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Da urna à tribuna: um itinerário inacabado na história da participação feminina no poder

Da urna à tribuna: um itinerário inacabado na história da participação feminina no poder

“Se a mulher tem o direito de subir no cadafalso, ela deve ter igualmente o direito de subir à tribuna.”

Olympe de Gouges. 1793.

Desde que a icônica intelectual francesa pagou com a vida sua defesa do direito feminino à participação na política, foram e são muitas as mulheres que seguiram e seguem na luta pela inclusão feminina nos espaços de poder.

O movimento sufragista da segunda metade do século XIX e início do século XX, que mobilizou mulheres pela conquista do direito ao voto, fez história e também vítimas- Emily Davison, na Inglaterra, ao se jogar na frente do cavalo do Rei George para chamar atenção para a causa foi uma delas- e sua eclosão em diversos países do mundo, aliada ao caráter coletivo que a luta assumiu desde então acabou por trazer avanços e paulatinamente contabilizar conquistas de direito feminino ao voto. Assim, Nova Zelândia (1893) e Austrália (1902) puxam a fila dos países que consagram o direito das mulheres ao voto, sendo a Arábia Saudita (apenas agora em 2011) o último país a incorporar esse direito ao seu ordenamento.

No Brasil, o direito das mulheres ao voto está consagrado nacionalmente desde 1932, a teor do artigo 2º, do Código Eleitoral da época (Decreto n. 21.076/32), e constitucionalizado desde a Carta de 1934, nos termos de seu artigo 108. Completamos no último 24 de fevereiro, portanto, 90 anos da consagração do direito feminino ao voto em nosso país. Uma data comemorada e com razão.

Mas se o direito ao voto foi e é uma conquista relevantíssima de inclusão feminina na vida política das nações, as mulheres logo perceberam que ele não trouxe a concomitante e proporcional participação feminina nos postos de poder. Essa constatação deu início a novas lutas, entre as quais a dos movimentos dedicados ao estabelecimento de regras garantidoras da efetiva participação das mulheres no exercício do poder.

Essa nova etapa da luta feminina por participação das mulheres em postos de direção ocorre em todo o mundo e não se circunscreve à esfera pública, abrangendo também o setor privado, notadamente das grandes corporações. A Noruega, no início dos 2000 – mais precisamente entre 2002 e 2003- foi pioneira em obrigar empresas públicas e privadas de capital aberto a adotarem cotas para mulheres em seus conselhos diretores. França, Bélgica, Holanda, Itália, Espanha, entre outros, se inspiraram na iniciativa norueguesa para estabelecer percentuais mínimos de participação feminina nos postos diretivos das empresas, tudo a demonstrar o potencial da pauta para angariar adeptos. No Brasil, tramita no Congresso projeto de lei prevendo a adoção de cotas para conselho de administração de companhias abertas e empresas públicas (PL 785/21) e para postos de trabalho operacional na construção civil (PL 5358/20).

Por aqui, aliás, o tema da inclusão feminina é pauta que, principalmente nesta última década, vem crescendo em relevância.

Na seara pública a demanda tem produzido resultados visíveis na esfera da política partidário-eleitoral. Assim, a Lei das Eleições, em alteração de 2009, prevê que os partidos devem, para as eleições proporcionais, destinar um mínimo de 30% e um máximo de 70% de suas candidaturas a mulheres. Julgamento do STF de março de 2019, proferido na ADI 5617/2018, ademais, determina aos partidos políticos a destinação de pelo menos 30% dos recursos do Fundo Partidário para as candidaturas femininas. No Congresso Nacional, ainda, tramita projeto de lei já aprovado no Senado que, para além do percentual mínimo de candidaturas femininas, garante número mínimo de cadeiras nos Parlamentos Federal, Estadual e Municipal para preenchimento obrigatório por mulheres (PL 1951/21). Hoje o Congresso Nacional abriga 77 (setenta e sete) deputadas federais no universo de 513 (quinhentas e treze) cadeiras, o que soma 15% (quinze por cento) das vagas. No Senado são 7 (sete) mulheres entre 81 Senadores, menos de 10% (dez por cento) do total.

A participação das mulheres em postos dirigentes do Poder Executivo, por sua vez, não conta, até aqui, com legislação impositiva de cota. É verdade que já elegemos prefeitas (a primeira ainda em 1927, no RN), governadoras (poucas, diga-se) e presidenta (uma única, Dilma Rousseff), sendo a questão de gênero aspecto que repercute na formação de ministério, secretariado, comando de empresas estatais, entre outros. A ausência ou a presença das mulheres nesses postos de comando tem sido, aliás, fator de identificação do perfil do governo e do governante da vez, de modo que governos infensos à presença feminina são a representação do extrato mais conservador e preconceituoso do espectro político.

No Poder Judiciário, muito fechado às mulheres por décadas, onde o ingresso feminino começa a ganhar alguma consistência no fim dos anos 1980, a composição atual das Cortes abriga três Ministras no STF, seis no STJ, seis no TST, uma no STM, e duas Ministras substitutas no TSE. Nas demais carreiras jurídicas de Estado, as ditas procuraturas -Ministério Público, Advocacia Pública e Defensoria Pública- o cenário tampouco é diferente, a presença de mulheres no comando institucional ou na disputa pelo comando institucional é bastante tímida, aquém do que poderia e deveria ser tendo em conta inclusive a composição dessas carreiras, o que revela o alto grau de resistência existente no meio jurídico à consideração da mulher em posição de igualdade.

