Por José Antonio Dias Toffoli
1.Introdução
De minha formação humanística e jurídica, que tem nas Arcadas do Largo do São Francisco e em seus mestres uma referência para toda a vida, guardo, com especial carinho, as primeiras reflexões aprofundadas que ouvi, como estudante da disciplina de Filosofia do Direito, em 1989, ministrada por nosso homenageado, o professor Celso Lafer, sobre a obra de Hannah Arendt (1906-1975).
O honroso convite para participar desta obra coletiva representa também a oportunidade de prestar meu reconhecimento público ao trabalho de Celso Lafer não apenas como professor, mas também como personalidade de destaque na vida pública brasileira e internacional nessas mais de três décadas de convivência democrática no Brasil sob a égide da Constituição de 1988.
Nesse período, as duras lições da História da humanidade no século XX e as reflexões de Hannah Arendt, de indiscutível atualidade neste início de milênio, foram generosamente compartilhadas pelo professor Lafer em cada oportunidade que teve para discutir os rumos do Brasil democrático legado a minha geração e às gerações futuras, resultante da coragem, do trabalho e da capacidade de dialogar e construir consensos das brasileiras e brasileiros que nos antecederam.
Em “Hannah Arendt: pensamento, persuasão e poder”, o professor Lafer oferece um fascinante panorama sobre a vida e a obra da pensadora corajosa e independente que ele define, com propriedade, como “intérprete autêntica do século XX”[1].
Nos momentos turbulentos que marcam as primeiras décadas do século XXI, as reflexões de Arendt assumem redobrada relevância por representarem um profundo e apurado olhar sobre os ensinamentos das tragédias humanas e institucionais legadas, ao longo do século XX, pelo autoritarismo e pelo totalitarismo em seus mais variados formatos e roupagens ideológicas. A eclosão do ovo da serpente totalitária naquele período e a rica análise sobre esse fenômeno histórico contida na obra de Hannah Arendt oferecem instrumentos válidos ainda hoje para entender a natureza humana e suas relações com o poder no novo contexto em que vivemos.
2.A sociedade em rede e a quebra da tradição na esfera pública
Em texto de características visionárias escrito em 1972 e publicado no prefácio da 8ª edição brasileira do livro Entre o Passado e o Futuro, de Arendt, o professor Celso Lafer chamou a atenção para a crise profunda do mundo contemporâneo, que tem como uma de suas características o esfacelamento da tradição e suas repercussões na esfera pública. Naquele momento, Celso Lafer já fazia referência à importância da era da “comunicação ilimitada e sem fronteiras” para a natureza dialógica da política, ressaltada pela autora.[2]
Vivemos, na atualidade, em um contexto de inovações tecnológicas disruptivas no campo da comunicação, o que é notório na dinâmica das forças políticas e na atitude de seus militantes e simpatizantes em relação ao jornalismo profissional e às mídias de massa. Não podemos esquecer que, até há pouco, esses meios de comunicação ditavam, quase exclusivamente, o debate público, fazendo seu enquadramento (framing), termo cunhado na década de setenta por Erving Goffman e que pode ser resumido na capacidade da mídia tradicional de eleger e formatar os temas prioritários do debate público[3].
Essa capacidade de iniciativa e o próprio modelo de negócios da mídia foi posto em xeque pelo novo paradigma da chamada “sociedade em rede”. Ao mesmo tempo, a própria noção de respeito nas interações sociais foi igualmente abalada pelo recurso ao anonimato nas plataformas digitais e pela crispação política e social, alimentada por forças políticas e por algoritmos que fornecem aos clientes de plataformas de redes sociais elementos que reforçam suas próprias visões de mundo.
No campo da comunicação, essencial para o debate público, o sociólogo espanhol Manuel Castells foi um dos pioneiros, ainda na década de noventa, em alertar para o fato de que vivemos um novo paradigma da sociedade em rede, que se caracteriza por ter como base as redes de comunicação digital e por funcionar a partir de redes globais. Naquele momento, as observações do autor já representavam um contraponto à atitude predominantemente eufórica da sociedade em relação ao advento das novas tecnologias e a seu impacto social.
O autor afirma que “as redes de comunicação digital são a coluna vertebral da sociedade em rede, assim como as redes de potência (ou redes de energia) constituíam as infraestruturas sobre as quais a sociedade industrial foi construída.”[4] Ademais, “sua lógica chega a países de todo o planeta e é difundida por meio do poder integrado nas redes globais de capital, bens, serviços, comunicação, informação, ciência e tecnologia.”[5]
Manuel Castells também observa que não é a tecnologia que determina a sociedade, ela constitui a própria realidade. Sociedade e tecnologia estão unidas de maneira indissociável. As ferramentas tecnológicas dessa nova era e as redes de comunicação digital são moldadas pela sociedade e, ao mesmo tempo, moldam a própria sociedade. Somos, portanto, uma sociedade digital, hiperconectada e global.
Em A Morte da verdade, Michiko Kakutami também faz contraponto à euforia inicial verificada com o advento da internet e das novas tecnologias digitais, afirmando que, “quando se trata da disseminação das fake news e de minar a crença na objetividade, a tecnologia se provou um combustível altamente inflamável. Cada vez mais nos damos conta do lado sombrio do que foi imaginado, a princípio, como um catalisador de inovação e mudanças.”[6]
Castells aponta também em outra obra, La era de la información, lançada em 1996, uma importante mudança de paradigma na relação entre os meios de comunicação e seu público, propiciada pela tecnologia da informação: de consumidoras passivas de conteúdo produzido por esses meios, as pessoas passaram a ser também produtoras e disseminadoras de conteúdo informativo[7].
A filmagem, com um celular, das cenas de violência policial que levaram à morte de George Floyd, em 25 de maio de 2020, e a avalanche de indignação que se seguiu ao episódio são emblemas dessa nova realidade. A adolescente responsável pela filmagem, Darnella Frazier, recebeu em 2021 um prêmio especial dos Pullitzer Prizes[8], maior distinção aos trabalhos jornalísticos e literários de destaque nos Estados Unidos, concedida anualmente. A visão profética e inovadora de Castells captou o efeito disruptivo da internet no âmbito da comunicação social, com o fim da exclusividade da comunicação por parte da mídia profissional.
