Por Eleonora de Lucena e Rodolfo Lucena
“Estamos diante de uma crise gravíssima, de uma crise em todos os sentidos. O impeachment é uma solução democrática de momento, mas eu acredito que o presidente, uma vez afastado, ele tem de responder pelos crimes comuns que está praticando, que são muitos. Não só ele: temos aí um conjunto de servidores públicos que se prestaram a esse papel de adotar, de forma acrítica, as orientações do presidente. É ele que determina a pauta de todos os ministérios, e quando ministros se rendem a essa situação, eles também deverão ser corresponsabilizados no futuro”.
É a avaliação que faz a jurista Deborah Duprat em entrevista ao TUTAMÉIA em que aponta e demonstra alguns dos crimes de responsabilidade e crimes comuns cometidos por Jair Bolsonaro no exercício da Presidência da República. Vice-procuradora-geral da República nos governos Lula e Dilma, ela foi uma das envolvidas na redação de pedido de impeachment apresentado no ano passado por movimentos populares e entidades da sociedade civil.
“Nosso pedido de impeachment reconhece isso: Bolsonaro é um presidente que nasce num discurso antissistêmico, anti-instituições, e ele usa o contexto da pandemia mais ainda para desmontar toda a capacidade do Estado de atuar. Nosso pedido do impeachment mostra como, ao longo de um ano –agora nós estamos no segundo ano–, como houve um desmonte de toda a estrutura administrativa federal. Quando ele fragiliza a administração pública, coloca militares em lugar de servidores concursados, ele acaba com a capacidade do estado de operar. Essa coisa de não ter um plano de vacinação, de não ter seringas disponíveis, isso tudo demonstra uma incapacidade do estado de funcionar porque suas habilidades institucionais foram minadas”, diz ela (clique no vídeo para ver a entrevista completa e se inscreva no TUTAMÉIA TV).
Mas não se descarta um instinto assassino em todo esse processo: “Há uma teoria segundo a qual essa intenção neoliberal, que ancora esse governo, teria essa intenção de exterminar um público indesejável. O neoliberalismo é um sistema em que cabem poucas pessoas, e a morte, nesse sentido, é uma morte desejável. Brasil e Estados Unidos, os campeões de mortes [na pandemia], têm no comando pessoas entusiastas de ideias radicalmente neoliberais. Acho que temos algo mais grave aí que a probidade administrativa, temos aí, alguém vocacionado e equipando o Estado para matar”.
Paralisia das instituições
Por tudo isso, Duprat entende que é necessária uma reação: “Costumo dizer que nós vivemos uma suspensão da democracia, uma suspensão da Constituição. Temos um fiapinho de democracia, um fiapinho de Constituição de 1988. Isso é tudo muito grave. E a falta de ação das instituições leva a crer que essa possibilidade é constitucional. A ausência de impeachment leva ao risco de que não só Bolsonaro possa se candidatar a um novo mandato como figuras com ideias e comportamentos parecidos sejam uma possibilidade democrática. Não são. Não são uma possibilidade constitucional, e não são uma possibilidade democrática”.
O início do processo de impedimento é necessário, independentemente de seu resultado: “Acho que, ainda que se diga que não há condições políticas [para aprovar], o funcionamento do pedido de impeachment é uma demonstração de vitalidade da democracia, de que as instituições funcionam. Essa paralisia, ao contrário, tem uma carga simbólica muito forte de instituições de alguma maneira neutralizadas por essa figura tão totalitária, como é a figura do Bolsonaro”.
Além disso, o fato de o processo eventualmente não culminar no afastamento do presidente não diminui sua importância, diz a jurista, lembrando o recente caso dos Estados Unidos, em que Trump derrotou dois processos de impeachment: “Os Estados Unidos deram pelo menos um recado a Trump. Levaram adiante o pedido de impeachment, sabendo que iam perder. Mas era preciso o Congresso manter essa simbologia. Como o nosso Congresso não leva à frente, ele vai se fragilizando. Vai também entrando no imaginário popular como uma instituição parceira do governo. Afinal, se é ela que pode afastar e é ela que mantém… Tudo isso se confunde, quanto mais demora. A partir dos três primeiros meses de governo, o primeiro pedido já devia ter tido andamento. Porque era tão absurdo aquele governo, tão absurdas as coisas, que de fato ali nós mostramos que, de fato, nossa democracia ainda é muito frágil.”
Para Deborah Duprat, Rodrigo Maia tem o dever de encaminhar os pedidos de impeachment. Ao não fazer isso, no entender da jurista, usurpa função do plenário e comete falha institucional gravíssima:
“A Lei dos Crimes de Responsabilidade não dá nenhum poder ao presidente da Câmara para sustar os processos de impeachment. Aliás, ela sequer fala do presidente da Câmara; ela dá uma atribuição ao plenário da Câmara dos Deputados para fazer uma avaliação política do cabimento do pedido. O regimento interno da Câmara é que determina que cabe ao presidente da Câmara fazer uma análise dos requisitos formais das petições de impeachment. Rodrigo Maia arquivou sumariamente quatro; significa que não cumpriram com as exigências da lei. Mas o restante, se cumpriu com a exigência da lei, ele está usurpando a competência do plenário ao sentar em cima desses pedidos. A atribuição não é dele, é do plenário. Rodrigo Maia teria de encaminhar esses pedidos. A lei não permite que o presidente da Câmara dos Deputados suste o andamento desses processos, porque o juízo desses pedidos é exclusivo do plenário. Eu acho que ele está cometendo uma falha institucional, uma falha funcional gravíssima, e pode vir a ser responsabilizado por isso também”.