De qualquer maneira, as conquistas institucionais já alcançadas têm levado as mulheres, de maneira crescente, a refletirem sobre seus espaços de atuação, aí incluídos aqueles relativos às corporações profissionais, de classe, associações e sindicatos.

Foi no bojo dessas reflexões e comparações que as advogadas, hoje perto de 50% (cinquenta por cento) do quadro de inscritos na OAB, se deram conta que nenhuma mulher nunca tinha sido dirigente da entidade em toda sua história, tanto no âmbito federal quanto no das seccionais. Essa realidade perdurou até o fim de 2021 e só mudou pela luta de profissionais que fizeram da igualdade de gênero nas instâncias diretivas da advocacia agenda e, finalmente, norma.

É a partir do chamado Projeto Valentina, garantidor da paridade de gênero e cota racial para as eleições da OAB, aprovado em dezembro/2020, que essa realidade começa a mudar, e neste 2022, pela primeira vez na história do país, temos cinco advogadas dirigindo as Seccionais de SP, PR, SC, BA, e MT.

Verdade que faltou sensibilidade, desapego, sentido de oportunidade para que uma advogada fosse a cabeça da chapa- chapa única, diga-se -formada para a recente eleição – ainda indireta- que escolheu a atual diretoria da OAB Federal. Mas o potencial paradigmático do Projeto Valentina é imenso e lança as bases para que em todo o país as mulheres busquem a participação paritária nas entidades profissionais e de classe de que participam.    

Esse movimento, aliás, já começou. Inspiradas pela luta encetada na OAB, e tocadas pelo protagonismo da colega Valentina Jungman,-Procuradora do Estado de Goiás e então Conselheira Federal da OAB, cujo nome estampa a vitoriosa campanha de inclusão feminina na entidade- um grupo de advogadas públicas estaduais deflagrou no ambiente do último Congresso Nacional dos Procuradores do Estado e do Distrito Federal, que ocorreu em agosto/2021 em Brasília, campanha pela paridade de gênero e fixação de cotas raciais para os cargos de direção da ANAPE- Associação Nacional dos Procuradores do Estado e Distrito Federal, entidade que, criada nos anos 1990, nunca teve uma mulher em seu comando.

Munidas de bótons com os dizeres “Paridade Já”, distribuídos aos simpatizantes da proposta na cerimônia de abertura do evento, e portando manifesto em forma de abaixo-assinado, as Procuradoras Estaduais requereram a realização de assembleia geral para a promoção de alteração estatutária destinada a garantir a paridade de gênero e a fixação de cota racial para os cargos de direção da ANAPE. Houve formalização da pretensão perante o Conselho Deliberativo da entidade e recentemente os associados da ANAPE foram informados que haverá assembleia geral, no próximo dia 11 de março, para alteração estatutária, sendo uma das pautas exatamente a questão da paridade de gênero e cota racial na composição da direção da entidade.

Trata-se, inequivocamente, para todas que participamos do movimento por paridade, e tenho certeza de que para todo o conjunto das Procuradoras Estaduais, uma alegria constatar que o pleito vai se concretizar por nossa provocação, mas também pelo senso de oportunidade da Diretoria e do Conselho Deliberativo da entidade que com reconhecida presteza pautaram a alteração estatutária. As construções coletivas são sempre as melhores e esta esperamos possa ser um exemplo profícuo nesse sentido.

O caráter inclusivo de todas as iniciativas de participação feminina em postos de comando tem um sentido fortemente democrático. A democracia, ensina-nos Robert Dahl, assenta-se sob os pilares da inclusão e da contestação, de tal modo que a maior inclusão afeta diretamente a capacidade de contestação, motor propulsor das mudanças e do aprimoramento das instituições.

Lógico que nada é tão fácil e na jornada pela democratização dos espaços decisórios de atuação públicos e privados a luta de convencimento pela partilha do poder com as mulheres muito terá que avançar.

Nessa própria e auspiciosa movimentação aqui reportada de inclusão das Procuradoras nos postos diretivos de sua entidade nacional de representação, ainda se terá que lidar, ao que nos foi dado saber, com proposta que admite a flexibilização do princípio paritário “se não houver mulheres interessadas em compor as chapas”.

Evidentemente trata-se de dispositivo que encerra um enorme contrassenso, até porque o percentual de mulheres na Advocacia Pública é bastante significativo nacionalmente e a possibilidade de não haver mulher interessada em participar equipara-se à possibilidade de não haver homem interessado nos pleitos.

Normativa do tipo tanto sinaliza uma incompreensão hoje descabida do substrato que informa a política afirmativa de cota como projeta o futuro pela fotografia do passado. Ademais, exala cheiro, gosto e cor de Lampedusa na célebre frase de Il Gattopardo: “si vogliamo che tutto rimanga com’é, bisogna che tutto cambi”, o que, temos certeza, não é a intenção de nenhum dos envolvidos nesse processo, máxime das Advogadas Públicas, que seguem confiantes no potencial do diálogo como ferramenta suficiente para a exclusão do texto infeliz.

Nessa quadra da história e sobre a participação feminina nos espaços decisórios públicos e privados, nossa mensagem, a mensagem das mulheres tem sido muito clara: Chega de cadafalso! Não abrimos mão do direito à tribuna. Esse o significado da luta pela paridade de gênero e cota racial nas diferentes instâncias de poder. É um caminho de construção de democracia substancial, livre de apagamentos estruturais, pelo reconhecimento, capaz de desenhar um novo mundo, verdadeiramente inclusivo e solidário. Essa nossa crença, isso que nos move.

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