Por Uirá Machado e Lucas Marchesini
Vinicius Marques de Carvalho defende ampliar transparência e pretende uniformizar aplicação da Lei de Acesso à Informação
Em seu primeiro mês à frente da Controladoria-Geral da União, poucos temas ocuparam tanto a agenda do ministro Vinicius Marques de Carvalho quanto a Lei de Acesso à Informação (LAI). E, ao que tudo indica, isso não vai mudar tão cedo.
Logo na posse do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), ele recebeu a missão de rever os sigilos decretados na gestão de Jair Bolsonaro (PL), e a tarefa ainda deve tomar dois ou três meses.
Por enquanto, ele baixou 12 diretrizes para avaliar os casos herdados do governo anterior. Entre eles está, por exemplo, o processo administrativo que inocentou o deputado federal Eduardo Pazuello (PL) por ter participado, quando ainda era general da ativa, de um ato político com Bolsonaro.
Além disso, Carvalho pretende criar balizas para uniformizar a aplicação da LAI na administração federal. O objetivo é fazer valer a transparência como regra e evitar decisões contrárias a essa diretriz. Foi esse o caso, por exemplo, do sigilo da lista de convidados na festa da posse de Lula.
Mas o ministro também tem outros planos para a CGU, como levar o órgão a retomar papel relevante na aplicação da Lei Anticorrupção e fazer um balanço dos dez anos de vigência dessa lei.
“A política de combate à corrupção não pode ser esquecida, deixada de lado. Mas não pode ser feita ao arrepio do Estado de Direito. Porque daí o combate à corrupção se corrompe, e a gente entra num ciclo infinito de instrumentalização do combate à corrupção pela agenda política. E isso não pode mais acontecer no país”, diz o ministro.
O sr. já mencionou mais de uma vez que o governo Bolsonaro fez uma confusão na aplicação da Lei de Acesso à Informação. Era confusão técnica ou decisão política? As duas dimensões se interconectaram. Eu acho que havia um pressuposto de que o governo devesse ser menos transparente do que vinha sendo, ou do que se preconiza na Lei de Acesso à Informação.
A lei fala claramente que, se existem informações específicas dentro de documentos que merecem ter o acesso reservado, você tarja as informações. Mas se passou a expandir isso para o documento inteiro. Acho que isso é uma questão de orientação, que pode até não ter sido dada de cima para baixo. Ela pode ter sido construída aos poucos.
Felizmente, é algo reversível. A gente tem notado muitos servidores públicos satisfeitos com a volta do cumprimento da lei. Tem muita gente que trabalha com isso, que sabe que garantir a transparência da administração pública é um valor.
Mas tem decisões que são difíceis e, na dúvida, o servidor fecha. Essa dimensão do dado pessoal é muito relevante. Como todos somos iguais, isso leva a uma conclusão de que os nossos dados têm que ser protegidos igualmente. Só que nós temos funções distintas na sociedade. Tem gente que talvez achasse que o fato de se tratar de uma autoridade pública não muda essa dimensão do dado pessoal, mas ela muda, sim.
Um exemplo é o cartão de vacinação do ex-presidente? Existe um debate. Eu não tenho muita dúvida, por exemplo, em relação a exames médicos, consultas médicas. São coisas da vida privada. Mas há uma discussão quando se está diante de uma política pública de vacinação no meio de uma pandemia. As pessoas eram estimuladas, ou desestimuladas, a se vacinarem, e isso gerava impacto no índice de contaminação, nas mortes.
Numa situação como essa, será que há interesse público numa carteira de vacinação de uma autoridade pública? A discussão é legítima, e a decisão vai ser tomada pela área técnica da CGU.
Quais são os principais obstáculos à LAI dentro da máquina pública? A lei tem uma grande qualidade. Para tornar a transparência de fato um valor para a sociedade, ela pulverizou sua aplicação em todos os ministérios, em todos os Poderes, em todos os entes da Federação.