Razões para o impeachment
A jurista explica que Bolsonaro vem cometendo crimes de responsabilidade desde o início de seu mandato, como demonstram os cerca de sessenta pedidos de impeachment –os primeiros deles apresentados ainda no primeiro semestre de 2019.
“São fundamentados em razões robustas: as palavras dirigidas a determinadas pessoas, como ao presidente da OAB, à repórter Patrícia Campos Mello; o aparelhamento da imprensa; o financiamento de sites e blogs simpáticos ao governo; a apologia à tortura. Mais recentemente, com a chegada da Covid, acentuou-se a necessidade de se responsabilizar esse presidente, com aquela desorganização que o Bolsonaro promove logo no início, negando as medidas sanitárias, as medidas de isolamento social, fazendo uso da Secom para propagar a não necessidade de distanciamento, criando uma tese do isolamento vertical, apenas para grupos mais vulneráveis, que não conta com nenhum respaldo científico. Enfim, isso já era uma conduta extremamente grave no contexto já vivido.”
Duprat prossegue: “Houve pior: exatamente porque Bolsonaro faz um governo populista, foi necessário também mobilizar as suas milícias virtuais para que sua ineficiência no enfrentamento à pandemia fosse de alguma maneira camuflada. Nesse contexto, surgem com muita força os ataques aos demais poderes, aos Supremo Tribunal Federal, ao presidente da Câmara e em relação aos governadores, que então começavam a adotar algumas medidas de isolamento”.
Crimes de responsabilidade
Debora Duprat elenca alguns dos crimes de responsabilidade de que Bolsonaro é acusado:
“Ataques aos entes subnacionais, isso é um crime de responsabilidade, a maneira com que Bolsonaro tratou os governadores, incitação da população contra os governadores, é um crime. A maneira como ele trata a coisa pública como se fosse privada. Isso é um crime de responsabilidade. Negar cumprimento a tratados e convenções internacionais. Aí tem vários. Bolsonaro descumpriu a convenção de prevenção e combate à tortura. Ao manter no cargo determinados ministros, comete crime de responsabilidade que é o de não afastar pessoas que usam o cargo contra a lei, contra a moralidade administrativa.”
Ela prossegue: “O uso da Secom, a Secretaria de Comunicação, para veicular ideias próprias de Bolsonaro, é contra um dispositivo expresso da Constituição, na parte de probidade administrativa, que diz que toda a propaganda oficial tem de ter caráter informativo, republico. Tudo que a Secom não foi foi ser informativa, tanto que em determinado momento ela condena o isolamento social…”
Genocídio
Além dos crimes de responsabilidade, há uma série de crimes comuns, todos muito graves, identificáveis no comportamento e nas ações de Bolsonaro, como aponta a jurista: “Bolsonaro está denunciado num Tribunal Penal Internacional por genocídio dos povos indígenas. O crime de genocídio significa matar, exterminar um povo fisicamente e também retirar as condições de sobrevivência desse grupo. E o que Bolsonaro fez com as terras indígenas compromete significativa a possibilidade de vida desses povos”.
Há mais: “O crime de ameaça à saúde pública, de exposição a perigo, o crime de homicídio! Apologia à tortura. Racismo. São muitos.”
Para a jurista, Bolsonaro pode ser considerado autor intelectual de homicídios: “Um presidente da República, com essa multidão de seguidores, que faz uso das redes sociais que criam uma multidão, esse presidente, quando fala não tome vacina ou use determinados medicamento, ele obviamente está induzindo a comportamentos que vão ser letais. Se isso não é autoria intelectual, nós estamos muito próximos de banalizar o mal absoluto”.
Territórios de luta
Apesar das dificuldades, há que trabalhar para restabelecer a democracia: “Temos de acreditar que podemos enfrentar essa barbárie, nos reinventar, restabelecer mecanismos de memória e verdade. Temos um passado muito mal resolvido em termos de genocídio da população indígena, o racismo estrutural. Temos de enfrentar essas graves violações de direitos humanos e temos de aprender a punir”.
Há caminhos no terreno institucional, como processo de impeachment, defendido por Duprat, e há também necessidade de movimento da sociedade:
“Temos de retornar aos territórios de luta. É preciso mobilização, é preciso expansão da luta, é preciso criação de alianças. Precisamos recuperar o sentido da Constituição de 1988, recuperar o sentido de Estado, recuperar o sentido de projeto para a coletividade. Tudo isso foi desfeito. Não é possível a gente concordar com isso sem lutar. E lutar voltando para os territórios, para as bases, para a luta política como ela deve ser feita. Procurando encher as ruas quando isso for possível. Vivemos numa situação de barbárie, uma situação de excepcionalidade, que precisa ser vencida.”
Artigo publicado originalmente no Tutaméia.
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