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Juiz das garantias: PGR prefere o conveniente e perde o trem!

Juiz das garantias: PGR prefere o conveniente e perde o trem!

Todos sabemos que o Instituto de Garantias Penais ingressou com Habeas Corpus Coletivo contra decisão do ministro Luiz Fux que suspendeu a validade da Lei do Juiz de Garantias (ADI’s 6.298, 6.299, 6.300 e 6.305). Ou seja, com a decisão do ministro, milhares de presos foram (são) prejudicados pela não aplicação das garantias previstas na Lei.

Na verdade, o ponto central é que o ministro concedeu a liminar suspendendo a validade de vários dispositivos da nova Lei (JG) e não levou ao plenário como determina o art. 10 da Lei 9.868. Amanhã (22/1/2021) completará um ano da decisão. Isto é, doze meses de vigência de um despacho — proferido por um único ministro do STF — que suspende a eficácia de partes de uma lei produzida de forma legítima pelo Poder Legislativo.

Esse era o busílis. A Procuradoria Geral da República emitiu parecer (aquipelo não conhecimento. Sim, preferiu o atalho. Não quis discutir o próprio ato do ministro que deixa de levar, há um ano, uma decisão sua ao Plenário, senão justificou a inércia argumentando que a complexidade e a relevância social do tema reclamam um tempo mais longo de análise e, na hipótese das ADIs, tal período se encontra dentro da normalidade. O que é isto — a normalidade? Uma decisão monocrática que dura um ano e que tirou a validade de uma lei que trata de garantias é considerada normal pelo fiscal da lei? São Valadão, rogai por nossas garantias.

Diz o vice-procurador Geral signatário do parecer que o uso de Habeas Corpus como instrumento substitutivo da ação direta de constitucionalidade, objetivando o reconhecimento, em abstrato, da validade de dispositivos legais já sujeitos à jurisdição constitucional, é um indevido atalho processual, instaurado com o propósito de subtrair do ministro relator os poderes que lhe são legal e regimentalmente atribuídos. Foi além e citou dispositivo legal (art. 654, CPP) para colocar em dúvida a própria admissibilidade do HC coletivo, a despeito de reconhecer, ao depois, a possibilidade de impetração nos moldes decididos pelo STF no HC 143.641.

Apesar do apreço pelo atendimento aos aspectos instrumentais — como o não cabimento do HC na hipótese e a dúvida posta em relação ao HC coletivo —, a PGR deixou de se manifestar sobre o busílis do writ: a longa demora na análise da decisão do ministro Fux à ilharga do que determina a Lei n.º 9.868. O parecer é, em si, contraditório.

Há muito tenho dito que, aparentemente, hoje temos em terrae brasilis apenas dois tipos de juristas: o positivista exegético (espécie de textualista tardio que trabalha “conceitos sem coisas”) e o realista pragmático, para quem as decisões judiciais são simplesmente questões de poder. Por isso, o Direito é o que os tribunais dizem que é. O parecer da PGR é sintomático. Faz um mix. De um lado, impõem-se barreiras para conhecimento do HC e da própria legitimidade do HC coletivo (pela ausência de previsão legal) e, de outro, ignora-se os limites do texto (como se textos nada valessem) e endossa-se o discurso de um despacho monocrático. O fundamento é, pois, por conveniência, terceira via entre exegetismo e realismo.

Mas a PGR foi além, porque, além de se posicionar de forma contrária ao reconhecimento de HC nessas hipóteses, já aproveitou para também questionar a constitucionalidade de alguns dispositivos da Lei 13.964/2019, o “pacote anticrime”. Algo como “uma antecipação monocrática de sentido por parte da PGR”.

Um dos artigos questionados pela PGR é o artigo 3º-B, e seus incisos IV, VIII, IX e X, do CPP. As normas determinam que é responsabilidade do juiz das garantias o controle da legalidade da investigação criminal e será ele que definirá se uma investigação será prorrogada ou determinar o trancamento de inquérito. Para a PGR, esses dispositivos atribuem ao juiz das garantias funções exclusivas do Ministério Público.

Parece-nos que o objetivo é assegurar uma ampla discricionariedade ao membro ministerial, tal como existe hoje em países com tradição common law e que, naquela realidade, é — essa ampla liberdade na marcha da persecução — objeto de críticas1.

Interessante é que, ao que se vê, não há doutrina brasileira sobre o assunto. Explico. As centenas de artigos e dezenas de livros escritos defendendo a nova Lei e o instituto do Juiz das Garantias não existem para a PGR. A biblioteca da PGR é seletiva.

Na verdade, isso mostra um pouco a crise da dogmática jurídica brasileira. O órgão máximo do Ministério Público, para contestar garantias, usa, em grande extensão e com protagonismo, doutrina estrangeira. Cita vários autores. O que eles têm a ver com a nova lei brasileira, sabe-se lá. Pode até ter ficado bonito o texto. Mas, em termos epistemológicos, deixa muito a desejar.

Na verdade, apenas um livro brasileiro é citado, o capitaneado por Ingo Sarlet, Marinoni e Mitidiero. Uma frase é citada, a de que “o direito ao sigilo de dados (como os fiscais e bancários) consiste em verdadeiro direito fundamental”. Todos concordarmos com isso, pois não?

Pronto. Quem quiser ler o parecer da PGR, acima está o link. Do cerne da controvérsia e sobre os prejuízos a milhares de pessoas, nenhuma linha.

E assim a nave vai. Ou não vai. A PGR perde a oportunidade de fazer história, de influir decisivamente nessa discussão das garantias processuais penais. Prefere dizer platitudes e opinar pelo não conhecimento.


1 Leia-se, a propósito: RAKOFF, Jed S. Why innocent people plead guilty. The New York Review of Books, nov/14. Disponível em: https://www.nybooks.com/articles/2014/11/20/why-innocent-people-plead-guilty/; Acesso em: 10.08.2020.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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