É importante mencionar também outra questão relevante, a do anonimato na esfera virtual, analisada pelo filósofo Byung-Chul Han, para quem esse elemento conspira contra a noção de respeito nas interações nas redes digitais, com reflexo na interação, por meio delas, com as instituições. No atual momento de quebra de paradigmas e do avanço dos algoritmos, o alto nível de ruído na comunicação deriva, em boa medida, do anonimato e da prevalência do espetáculo sobre o respeito. É dele a expressão ‘shitstorm’, que numa tradução mais recatada, significaria tempestade de indignação.[9]
Han identifica, na origem do fenômeno, a perda da noção de respeito como alicerce da esfera pública. O respeito é entendido pelo autor como consideração e cautela na relação com o interlocutor. Para o autor, respeito é a base do comportamento na esfera pública, e está vinculado a nomes próprios. Essa perda e suas consequências negativas ocorrem a partir do recurso frequente ao anonimato e da prevalência da indiscrição nas interações nas redes.
Ao mencionar Marshall McLuhan e seus estudos pioneiros nos anos sessenta sobre o impacto das tecnologias eletrônicas nos meios de comunicação, Han alerta, já no prefácio do livro “No enxame: perspectivas do digital”, para uma nova e profunda mudança social provocada pelas ferramentas digitais:
Somos desprogramados por meio dessa nova mídia, sem que possamos compreender inteiramente essa mudança radical de paradigma. (…)
Embriagamo-nos hoje em dia da mídia digital sem que possamos avaliar inteiramente as consequências dessa embriaguez. Essa cegueira e a estupidez simultânea a ela constituem a crise atual.[10]
Em sua obra They don’t represent us – reclaiming our democracy, lançada em 2019, o professor norte-americano Lawrence Lessig define o momento histórico atual como o da “pós-difusão” por TV, rádio e imprensa escrita. Especialista no estudo da atual crise na representatividade política e dos desafios impostos à democracia pelo novo paradigma tecnológico e pelo modelo de negócio dos conglomerados empresariais que controlam as redes sociais, Lessig observa que, com raras exceções, as famílias já não se sentam diante da TV para repassar a atualidade do mundo, porque ela invade celulares e computadores a cada minuto.
A compreensão comum da realidade, a partir de fontes de informação que tendiam a uma certa homogeneidade na seleção e no tratamento dos assuntos, como os telejornais noturnos da TV aberta, passou a ser um dado do passado para parte significativa da cidadania, em razão da proliferação da oferta de informação e de entretenimento em diversas plataformas. Neste novo mundo, de intensa competição pela atenção do usuário, o autor assinala que decisões empresariais, orientadas por algoritmos, não hesitam em recorrer à divisão e ao conflito no debate político para ampliar lucros e números de seguidores, distribuídos por guetos virtuais.[11]
O dano colateral mais significativo dessa verdadeira Babel é o que impede as pessoas de dialogar sobre uma base factual comum. A desconfiança permanente em relação ao outro e a intolerância levaram contingentes expressivos de indivíduos a se entrincheirarem em zonas de conforto ou guetos virtuais, nos quais acreditam firmemente ter direito a seus próprios fatos. Não se trata do direito a ter as próprias opiniões, e sim do direito de escolher os próprios fatos, ainda que totalmente dissociados de qualquer base factual ou empírica. O terraplanismo talvez seja o exemplo mais folclórico dessa tendência, e a resistência a vacinas, incluídas aquelas contra a COVID-19, o mais trágico.
3.A atualidade das reflexões de Arendt sobre a mentira
A obra de Hannah Arendt é anterior ao advento da internet e de suas reverberações, como a chamada era da “pós-verdade”, termo inicialmente cunhado pelo dramaturgo Steve Tesich, em artigo de 1992 na revista The Nation[12], e desenvolvido posteriormente por outros autores. ‘Post-truth’, a propósito, foi a “palavra do ano” em 2016, segundo levantamento anual do Dicionário de Oxford.[13] Na sequência, em 2017, sintomaticamente, “fake news” foi a palavra do ano escolhida pelo dicionário Collins.[14]
No entanto, como é característico dos clássicos, a obra e as reflexões de Arendt seguem vigentes, com sua profundidade de análise e os elementos humanos envolvidos. Um exemplo claro de atualidade é a seguinte declaração dada por Arendt em entrevista concedida ao jurista e escritor francês Roger Errera em várias sessões de gravação em outubro de 1973:
No momento em que não mais tivermos uma imprensa livre, tudo pode acontecer. O que torna possível que uma ditadura totalitária ou qualquer outra governe é que as pessoas não estejam informadas; como se pode ter uma opinião se não se está informado? Se todo mundo sempre mentir para você, a consequência não é que você vai acreditar em mentiras, mas sobretudo que ninguém passe a acreditar mais em nada. (…) E um povo que não acredita mais em nada não pode tomar decisões. Ele é privado não apenas de sua capacidade de agir, mas também de sua capacidade de pensar e julgar. E com esse povo você então pode fazer o que quiser.[15]
A declaração, curiosamente, ficou fora da versão editada da entrevista, transmitida pela TV pública francesa em julho de 1974. A transcrição da entrevista foi publicada, postumamente, em 2013, em um livro contendo entrevistas da autora.[16]
A filósofa falava tendo em mente as experiências totalitárias do século XX, em que a propaganda ideológica estatal tinha como base a manipulação do sentido de realidade das pessoas. Ainda que os instrumentos tecnológicos de manipulação possam ser distintos e que a imprensa livre siga cumprindo seu papel nas sociedades democráticas, os instrumentos psicológicos por trás da desinformação e das campanhas de ódio e de intolerância seguem plenamente vigentes.
Do falecimento de Arendt, em 1975, para cá, os tempos da história e do cotidiano adquiriram ritmo vertiginoso, e as seguidas quebras de paradigmas tecnológicos revolucionaram a convivência humana e em especial a dinâmica interna dos países. Os desdobramentos e as externalizações dessa aceleração em curso são um fascinante campo de estudos em tempo real. Representam também um enorme desafio, como nos têm mostrado as realidades brasileira e internacional no que se refere à efetividade das respostas do Estado Democrático e de suas instituições às demandas de uma cidadania que, embora exigente e conectada, é vulnerável a notícias fraudulentas, a crimes transnacionais, à invasão da privacidade, ao terrorismo analógico e ao cibernético, a campanhas de ódio e intolerância e ao poder de manipulação dos algoritmos.