Isso gera um desafio enorme de coordenação, no sentido de uniformização. Porque, quando a imprensa faz um pedido pela lei e tem uma resposta lá na ponta dizendo “não”, ela já assume que é uma política de governo.
De fora para dentro, as pessoas veem o governo como algo único. Por mais que vocês [jornalistas] saibam que existem instâncias recursais, quando vocês recebem uma primeira… Pelo menos foi essa a manchete: “Governo Lula nega acesso”.
O sr. se refere ao sigilo sobre os nomes dos convidados na festa da posse? É. O governo Lula tem quatro instâncias em matéria de acesso à informação. Eu entendo; não estou criticando essa visão. Isso foi uma coisa que a lei fez. Então nosso papel aqui é garantir a uniformização dos entendimentos. E é claro que o caminho do convencimento é sempre o melhor. Mas enunciados existem para serem cumpridos.
Foi um erro de quem tomou a decisão? Foi um erro. Um erro escusável, num certo sentido, porque a pessoa tomou a decisão que era sempre tomada nesse tipo de caso. E com base nessa visão: são nomes de pessoas, portanto lei de proteção de dados pessoais…
Ou argumentos relacionados à segurança. Só que o argumento da segurança se aplica menos ainda nesse caso, porque a festa já tinha acontecido. Se me pedissem o acesso à lista antes de ela acontecer, eu teria negado. Mas depois?
Sempre se diz que o Itamaraty e as Forças Armadas têm mais resistência à transparência. Esse vai ser um obstáculo? Esses são casos em que a preocupação tem uma justificativa. Estamos falando de Forças Armadas e de relações internacionais. São negociações internacionais, tratativas comerciais, enfim, diálogos complexos, difíceis. A mesma coisa para as Forças Armadas em relação a suas competências.
Mas nem todas as atividades precisam desse tipo de sigilo. Só que, quando se está num lugar em que muita coisa, por motivos legítimos, fica com restrição de acesso, cria-se uma cultura mais conservadora. Então esses ministérios são alvo de maior preocupação por conta dessa dimensão institucional, não por comportamento individual desviante de alguma pessoa.
Com a entrega do relatório sobre os sigilos do Bolsonaro, qual vai ser a próxima prioridade da CGU? Esse tema vai ser prioridade ainda. Ele não pode sair do radar. Seja pela complexidade dos sistemas que a gente precisa estruturar para conquistar e aumentar nosso nível de coerência, seja porque essa política não se resume à LAI. A gente tem que criar contextos para ampliar a transparência ativa, por exemplo.
A agenda de integridade pública é muito importante, porque também envolve uma discussão sobre a lei de conflito de interesses. Está tramitando no Congresso a lei do lobby, e a gente tem de entrar nessa discussão.
Na agenda de integridade privada, a lei 12.846, chamada Lei Anticorrupção, que a gente gosta de chamar de Lei da Empresa Limpa, está fazendo dez anos. É o momento de fazer um balanço.
Nessa área do combate à corrupção, quero usar a experiência de oito anos de Cade para tentar montar um sistema mais funcional e que tenha mais efetividade. A gente também é o órgão central do sistema de ouvidorias; temos que aprender a usar isso como insumo para aprimorar as políticas públicas.
E tem a agenda de controle interno, com a Secretaria Federal de Controle, que é responsável pelos diversos tipos de avaliação das políticas. A secretaria constrói sua agenda de auditorias, mas às vezes aparecem temas na ordem do dia que têm que ser incorporados.
Um exemplo é essa questão muito triste dos yanomami, em que nós já começamos a trabalhar com Tribunal de Contas [da União] para tentar fazer um diagnóstico mais profundo da situação e ver como a gente lida com esse tema.
Que ferramentas de combate à corrupção a CGU adotará? As ferramentas de integridade pública são muito importantes na perspectiva da prevenção. Quanto mais transparência houver, maior é a possibilidade de escrutínio.
