O subtítulo poderia ser: “O drama do Direito 4.0″. Ou “Ato 45 promove um ‘admirável direito novo’“, parafraseando Aldous Huxley.
A Associação Americana de Juristas publica interessante alerta sobre o Direito do Trabalho 4.0 (aqui), agravado pela edição do Ato 45 pelo Conselho Superior da Justiça do Trabalho, desobrigando a feitura de atas em audiências virtuais.
Sou suspeito para falar sobre isso. De há muito alerto para o problema do assim denominado Direito 4.0 (ou 5.0 ou 6.0).
O CFOAB anuncia também que irá ao TST requerer a revogação do aludido ATO 45, sobre o qual falarei a seguir (aqui). O parecer acolhido é do jurista Roberto Parahiba, mostrando a antijuridicidade do Ato.
Parte 1. O fim do registro escrito do conteúdo das audiências
Nem eu, nem a AAJ e nem o Dr. Roberto Parahiba somos contra a tecnologia. Não queremos a volta da máquina de escrever, nem do lápis. E tampouco do ábaco. Surpreende inclusive que seja preciso dizer isso. Mas é necessário. Repito, pois. Não sou contra o uso da tecnologia (tecnologia é como antibiótico e vacina — necessário). Seria estupidez. Sou é contra a substituição da filosofia, da teoria, do próprio direito pela inteligência artificial e pelas simplificações que reduzem os objetos explicados a nada. O pragmatismo tem ares eficientistas. Mas não passa disso.
O ponto questionado pela OAB e pela AAJ é o Ato do Conselho Superior da Justiça do Trabalho – SJT.GP.SG 45/20211, pelo qual fica dispensada a obrigatoriedade de ata em audiências virtuais gravadas. Pergunto, já de pronto: Como fica a garantia do registro escrito, garantido expressamente pela CLT? Como fica o acesso à prova, por parte de quem julga? O próprio dever de fundamentação fica prejudiciado-fragilizado.
Pode o Conselho Superior da JT criar norma jurídica que retire direitos? Pode o CSJT criar norma que obstaculiza o acesso à prova? O CSJT tem poder normativo para alterar a CLT? Questões antigas. Fui um dos primeiros a questionar, nos anos 2000, o poder normativo dos Conselhos Nacionais (PJ e MP). E de lá para cá todo mundo legisla. O remédio? Vários. Um deles é a ADPF. Claro, se o ATO não for revogado.
A OAB questiona, corretamente, o referido Ato do CSJT. Nesse sentido, é a AAJ que indaga: com as gravações de audiências que têm demorado horas, será mesmo crível que cada julgador irá assistir a gravação para sentenciar? E o tribunal, com suas pautas imensas, terá viabilidade para acessar essas provas?
Sim. Quem irá acessar essas mídias todas? Eu já perguntava isso há 8 anos. No processo crime. Quem acessaria os vídeos? E hoje quem acessa a uma nuvem carregada de dados armazenados? A bem da verdade, parece que tudo acaba em um “pró-forma”. Ou há notícias de que a dispensa da ata gera acessos às mídias nos tribunais? Como isso é feito? Além de tudo, nas varas, haverá precarização dos próprios empregos…
A pergunta de todos é: quem acessa às horas gravadas? É dramático esse chamado da AAJ.
Mas parece que temos a resposta, que não é nova: há uma “nova hermenêutica” que veio com o pragmatismo institucionalizado pela IA e a tecnologicização hard core: a terceirização da interpretação-compreensão da prova e do próprio contexto do processo judicial. Funcionários e estagiários têm a árdua tarefa de traduzir essa nuvem de informações para o julgador, fornecendo projeto de votos e sentenças.
E esse é só o começo. Não esqueçamos dos algoritmos, que no âmbito dos recursos, “atiram na cabecinha” das palavras-chave.
O novo problema é o velho problema do mito de Hermes. Como semideus, intermediava o que os deuses diziam. E comunicava aos mortais. Mas nunca se soube o que os deuses disseram. Só se soube o que Hermes disse que os deuses disseram. Traduzindo em termos de indagação: o que a nuvem de informações contém em termos de provas e contextos dispares de linguagens do mundo da vida trazido ao fórum e aos tribunais? Pois é. Perguntemos aos neo-intérpretes.
Como bem dizem os signatários do artigo da AAJ,
- não se trata de duvidar do comprometimento ético dos diferentes agentes do processo, mas de um raciocínio matemático simples;
- é impossível que cada juiz ou juíza possa assistir mais de 40 horas de gravação a cada semana, para produzir suas decisões;
- se pensarmos no segundo grau de jurisdição, tudo fica ainda mais inviável.