A atualidade da obra de Arendt, no entanto, permanece intacta.
Não por acaso, citei trecho de sua declaração a Errera sobre a disseminação da mentira e suas consequências nefastas em meu voto no julgamento da ADPF 572 pelo Plenário do STF, em junho de 2020, tendo a Corte declarado legal e constitucional, por dez votos a um, o chamado inquérito das fake news.
Na obra Origens do totalitarismo, inicialmente publicada em 1951, Hannah Arendt nos ajuda a entender os movimentos de inspiração autoritária da atualidade, ao desnudar que “as massas haviam chegado a um ponto em que, ao mesmo tempo, acredita[vam] em tudo e em nada, julgavam que tudo era possível e nada era verdadeiro”.[17]
Arendt cita, como um dos elementos na constituição de regimes totalitários, “a cega hostilidade das massas contra o mundo existente”, aproveitada para “inspirar a mesma lealdade total, na vida e na morte, que caracterizava as sociedades secretas e conspiradoras.”[18] Ainda segundo a autora, com esses elementos de inspiração,
Os líderes totalitários basearam a sua propaganda no pressuposto lógico correto de que, em tais condições, era possível fazer com que as pessoas acreditassem nas mais fantásticas declarações em determinado dia, na certeza de que, se recebessem no dia seguinte a prova irrefutável de sua inverdade, apelariam para o cinismo; em lugar de abandonarem os líderes que lhes haviam mentido, diriam que sempre souberam que a afirmação era falsa, e admirariam os líderes pela esperteza tática.[19]
A distinção mais clara a fazer entre o período histórico no qual Arendt apresentou suas reflexões e a atual era da pós-verdade, na minha avaliação, tem a ver com o papel da mídia tradicional. Ao longo do período, a mídia deixou de ser, para muitos, uma referência. E passou também a ser alvo de discursos de ódio e de intolerância. Minar a credibilidade do jornalismo profissional passou a ser, no contexto atual, recurso à disposição de líderes políticos que priorizam a difusão de suas mensagens em canal direto com seus seguidores, por meio de plataformas de redes sociais.
Um episódio relatado pela jornalista Lesley Stahl, do programa de TV 60 Minutes, da rede norte-americana CBS, e não desmentido por Donald Trump, ajuda a compreender a demonização da mídia como estratégia política da era da pós-verdade. Segundo Stahl, em uma conversa privada com o então candidato presidencial Trump, em 2016, ela o questionou sobre a retórica agressiva contra meios de comunicação adotada sistematicamente por ele, que incluía a expressão ‘fake news media’, e recebeu a seguinte resposta: “Ele disse: sabe a razão de eu fazer isso? Faço isso para desacreditar todos vocês, para humilhar todos vocês, para que ninguém acredite quando vocês escreverem matérias negativas a meu respeito.”[20]
Quatro anos depois, por ocasião da campanha à reeleição, o então presidente Donald Trump foi confrontado pela mesma Lesley Stahl a respeito de sua afirmação de 2016, mas desconversou, em uma tensa entrevista para o mesmo programa jornalístico, no ar desde 1968 e um dos mais premiados da TV norte-americana.[21]
Como a “imprensa livre”, citada por Arendt como parte da solução, virou alvo e parte do problema? Atribuir esse fenômeno somente à estratégia de líderes como Trump não oferece uma resposta completa, a meu ver.
O escritor e ex-repórter norte-americano James Fallows, já na década de noventa, antecipou alguns elementos desse cenário distópico em uma dura crítica aos rumos da mídia no livro Detonando a notícia – como a mídia corrói a democracia americana. O autor não isenta a política de sua responsabilidade nesse processo de desgaste da democracia, mas concentra seu foco na mídia como elemento importante da equação:
Forças poderosas das estruturas políticas, econômicas e sociais da América são responsáveis pela frustração política contemporânea, mas as atitudes da mídia também tiveram um efeito surpreendentemente destrutivo. Assuntos que realmente afetam o interesse coletivo da população – crime, saúde, economia – são apresentados meramente como uma arena, na qual os políticos podem lutar.[22]
No livro, anterior ao advento de ferramentas como o smartphone, que transformou a maneira como se produz e se consome tanto informação como entretenimento, o ex-repórter Fallows critica com dureza o advento dos jornalistas que se tornam celebridades, o olhar depreciativo da mídia sobre a política e o modo como exerce seu poder de informar, que ele considera pouco responsável:
Ao decidir apresentar a atual vida pública tal qual uma competição entre líderes políticos, a quem os leitores deveriam olhar com suspeita, a mídia ajuda a concretizar o que preconiza. (…) Cada vez mais, a imprensa apresenta principalmente a vida política atual como um espetáculo deprimente, em vez de apresentá-lo como uma atividade vital, na qual os cidadãos poderiam e deveriam estar engajados. Esse modo de encarar a vida pública deixa subentendido que o público só dará atenção à política se ela se tornar tão interessante quanto as outras opções de entretenimento à sua disposição – que vão desde os escândalos promovidos por celebridades aos melodramas apresentados nos talk shows pela manhã e à tarde, nos mais diversos canais de TV. Ao tentar competir cabeça a cabeça com programas de puro entretenimento, a imprensa “séria” se mete numa competição que simplesmente não pode vencer. Pior ainda, aumenta as chances de sua virtual extinção.[23]
Em período mais recente, e já em plena era dos smartphones, a professora Nora Pavão, da Universidade Federal de Pernambuco, conduziu estudos muito interessantes a respeito do impacto das chamadas fake news sobre o voto e também sobre o que ela chama de “cinismo político”, alimentado pela noção que nivelou por baixo a percepção pública sobre a política e, de forma mais ampla, sobre as instituições democráticas.
