Por Reinaldo Azevedo
Os bolsonaristas resolveram usar falas de Ciro Gomes, no debate que travou com Gregório Duvivier, para atacar o ex-presidente Lula (PT). O pedetista não pode ser responsabilizado pelo uso que fazem daquilo que diz. Mas ele segue sendo “o” responsável por aquilo que diz. Aqui e ali, ciristas afirmam que Duvivier usou seus atributos de ator e autor para a “lacração”. Se entendo bem essa palavra parece indicar os momentos em que a retórica militante se sobrepõe ao objeto que está sendo debatido ou em que uma resposta “matadora”, mas não necessariamente correta, busca nocautear o oponente.
Quem venceu? Não é o objeto deste texto. Mas acho que Ciro esperava encontrar alguém menos preparado para o embate. Políticos tendem a achar que artistas têm o miolo meio mole. Aí o pré-candidato se deu mal. Tanto é assim que se referiu a supostos assessores que estariam alimentando o outro de informações. E confessou ele próprio tê-los naquele momento. Ninguém estava ajudando Duvivier. O ator moveu a câmera e evidenciou a mesa nua. Sigamos.
Ciro foi o único a estrelar um momento de lacração. E é justamente o trecho que os bolsonaristas estão espalhando por aí. Vamos ver. Num dado momento, o ator, também escritor e colunista, afirmou depois de Ciro ter chamado Lula de “corrupto”:
“Não estou fazendo a apologia de ninguém. Inclusive acho injusto chamar Lula de corrupto justamente porque ele foi inocentado…”
E Ciro interrompeu, lacrando:
“Ele não foi inocentado. Ele não foi inocentado. Ele não foi inocentado. É mentira do PT. O Lula teve os processos anulados. Ele volta à presunção de inocência. Mas ele não foi inocentado. Desculpa. Isso é mentira do PT.”
Foi, depois, à redes sociais e reiterou:
“Talvez a razão de Gregório estar apoiando o PT venha do fato dele acreditar que Lula foi inocentado das acusações que pesam contra ele.”
TRUQUE RETÓRICO
Ciro é advogado; Duvivier não. Na correção vocabular, o político está certo, e o colunista errado. No mérito, com todas as vênias ao ex-governador, quem produz desinformação é ele — e, não por acaso, os bolsonaristas estão reproduzindo à larga a sua fala.
De fato, o “ser inocentado” só poderia decorrer de um julgamento em que a inocência de Lula fosse declarada. E isso, com efeito, não aconteceu. Deu-se, de verdade, algo bem mais fabuloso: os processos foram anulados em razão de uma ilegalidade — e o nome é esse — de origem, que tornava tudo imprestável.
Vale dizer: nem havia como Lula ser “inocentado” num processo que jamais deveria ter existido com aquelas características, naquela vara, com aquele juiz.
Aí o próprio Ciro afirma, referindo-se a Lula: “Ele volta à presunção de inocência”. E o que isso quer dizer? Que, para a Justiça — e é de Justiça que estamos falando, certo, Ciro? —, Lula é inocente, ainda que não tenha sido “inocentado”. Há mais: Ciro precisaria admitir que ele foi considerado culpado por um juiz incompetente — razão por que os processos foram anulados — e suspeito.
Ou Ciro defenderia a ideia de que alguém que “volta à presunção de inocência” é, ao menos, meio culpado, um pouco culpado, um tanto culpado?
Isso, sim, é “lacração”. Duvivier errou no vocabulário, mas acertou na substância. E Ciro deveria ser o primeiro a reconhecê-lo: no fim do ano passado, ele próprio foi alvo de uma operação absurda, com mandado de busca e apreensão e o espalhafato costumeiro. Em fevereiro, a 4ª Turma do Tribunal Regional Federal da 5ª Região anulou o ato por unanimidade alegando falta de justa causa. Decisões da justiça não podem ser encaradas questões de somenos.
O que quer Ciro? Que se diga por aí que não se pode dizer que ele é inocente, uma vez que a operação foi anulada?
Quando o pré-candidato insiste, apelando à tecnicidade da palavra, que “Lula não foi inocentado”, fica parecendo que subsistem a condenação, a culpa. Aí ele próprio apela à linguagem técnica: “Volta à presunção de inocência”. Se é assim, volta a ser o que todos somos antes de condenações com trânsito em julgado: inocentes.
DO BALACOBACO!
É espantoso, no fim das contas, que tenhamos de debater essas coisas quando resta evidente que Jair Bolsonaro tenta criar as precondições para um golpe. Talvez não seja mesmo relevante saber se as chances aumentam no caso de uma derrota no segundo turno. Até porque a possibilidade de um rompimento da ordem democrática passa verdadeiramente a ser gigantesca não no caso de uma derrota do arruaceiro, mas no caso de uma vitória. E isso, sim, deveria preocupar os democratas. Se Bia Kicis retuíta Ciro Gomes, sempre é o caso de o pedetista ver se não está errando no tom.
E tenho de voltar a uma questão antiga e sem resposta. O ex-presidente não foi “inocentado” porque não houve julgamento que assim o tenha declarado. Fato. Ocorre que os julgamentos havidos não existem mais. Nem as ações penais. Então, para a Justiça, Lula é inocente. Ponto. É um predicativo do sujeito “Lula”. Não cabe voz passiva.
Ainda que assim não fosse, preciso repetir um desafio que fazia quando Lula estava preso, e o STF ainda não havia anulado os processos: desafio Moro e os desembargadores do TRF-4 que mantiveram a condenação a dizer em que página da sentença assinada por Moro estão as provas da denúncia apresentada por Deltan Dallangol e amiguinhos.
Eu não entendo por que nenhum dos valentes se digna a contar a mim e ao mundo, prestando, assim, um serviço público, não é? Eu não quero as “provas” de que Moro ACHA Lula culpado. Essas, eu já achei no texto. E ele vive a dizer isso por aí, inclusive quando proibiu, na prática, o petista de concorrer para ser esbirro de Bolsonaro. EU QUERO AS PROVAS DA DENÚNCIA FEITA E QUE LEVARAM LULA À CONDENAÇÃO E À PRISÃO.
Sabem por que ninguém aponta? Porque elas não existem. Porque não estão na sentença porca. Porque a denúncia diz uma coisa, e os supostos motivos para a condenação, outra. O próprio Sergio Moro admitiu isso em embargos de declaração.
ENCERRO
O advogado Ciro sabe que, para a Justiça, Lula é inocente sem ter sido “inocentado” — porque isso requereria que fosse feito no ambiente de um processo, que nem existe mais.
E, se leu a sentença, pessoa responsável que é, sabe também que, enquanto perduraram seus efeitos, tratou-se de uma condenação sem provas, que rendeu 580 dias de cadeia à vítima.
Ciro permitir-se ser retuitado por Bia Kicis num caso dessa gravidade é, entendo, perda de parâmetro.
E isso tudo não é uma mentira do PT porque não sou petista. Aliás, eu bati muito no PT quando Ciro era ministro de Lula, e um de seus irmãos, Cid, ministro de Dilma.
É verdade, Ciro: Lula não foi inocentado. Para a Justiça, ele é inocente!
Artigo publicado originalmente no UOL.
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