das ações do sistema de Justiça penal. Parece que nunca se discutiu tanto Direito Penal e Direito Processual Penal, o que em si é positivo. Mas concentrar os esforços somente nas sanções seria desperdiçar uma oportunidade de mudança, pavimentando o caminho da frustração. Por mais adequadas que possam ser, as respostas penais não enfrentam os problemas de fundo que criaram a crise atual.
Tudo o que o País viveu nos últimos anos desvela a urgente necessidade de um novo patamar de compreensão dos direitos humanos e do Estado Democrático de Direito. Não nos referimos a temas sofisticados, mas a consequências básicas do princípio da dignidade da pessoa humana e da igualdade de todos perante a lei, da tripartição dos Poderes e do funcionamento da República.
Não nos enganemos. Se as políticas públicas avançaram muito desde a Constituição de 1988, está em curso um retrocesso na percepção da população sobre os direitos e as liberdades fundamentais. Esse retrocesso impacta não apenas no Legislativo e no Executivo, mas também no Judiciário.
Esta crise civilizatória produz confusão a respeito do Estado Democrático de Direito. Recorrentemente os conceitos de democracia e liberdade são utilizados para ameaçar e atacar o regime democrático definido pela Constituição de 1988. O cenário desafiador não é exclusividade nacional. Todos os países democráticos veem-se envoltos em tensões similares, e cada um tem procurado desenhar e testar soluções, que podem nos servir de aprendizado.
Como política de Estado, o Ministério da Justiça alemão tem promovido, nos últimos anos, a campanha de conscientização Nós somos Estado de Direito. Ela aborda aspectos práticos do regime democrático, que muitas vezes deixaram de ser intuitivos, como a proteção dos direitos das minorias, o exercício do direito de defesa e a separação dos Poderes. É indispensável formular políticas públicas no Brasil que comuniquem a importância, no regime democrático, do respeito ao outro e a seus direitos.
O cenário brasileiro é grave, com casos explícitos de racismo em empresas, naturalização de agressões a minorias e ataques impunes ao sistema eleitoral. Urge definir uma pauta de prioridades nacionais em defesa dos direitos humanos e do regime democrático. Uma pauta que não signifique somente criar leis com crimes mais severos. É preciso chegar antes e de forma efetiva, criando e fortalecendo estímulos para que escolas, empresas e instituições colaborem ativamente nessa agenda. Trata-se de mobilizar a sociedade para além do Direito Penal aplicado ao outro.
O País precisa investigar e punir os casos de corrupção. Mas é um imenso erro deixar que a agenda brasileira fique limitada ao “combate à corrupção”. Por exemplo, as áreas de compliance das empresas podem ser muito mais úteis do que apenas cuidar da prevenção a crimes econômicos. Executivo e Legislativo podem, em parceria com a sociedade, fazer muito nesse campo.
Em 2013, o Congresso aprovou leis que, desde então, têm povoado o imaginário popular. Em especial, a Lei Anticorrupção (Lei n.º 12.846/2013) e a Lei da Delação Premiada (Lei n.º 12.850/2013). Foi a resposta do Legislativo à pressão popular por menos impunidade. Agora, além de rever esses instrumentos legais com a experiência da última década, tem-se a oportunidade de uma mudança de agenda, a partir de um olhar mais realista e mais amplo, que inclua respeito aos direitos humanos e ao regime democrático e não se limite à esfera sancionatória. É tempo de construir instrumentos de promoção da cidadania, da igualdade e do pluralismo, assegurando efetividade aos valores da Constituição de 1988.
Quando se atua exclusivamente na esfera penal, a sociedade tem seu papel reduzido. O protagonismo recai sobre a polícia, o Ministério Público e o Judiciário. O Direito Penal é subsidiário não por preciosismo doutrinário, mas por uma razão de eficácia. A defesa da democracia não é compatível com uma coletividade acomodada. Sem participação social, a combatividade do sistema é mera repressão, e não construção.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S.Paulo.
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