Em entrevista dada ainda em 2017, Pavão alertava para os riscos da generalização negativa como fator desmobilizador – e, digo eu, mobilizador de sentimentos e orquestrações antidemocráticas. Essa generalização negativa se volta não somente contra as instituições democráticas, mas também contra a própria mídia, inclusive de modo violento, no mundo virtual e no real, com a hostilização cotidiana de repórteres na rua. Disse a professora nessa entrevista: “É um atalho cognitivo. Quando começa a achar que todo político é corrupto, em algum ponto o eleitor faz a generalização, porque, para ele[, isso] é mais fácil do que ter o trabalho de ir atrás da informação sobre cada um”[24].
Considero esse atalho nefasto para a democracia, e percebo que o atalho foi tomado por muitos justamente na camada mais privilegiada da população, exatamente aquela que tem maior acesso à informação. Uma parte dela deixou-se levar pela lógica do sectarismo e dos guetos nas redes sociais. Em muitos casos, essas mesmas pessoas demonizam e viram as costas para o jornalismo profissional, preferindo o conforto dos próprios guetos, não raramente infestados por notícias fraudulentas.
Obras como a do professor Eugênio Bucci, como seu brilhante livro Existe democracia sem verdade factual?[25], são também muito reveladoras deste momento tão desafiador para as instituições democráticas e para a mídia tradicional. No presente cenário de acentuada fragmentação, de segmentação da mídia tradicional e do surgimento das redes sociais como fontes de informação, é premente haver bases factuais comuns para que o debate prospere.
Vários fatores sociais, econômicos e tecnológicos contribuem para a existência de uma multiplicidade de bases factuais sobre os mesmos acontecimentos. A própria mídia, fustigada pela concorrência e pela perda de receita em múltiplas frentes, é levada a apostar na segmentação, a falar para seu público mais fiel. Com isso, acabam-se tornando ainda mais rígidas as posições desses públicos, que, por sua vez, vão ficando cada vez mais sectários.
4.O filisteísmo e a sociedade de massas
Na obra Entre o passado e o futuro, Arendt oferece outros elementos de fundamental importância para se entender a realidade atual: a noção de filisteísmo – “mentalidade que julgava todas as coisas em termos de utilidade imediata” e a conversão, por ele, de pretensos valores culturais em armas de ascensão social das classes médias europeias em sua luta por espaços contra a aristocracia.[26]
Em outras palavras, os objetos culturais foram de início desprezados como inúteis pelo filisteu até que o filisteu cultivado lançasse mão deles como meio circulante mediante o qual comprava uma posição mais elevada na sociedade ou adquiria um grau mais alto de autoestima – quer dizer, mais alto do que, em sua própria opinião, ele merecia, quer por natureza ou nascimento. Nesse processo os valores culturais eram tratados como outros valores quaisquer, eram aquilo que os valores sempre foram, valores de troca, e, ao passar de mão em mão, se desgastaram como moedas velhas. Eles perderam a faculdade que originariamente era peculiar a todos os objetos culturais, a faculdade de prender nossa atenção e de nos comover.[27]
Ao filisteísmo do passado, que transformava objetos culturais em simples mercadorias, Arendt agrega o efeito do apoderamento dos objetos culturais pela sociedade de massas e de consumo para satisfazer os “apetites pantagruélicos” da indústria do entretenimento[28]:
O resultado não é, decerto, a cultura de massas, que em termos estritos não existe, mas sim o entretenimento de massas, alimentando-se dos objetos culturais do mundo. Crer que tal sociedade há de se tornar mais “cultivada” com o correr do tempo e com a obra da educação constitui, penso eu, um fatal engano.[29]
No prefácio da edição brasileira da obra “Entre o Passado e o Futuro”, de Arendt, escrito em 1972, o professor Celso Lafer já alertava para as consequências danosas desse processo, que tem como elemento central o tratamento utilitário de valores humanos elaborados pela tradição:
De fato, se no século XX o filistinismo da classe média em ascensão fez da cultura um instrumento de mobilidade social – uma mercadoria social –[,] iniciando a desvalorização dos valores, a sociedade de massas contemporânea levou este processo adiante ao consumir cultura na forma de diversão. (…) O risco deste processo reside no fato de que a indústria da diversão está confrontada com apetites imensos e os processos vitais da sociedade de massas poderão vir a consumir todos os objetos culturais, deglutindo-os e destruindo-os[30].
Zygmunt Bauman cunhou o termo “modernidade líquida” para definir o contexto atual, em que a cultura, anteriormente de caráter homeostático, tranquilizante e mantenedor do status quo, hoje tem por função “não satisfazer necessidades existentes”[31], mas sim criar outras, “ao mesmo tempo que mantém as necessidades já entranhadas ou permanentemente irrealizadas”[32]. Na pós-modernidade de Bauman, “nenhuma das formas consecutivas de vida social é capaz de manter seu aspecto por muito tempo”[33] e “‘dissolver tudo que é sólido’ tem sido a característica inata e definidora da forma de vida moderna desde o princípio”[34].
Para Bauman, o momento atual supera a clássica definição de Pierre Bourdieu sobre o gosto das elites pela chamada “alta cultura”, o gosto médio ou “filisteu”, típico da classe média, e o gosto vulgar da classe baixa, na qual a cultura constituía um mecanismo tradicional de distinção de classes[35]:
A cultura hoje se assemelha a uma das seções de um mundo moldado como uma gigantesca loja de departamentos em que vivem, acima de tudo, pessoas transformadas em consumidores. Tal como nas outras seções desta megastore, as prateleiras estão lotadas de atrações trocadas todos os dias, e os balcões são enfeitados com as últimas promoções, as quais irão desaparecer tão instantaneamente quanto as novidades em processo de envelhecimento que eles anunciam. Esses produtos exibidos nas prateleiras, assim como os anúncios nos balcões, são calculados para despertar fantasias irreprimíveis, embora, por sua própria natureza, momentâneas (como disse George Steiner numa frase famosa: “Feitas para o máximo impacto e a obsolescência instantânea”).[36]
No mesmo prefácio à obra de Arendt, há quase 50 anos, o professor Lafer já propunha, no contexto da sociedade de massas, o necessário debate sobre a natureza essencialmente dialógica da política – o “pensar no plural” – e sobre questões fundamentais como a liberdade, a verdade factual e o próprio conceito de autoridade, que são elementos centrais na atual era de desinformação e de afronta às instituições que se abate sobre importantes países do mundo, aí incluído o Brasil.