Dizem mais:
- a impossibilidade concreta de que a prova oral a ser produzida no processo seja revista com a atenção necessária,
- na hora de sentenciar ou examinar um recurso,
- devia no mínimo determinar uma ampla discussão a respeito dessa modalidade de registro da audiência,
- antes de algum regulamento a propósito.
Vejam mais essa parte do alerta da AAJ:
- Justamente quando a Justiça do Trabalho, sendo indulgente em relação aos deveres de documentação estabelecidos na CLT,
- tem aceitado prova oral de jornada e de remuneração variável, mesmo em situações nas quais os tomadores do trabalho não trazem ao processo os documentos exigidos pela lei,
- ou seja, justamente quando se elastece um tipo de prova que no processo do trabalho teria de ser residual,
- autoriza-se a sua produção por um meio que dificulta o acesso posterior aos depoimentos.
Parte 2: Para além do Ato 45, o agravamento do quadro: o advento de coisas como sentença visual law
Nessa trilha, a nota da AAJ vai além da discussão stricto sensu do Ato 45 e chega no lugar em que tomei um café epistêmico há algumas semanas na ConJur (aqui, aqui e aqui, entre outros textos meus). A AAJ chama a atenção, — e com sustentados motivos — para mais outro problema,
“Essa verdadeira ânsia no uso da tecnologia em favor de algo que não guarda relação com a efetividade dos direitos. A introdução, em uma decisão judicial do TRT6, do “legal design” ou “visual law”.”
Como já escrevi tanta coisa sobre essa temática (inclusive sobre essa decisão), hoje dou ênfase ao texto da AAJ. No final do texto, dizem:
Está em jogo a própria razão de existência da Justiça do Trabalho. Talvez estejamos, inclusive, vivenciando o início da concretização da profecia de Stephen Hawking, segundo o qual a espécie humana corre sério risco de ser extinta pela inteligência artificial que ela mesma inventou, no melhor estilo Exterminador do Futuro.
Vejamos. Essa discussão transcende. Cada advogado sabe onde o sapato aperta. Não sou contra nada que aproxime o direito das pessoas. Vejam que eu mesmo tentei acima ser o mais direto e simples possível.
O que faço é perguntar. Refletir. O visual law aproxima alguém de alguma coisa? Sinto muito: desenhar setinhas deixa a “peça” super bonita e descolada. Vi uma peça dia desses de uma grande empresa. Vendo aquilo, pensei: chegaram no limite. Einstein tinha razão ao dizer para aquela senhora que, depois da extrema simplificação que fizera — e ela finalmente entendera — que aquilo já não era a sua teoria. Linguagem é condição de possibilidade. Machado de Assis, antes de Wittgenstein, já bem sabia disso ao escrever Ideias de Canário.2 O que é o mundo?
Simplificar não é o mesmo que compreender. Ou seja: somando a supressão do teor das audiências com a simplificação (desenhamento) dos conteúdos, onde chegamos? Se nem aprendemos dieito o Direito, como queremos explicar com setinhas? E como podemos examinar e julgar recursos se já não há “memória escrita”?
A escrita é a garantia contra o fracasso da memória: lembremo-nos desta máxima.
Aliás, Woddy Allen, sobre o pragmatismo desejado, porém inadequado, diz, de forma bem-humorada: “Fiz um curso de leitura dinâmica e li Guerra e Paz em 20 minutos. É sobre a Rússia”.3
Aliás, sabem por que já ninguém vende livros “ensinando” leitura dinâmica? Simples: não mais é necessário “fazer leitura dinâmica”. Agora tem os resumos e resuminhos dos livros! E gente querendo ensinar com setinhas. Tem até uma coach que faz palestras sem nunca ter lido um livro — só na base de resuminhos! Bem dinâmicos…!
Para fechar, lembro o que disse um aluno: “— Professor Lenio, li rapidamente o Kelsen. O que ele quer dizer com direito puro?”. Respondi: “— Meu filho, primeiro, ninguém lê obras rapidamente, muito menos Kelsen; e, segundo, ele nunca falou em direito puro. Viu só no que dá ‘ler ligeirinho'”?.
Tirante essas coisas, vamos continuar com o debate. Agora não estou (tão) só. Os meus críticos terão mais gente para (de)bater. Mas que se preparem. O pessoal da AAJ (de)bate bem também.
Saludos!
1 Também ver Valdete Severo, no texto A Cilada da Tecnologia para a Justiça do Trabalho (aqui)
2 Nesse sentido, no meu Dicionário de Hermenêutica o verbete Solipsismo explicita a dicotomia “linguagem privada-linguagem pública” a partir do conto de Machado.
3 Tirado de um texto escrito pelo professor Marcelo Yamashita, em que critica efetividades quantitativas.
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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