Sobre a Lei Anticorrupção “stricto sensu”, a gente tem que reativar a capacidade de a CGU ser ator relevante. Ao contrário do Cade, que ficou dez anos implementando política de combate a cartéis e fazendo acordo de leniência até a Lava Jato aparecer, a Lei Anticorrupção teve um ano de vida e veio a Lava Jato. O Ministério Público passou a dizer que tinha competência para fazer acordos de leniência. O TCU passou a estabelecer parâmetros e dizer que tem competência para revisar os acordos.
Tudo isso criou uma discussão forte sobre essas delimitações de competência e sobre como as empresas deveriam ser tratadas nesse ambiente. A gente precisa superar qualquer conflito que ainda exista em relação às competências. Precisa avançar nas discussões de dosimetrias. Precisa de um programa de leniência que de fato gere incentivos para as empresas cooperarem.
Muitos críticos da Lava Jato dizem que a operação quebrou empresas que poderiam ter sido salvas. Qual sua avaliação sobre esse dilema? É um dilema real. Existir uma multa que vai até 20% do faturamento de uma empresa —não do lucro—, dependendo da forma como é aplicada, poucas empresas no Brasil sobreviveriam [a isso].
A multa não pode ser o único pilar. Tem que ter incentivos que se dirijam às pessoas físicas gestoras e controladoras dessas companhias. Elas não podem viver uma situação em que haja um incentivo à corrupção porque, se tiver uma multa, só a empresa paga. Se o patrimônio das pessoas também puder ser afetado em determinadas situações, você pode melhorar essa estrutura de incentivos.
A pergunta que se faz nessa hora é: será que eu estou punindo quem eu deveria punir quando eu decreto a pena de morte de uma companhia? Eu estou atingindo a dimensão institucional da companhia. Será que é só essa dimensão que eu deveria atingir?
O sr. integra o governo de um partido que já esteve envolvido em dois grandes escândalos de corrupção. Que garantias o sr. tem de que poderá atuar livremente no combate à corrupção? Houve escândalos de corrupção em diversos governos. Esses escândalos vão aprimorando a capacidade do Estado de se organizar para combater a corrupção. Tenho certeza de que a agenda do presidente Lula é essa. Tenho certeza de que o presidente Lula não quer outros escândalos. Ele não quer, o governo dele não quer, nenhum ministro quer conviver com aquilo que se conviveu no passado.
E tenho certeza de que a sociedade brasileira não quer que a investigação de combate à corrupção perca a objetividade e se transforme em uma caçada contra uma ou duas pessoas.
A política de combate à corrupção não pode ser esquecida, deixada de lado. Mas não pode ser feita ao arrepio do Estado de Direito. Porque daí o combate à corrupção se corrompe, e a gente entra num ciclo infinito de instrumentalização do combate à corrupção pela agenda política. E isso não pode mais acontecer no país.
A revisão da Lei das Estatais não contraria esse discurso? Não vou fazer juízo de valor sobre algo que não é da minha competência como ministro. Mas muitos critérios da Lei das Estatais teriam sido cumpridos pelas pessoas que participaram dos escândalos. O que tem de funcionar são os controles.
Uma empresa estatal existe para implementar política pública, ou então não tem por que ela ser estatal. É natural que o governo queira direcionar a agenda daquela estatal, desde que dentro dos limites da legalidade e do fato de ela ser empresa.
Não vejo isso com grande drama. Muita gente que atua no meio político é competente e honesta, e muita gente que atua no mercado é incompetente e desonesta. Não acho que, como regra, essa estigmatização do agente político numa estatal seja saudável para as próprias estatais. Como regra, o importante é que os controles funcionem.
Como estão os processos contra servidores que participaram dos protestos do dia 8? O governo entende que a participação nesses atos, principalmente de maneira ostensiva, merece ser classificada como ilícito funcional da parte do servidor público. Mas, por enquanto, não estamos nos antecipando em prejulgar ninguém nem falar em nome de ninguém, porque temos mais casos de homônimos do que de servidor mesmo.
Entrevista publicada originalmente na Folha de S.Paulo.
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