Ao citar recursos de manipulação política como o de reescrever a História, já naquele momento, Lafer salientava a importância de mecanismos sociais de defesa contra essas ameaças:
Daí a importância de alguns mecanismos de defesa da verdade factual, criados pelas sociedades modernas, fora do seu sistema político, mas indispensáveis para a sua sobrevivência, como a universidade autônoma e o judiciário independente[37].
A confluência entre filisteísmo e o consumismo da sociedade de massas, aplicada ao debate público e à política, soma-se aos desafios impostos pela modernidade líquida e pelos novos paradigmas tecnológicos em matéria de informação, o que impõe às sociedades democráticas urgentes tarefas no sentido de reiterar a necessidade de respeito às leis, às regras do jogo e à autoridade das instituições que zelam por elas. Isso impõe também que essas sociedades façam uma autocrítica sobre seu papel na origem das frustrações sociais das últimas décadas, as quais têm sido apropriadas por movimentos políticos cuja retórica e prática são, na essência, antidemocráticas.
Não se trata de mera coincidência que o Judiciário, a academia e a mídia estejam entre os alvos prioritários de campanhas de intolerância e desprestígio promovidas por movimentos antidemocráticos e que sejam as vítimas preferenciais de arbitrariedades de líderes autoritários contemporâneos em suas ofensivas contra os clássicos mecanismos de freios e contrapesos dos regimes democráticos.
O Instituto de Internet da Universidade de Oxford produziu, em 2020, a atualização de um interessante trabalho de monitoramento sobre o que define como “desinformação industrializada” na rede, conduzida por atores governamentais ou privados. O emprego sistemático de tropas cyber (cyber troops) na manipulação da opinião pública por meio das mídias sociais foi detectado em 81 países em 2020, 11 a mais que os 70 países identificados no ano anterior. O estudo destaca 17 países na categoria de “alta capacidade” dessas tropas, entre os quais se mesclam, indistintamente, regimes democráticos e ditatoriais. Entre esses países, encontram-se a Arábia Saudita, a China, os Estados Unidos, a Índia, o Irã, Israel, o Reino Unido, a Rússia e a Venezuela. O Brasil encontra-se entre os 37 países considerados de “capacidade média”[38].
Myanmar, país asiático palco de golpe militar em fevereiro de 2021, encontra-se na categoria dos países de “alta capacidade”, e recente reportagem da rede de TV norte-americana CBS mostrou como as redes sociais foram usadas no esforço sistemático de perseguição e limpeza étnica da etnia rohingya, que produziu crise humanitária de grandes proporções[39].
O livro Engenheiros do caos, de Giuliano Da Empoli, oferece uma leitura reveladora sobre o uso da tecnologia e dos algoritmos como arma política pelos movimentos antissistema e de direita no mundo. Nele, Da Empoli adverte para o que chama de “era do narcisismo em massa” e para o novo paradigma da “política quântica”, em que,
para além da dimensão física, é no terreno virtual que a adesão aos movimentos nacional-populistas encontra sua realização mais completa. Lá, os algoritmos desenvolvidos e instaurados pelos engenheiros do caos dão a cada indivíduo a impressão de estar no coração de um levante histórico e de, enfim, ser ator de uma história que ele achava que estaria condenado a suportar passivamente como figurante[40].
O autor cita como “fenômeno decisivo” para os tempos atuais a produção de “um fluxo maciço de dados” sobre os comportamentos humanos, a partir de sua mensuração na internet e nas redes sociais[41]. Esse fenômeno, aplicado à política, dá ao físico estatístico expressiva vantagem comparativa sobre os tradicionais operadores políticos, por sua capacidade de lidar com grandes quantidades de dados e simulações voltadas a desenhar mensagens sob medida para cada categoria de eleitor. “Em termos políticos, a chegada do Big Data poderia ser comparada à invenção do microscópio”, argumenta[42].
Ao contrastar o que chama de “política quântica” à política “newtoniana” da democracia liberal, baseada na separação dos poderes, e em uma realidade objetiva compartilhada, Da Empoli apresenta um novo cenário no qual a empatia e o diálogo estão ausentes:
Assim, na política quântica, a versão do mundo que cada um de nós vê é literalmente invisível aos olhos de outros. O que afasta cada vez mais a possibilidade de um entendimento coletivo. Segundo a sabedoria popular, para se entender seria necessário “colocar-se no lugar do outro”, mas na realidade dos algoritmos essa operação se tornou impossível. Cada um marcha dentro de sua própria bolha, no interior da qual certas vozes se fazem ouvir mais que outras e alguns fatos existem mais do que os outros. E nós não temos nenhuma possibilidade de sair disso, e menos ainda de trocar com outra pessoa.[43]
Movimentos de inspiração autoritária e totalitária prosperaram, na primeira metade do século passado, a partir de frustrações populares e do uso de determinadas estratégias, como revelado por Hannah Arendt. A monumental obra de Arendt e de seus alunos e discípulos, como o professor Lafer, continua a servir como guia e inspiração para a solução de desafios similares com os quais se defrontam as sociedades democráticas contemporâneas. As ferramentas virtuais de disseminação, em velocidade supersônica, da desinformação, do ódio e da intolerância são o elemento novo de uma equação que, a cada ciclo histórico, tende a desafiar a convivência democrática e o respeito às instituições.
5.Liberdade de expressão não é escudo para crimes
A reação das sociedades, governos, instituições judiciais e das próprias plataformas de redes sociais ao avanço dos discursos de ódio e orquestrações antidemocráticas foi seguida de um interessante debate, no qual, não raras vezes, supostos infratores tentaram invocar a liberdade de expressão como escudo diante de acusações como as de incitação à violência, de ameaças à integridade física de pessoas e de flagrantes crimes contra a honra e contra princípios da convivência democrática consagrados, no caso brasileiro, pela Constituição de 1988.
No Brasil, a manifestação eloquente do Plenário do STF no julgamento sobre a legalidade e constitucionalidade do chamado inquérito das fake news, em junho de 2020, e decisões posteriores nessa e em outras investigações voltadas a apurar condutas criminosas contra a democracia deixam claro que as leis e a Constituição estabelecem regras e limites à liberdade de expressão.
No plano internacional, o fenômeno da desinformação, no contexto da COVID-19, em paralelo com a disputa pela Presidência dos Estados Unidos em 2020, ofereceu às chamadas “big techs” e em especial às plataformas de redes sociais a possibilidade de exercer maior controle em relação a notícias e informações fraudulentas. Cabe lembrar que essas empresas haviam praticamente renunciado a essa prerrogativa nos últimos anos, ao argumento de que funcionavam como meros canais, comparáveis às companhias telefônicas. A mudança de atitude verificou-se a partir do segundo semestre de 2020, e, pela primeira vez, levou à exclusão sistemática de mensagens inverídicas difundidas por autoridades como o então presidente e candidato à reeleição Donald Trump, tanto sobre a Covid-19 como sobre seus adversários na campanha. Esse desdobramento representou inflexão importante, com o fim de uma resistência dessas corporações em intervir na difusão de conteúdos falsos ou enganosos de natureza política em suas redes sociais.
Em resposta a abusos flagrantes do direito à livre expressão para a difusão de desinformação, as empresas suspenderam a conta do então presidente Donald Trump no Twitter e no Facebook no dia seguinte ao episódio da invasão do Congresso em 6 de janeiro de 2021. Com 88 milhões de seguidores no Twitter e 32 milhões no Facebook, Trump havia convertido as plataformas em poderosas ferramentas de comunicação política, como se evidenciou na primeira campanha presidencial, em seu mandato iniciado em 2017 e em especial na campanha pela reeleição.
Mark Zuckerberg, fundador e CEO do Facebook, buscou também antecipar-se às críticas de possível cerceamento da liberdade de expressão com o anúncio, ainda em 2019, da criação de um Comitê de Supervisão de decisões sobre conteúdos publicados no Facebook e no Instagram, com o objetivo de permitir a análise, por uma instância independente, de recursos contra decisões de controle editorial tomadas pela plataforma. “A ideia é criar uma separação de poderes”, afirmou Zuckerberg quanto ao papel do comitê como instância recursal. “Enquanto o Facebook é responsável por fazer valer suas diretrizes, não estamos na posição de tomar por conta própria decisões sobre discurso. Esse Comitê será encarregado de proteger o princípio da liberdade de expressão ao mesmo tempo que mantém nossa comunidade segura”.[44]
As primeiras cinco decisões do Comitê foram anunciadas em janeiro de 2021, quatro delas contrárias a decisões do Facebook, e uma favorável. Em sua decisão de maior repercussão até o momento, o Comitê decidiu manter a suspensão das contas de Trump no Facebook e no Instagram, em maio de 2021[45], mas recomendou que as plataformas estabelecessem um prazo para a sanção e sua posterior reavaliação, o que foi feito em junho de 2021, com o estabelecimento do prazo de dois anos de suspensão, contados a partir da decisão inicial, tomada em 7 de janeiro de 2021.[46]
Motivada pela chamada “big lie” sobre a lisura do processo eleitoral no qual Trump foi derrotado, desprovida de evidências concretas e amplamente difundida nas redes sociais de apoio a ele, a invasão do Congresso norte-americano pode ser considerada a imagem emblemática do poder destrutivo das campanhas de desinformação em massa. Uma imagem que demonstra que até mesmo uma das mais tradicionais democracias do mundo é vulnerável à manipulação e à incitação à violência por meio das redes sociais. Apesar do saldo de cinco vítimas fatais da invasão ao Congresso, de um total de mais de 600 invasores indiciados, e da inexistência de evidências que comprovassem as alegações dos derrotados, a “big lie” continua a ser alimentada nas redes, o que obrigou as plataformas a reagirem à difusão de conteúdos falsos, por meio de mecanismos de autorregulação, como os anunciados pelo Facebook e pelo Instagram.
Reportagem publicada em agosto de 2021 pela revista New Yorker com o título The big money behind the big lie[47] aponta interesses políticos e econômicos poderosos por trás da continuidade da campanha de desinformação sobre a eleição ao longo de 2021, mesmo nos meses que se seguiram ao trauma da invasão do Capitólio.
Já como resposta ao novo momento, em que surgiram críticas de indivíduos e grupos políticos afetados, que alegavam ver cerceado seu direito à liberdade de expressão, plataformas como o Facebook, o Instagram e o Twitter reiteraram que todos os usuários aderem voluntariamente a termos de uso vinculantes na relação contratual privada que formam com essas plataformas.
Além disso, no âmbito judicial, não prosperou a tese da defesa de Rudolph Giuliani, Sidney Powell e Mike Lindell, aliados de Trump processados pela empresa Dominion Voting Systems por difundir inverdades sobre suposta manipulação de votos pela empresa. Os três tentaram invocar, sem êxito, a tese de que suas afirmações eram protegidas pela liberdade de expressão, como argumento para o arquivamento do processo na Justiça Federal, em Washington D.C. No processo em tramitação, a empresa acusa os três aliados de Trump por difamação, e pleiteia de cada um deles indenização de US$ 1,3 bilhão (R$ 6,8 bilhões, no câmbio de 13/9/2021).[48]
6.Conclusão
Por mais que sejam válidas, no campo acadêmico, as teorias e discussões sobre a necessidade de novos instrumentos de análise para os fenômenos atuais, como o da desinformação em massa por meio das tecnologias digitais, vale lembrar que o atual ordenamento jurídico de países democráticos já oferece ferramentas de defesa da democracia e de de suas instituições.
Giuliano Da Empoli aponta corretamente o papel de novos atores, como os físicos e cientistas de dados, na triagem e na análise de big data em matéria de comportamento humano e de suas repercussões no processo político contemporâneo. Trata-se de um desafio e de uma mudança de eixo no debate público que requer a atenção de toda a cidadania, potencialmente afetada e prejudicada por recursos tecnológicos de manipulação de comportamentos de grande alcance e repercussão social.
O fato de que os desafios tenham novas facetas, como a “política quântica” de Da Empoli, no entanto, não deve servir como desculpa para o apaziguamento e para a inação no âmbito jurídico e institucional relativamente a autoridades públicas que, no caso brasileiro, juraram defender a Constituição de 1988. A própria Constituição e a legislação brasileira oferecem antídotos contra inimigos da democracia, sejam eles analógicos ou digitais. Cabe às instituições democráticas, nesse contexto, exercer sua autoridade, sem hesitações e com base nas regras do jogo democrático, segundo as quais a liberdade de expressão não é, e nunca foi, escudo para atitudes criminosas e para orquestrações antidemocráticas.
No Brasil, o Supremo Tribunal Federal respondeu a uma campanha de ódio e exerceu seu direito de autodefesa ao abrir o inquérito das fake news e das ameaças à Corte – ação de nossa gestão na Presidência da Corte (setembro de 2018 a setembro de 2020) que foi bastante controversa à época de sua realização mas que hoje é plenamente compreendida pelo conjunto da sociedade brasileira. O Tribunal, como deve ser quando acionado, não tem se furtado a responder às agressões à ordem democrática do País, tão arduamente conquistada.
O momento histórico requer atenção às lições de Arendt e determinação em defesa da convivência democrática e das instituições republicanas. Instrumentos legais não faltam. A inação e a nostalgia não podem ser as opções de nossos contemporâneos. Afinal, como ensina Hannah Arendt na conclusão do prefácio à primeira edição de Origens do totalitarismo, escrito em 1950, ainda sob o impacto da sombria e dolorosa primeira metade do século XX:
Já não podemos nos dar ao luxo de extrair aquilo que foi bom no passado e simplesmente chamá-lo de nossa herança, deixar de lado o mau e simplesmente considerá-lo um peso morto, que o tempo, por si mesmo, relegará ao esquecimento. A corrente subterrânea da história ocidental veio à luz e usurpou a dignidade de nossa tradição. Essa é a realidade em que vivemos. E é por isso que todos os esforços de escapar do horror do presente, refugiando-se na nostalgia por um passado ainda eventualmente intacto ou no antecipado oblívio de um futuro melhor, são vãos.[49]
A “corrente subterrânea da história ocidental”, citada por Arendt, trouxe de volta, na virada do milênio e com novas embalagens, discursos de ódio e de intolerância, e tentações autoritárias que já causaram profundos danos, antes de sucumbirem. A defesa das instituições democráticas contra os “engenheiros do caos” apontados por Da Empoli e os perigos da manipulação da “política quântica” requer inteligência, perspectiva histórica, atenção à realidade doméstica e internacional, lucidez, autocrítica, diálogo permanente e ação coordenada daqueles que têm responsabilidade institucional e compromisso com as regras da convivência em democracia e em paz.
Trata-se de uma tarefa necessariamente coletiva, em defesa do Brasil legado pela Constituição de 1988, que, em democracia, vem superando e resolvendo, nas últimas décadas, vários de seus desafios em matéria de estabilidade política e econômica e de desenvolvimento social. Os milhões de pessoas ainda excluídas dos benefícios do desenvolvimento contam com essa estabilidade, a ser defendida todos os dias pelas instituições, a fim de dar concretude ao propósito de proporcinonar uma vida melhor às pessoas em uma sociedade livre, justa e solidária, conforme preconiza o artigo 3º da Constituição da República.
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[1] LAFER, Celso. Hannah Arendt: Pensamento, Persuasão e Poder. 3 ed. revista e ampliada. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018.
[2] LAFER, Celso. Da dignidade da política: sobre Hannah Arendt (Prefácio). In ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 8 ed. São Paulo: Perspectiva, 2016 (edição digital), p. 19.
[3] GOFFMAN, Erving. Frame analysis – an essay on the organization of experience. New York: Harper & Row, 1974.
[4] CASTELLS, Manuel e CARDOSO, Gustavo (Org.). A sociedade em rede: do conhecimento à acção política. Debates–Presidência da República. Lisboa: Imprensa Nacional, 2005 (edição digital). p. 17-30.
[5] Ibidem, p. 18.
[6] KAKUTANI, Michiko. A morte da verdade: notas sobre a mentira na era Trump. Trad. André Czarnobai e Marcela Duarte. 1. ed. Rio de Janeiro: Intrínseca, 2018 (edição digital). p. 85.
[7] CASTELLS, Manuel. La era de la información.. Alianza Editorial, Madri, 1996. v. 1 (La sociedad red).
[8] Para comunicado sobre prêmio, v. The Pullitzer Prizes. Darnella Frazier. Winners in Special Citations and Awards. Disponível em: https://www.pulitzer.org/winners/darnella-frazier. Acesso em 13/9/2021.
[9] HAN, Byung-Chul. No Enxame: Perspectivas do Digital. Trad. Lucas Machado. Petrópolis: Vozes, 2018 (edição digital), p. 14. Nota do tradutor define “shitstorm” como “tempestade de indignação”, e associa o termo a campanhas difamatórias de grandes proporções na internet.
[10] Ibidem, p. 10.
[11] LESSIG, Lawrence. They don’t represent us – reclaiming our democracy. Dey Street Books, Nova York. 2019 (edição digital). p. 84-93.
[12] TESICH, Steve. A Government of Lies. The Nation, Nova York, January 6-13, 1992. Disponível em: https://www.thefreelibrary.com/A+government+of+lies.-a011665982. Acesso em 6/9/2021. No artigo, Tesich argumenta, com base na análise de mentiras contadas pelo Governo norte-americano e aceitas pela sociedade nos episódios Irã-Contras e na primeira guerra contra o Iraque, que (em tradução livre) “estamos rapidamente nos transformando em protótipos de um povo com o qual monstros totalitários babariam em seus sonhos (…) de modo fundamental, nós, como pessoas livres, livremente decidimos que queremos viver em um mundo da pós-verdade”.
[13] Oxford Languages. Word of the Year 2016. Disponível em: https://languages.oup.com/word-of-the-year/2016/. Acesso em 9/9/2021.
[14] Collins 2017. Word of the Year Shortlist. Disponível em: https://blog.collinsdictionary.com/language-lovers/collins-2017-word-of-the-year-shortlist/. Acesso em 22/9/2021.
[15] Tradução livre. (“The moment we no longer have a free press, anything can happen. What makes it possible for a totalitarian or any other dictatorship to rule is that people are not informed; how can you have an opinion if you are not informed? If everybody always lies to you, the consequence is not that you believe the lies, but rather that nobody believes anything any longer. (…) And a people that no longer can believe anything cannot make up its mind. It is deprived not only of its capacity to act but of its capacity to think and to judge. And with such a people you can then do what you please”). Trecho excluído da versão editada da entrevista a Roger Errera foi resgatado e publicado em 1978 pela revista New York Review of Books. Hannah Arendt: From an Interview. The New York Review of Books, Nova York, edição de 26/10/1978. Disponível em: https://www.nybooks.com/articles/1978/10/26/hannah-arendt-from-an-interview/. Acesso em 11/9/2021.
[16] ARENDT, Hannah. The Last Interview and other conversations. Nova York: Melville House, 2013 (edição digital). p. 90-110. Vídeo da entrevista editada, Hannah Arendt – Interview with french writer Roger Errera (Office de Radidiffucion – Télévision Française, 1974) disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=5oRpb8fo7jU. Acesso em 6/9/2021.
[17] ARENDT, Hannah. Origens do Totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 (edição digital). p. 331-332.
[18] Ibidem, p. 330-331.
[19] Ibidem, p. 332.
[20] Tradução livre. (“He said: you know why I do it? I do it to discredit you all, to demean you all, so when you write negative stories about me no one will believe you”). Deadline Club Awards 2018 Dinner Conversation with Judy Woodruff and Lesley Stahl. Disponível em (de 22min00 a 22min10s): https://www.youtube.com/watch?v=nq6Tt–uAfs&t=1269s. Acesso em 13/9/2021.
[21] Para vídeo e transcrição da entrevista, v. The 60 Minutes interview that President Trump cut short. Disponível em: https://www.cbsnews.com/news/president-trump-60-minutes-interview-lesley-stahl/. Acesso em 13/9/2021.
[22] FALLOWS, James. Detonando a Notícia – Como a Mídia Corrói a Democracia Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997. p. 14.
[23] FALLOWS, James. Detonando a Notícia – Como a Mídia Corrói a Democracia Americana. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1997, pp. 14-15.
[24] MAIA, Gustavo. Onda de corrupção gera “cinismo” e desmobiliza eleitores, diz pesquisadora. UOL, São Paulo, 21/4/2017. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/politica/ultimas-noticias/2017/04/21/onda-de-corrupcao-gera-cinismo-politico-e-desmobiliza-eleitores-diz-pesquisadora.htm. Acesso em: 26/8/2021.
[25] BUCCI, Eugênio. Existe democracia sem verdade factual? Estação das letras e cores: Barueri. 2019.
[26] ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016 (edição digital). p. 165.
[27] ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016 (edição digital). p. 167.
[28] Ibidem, p. 169.
[29] Ibidem, p. 172.
[30] LAFER, Celso. Da dignidade da política: sobre Hannah Arendt (Prefácio). In ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016 (edição digital), p. 11.
[31] BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013 (edição digital). p. 15.
[32] BAUMAN, Zygmunt. A cultura no mundo líquido moderno. Rio de Janeiro: Zahar, 2013 (edição digital), p. 15.
[33] Ibidem, p. 11.
[34] Ibidem, p. 11.
[35] Ibidem, p. 6.
[36] Ibidem, p. 15.
[37] LAFER, Celso. Da dignidade da política: sobre Hannah Arendt (Prefácio). In ARENDT, Hannah. Entre o Passado e o Futuro. Trad. Mauro W. Barbosa. 8. ed. São Paulo: Perspectiva, 2016 (edição digital). p. 16.
[38] BRADSHAW, Samantha; BAILEY, Hannah; HOWARD, Philip. Industrialized Disinformation. 2020 Global Inventory of Organized Social Media Manipulation. Levantamento completo disponível em https://demtech.oii.ox.ac.uk/wp-content/uploads/sites/127/2021/02/CyberTroop-Report20-Draft9.pdf. Acesso em 18/3/2021.
[39] Weaponizing Social Media: The Rohingya Crisis. Reportagem em vídeo da CBS News disponível em https://www.cbsnews.com/video/weaponizing-social-media-the-rohingya-crisis/. Acesso em 28/2/2021.
[40] EMPOLI, Giuliano Da. Os Engenheiros do Caos. Trad. Arnaldo Bloch. 1ª ed. São Paulo: Vestígio, 2019 (edição digital), pp. 122-123.
[41] Ibidem, p. 104.
[42] Ibidem, p. 110.
[43]EMPOLI, Giuliano Da. Os engenheiros do caos. Trad. Arnaldo Bloch. 1. ed. São Paulo: Vestígio, 2019 (edição digital). p. 127.
[44] Declaração disponível em https://www.facebook.com/journalismproject/facebook-oversight-board-for-content-decisions-overview. Acesso em 15/3/2021.
[45] CLEGG, Nick. Oversight Board Upholds Facebook’s Decision to Suspend Donald Trump’s Accounts. Comunicado do Facebook, 5/5/2021. Disponível em: https://about.fb.com/news/2021/05/facebook-oversight-board-decision-trump/. Acesso em 18/8/2021.
[46] CLEGG, Nick. In response to Oversight Board, Trump Suspended for Two Years; Will Only Be Reinstated if Conditions Permit. Comunicado do Facebook, 4/6/2021. Disponível em: https://about.fb.com/news/2021/06/facebook-response-to-oversight-board-recommendations-trump/. Acesso em 18/8/2021.
[47] MAYER, Jane. The big Money behind the big lie. New Yorker, Nova York, edição impressa de 9/8/2021. Disponível em: https://www.newyorker.com/magazine/2021/08/09/the-big-money-behind-the-big-lie. Acesso em 15/8/2021.
[48] KRUZEL, John. Judge: Dominion suits against Trump allies can proceed. The Hill, Washington D.C., 11/8/2021. Disponível em: https://thehill.com/regulation/court-battles/567468-judge-denies-trump-ally-sidney-powells-request-to-dismiss-dominion. Acesso em 13/9/2021.
[49] ARENDT, Hannah. Origens do totalitarismo. Trad. Roberto Raposo. São Paulo: Companhia das Letras, 2013 (edição digital). p. 7.
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