Advogada da periferia de São Paulo foi citada em voto da ministra Rosa Weber
Perfilados como um time de futebol, 12 advogados togados sorriem para as câmeras antes do início do julgamento no Supremo Tribunal Federal sobre a prisão em segunda instância, no último dia 17 de outubro.
No meio da foto, um passo à frente dos colegas, a figura diminuta de Silvia Souza, 35, chama a atenção. É a única mulher, e a única negra no grupo, que reunia celebridades do mundo jurídico como o ex-ministro José Eduardo Cardozo e os advogados Lênio Streck e Antônio Carlos de Almeida Castro, o Kakay.
“A minha presença no tribunal foi uma quebra de paradigma de alguma forma, uma quebra da hegemonia masculina branca”, diz Souza.
Advogada da ONG Conectas, de direitos humanos, ela e seus colegas estavam ali representando entidades que eram amicus curiae no julgamento, ou seja, dando sustentação à visão de que o início do cumprimento da pena só pode ocorrer após o trânsito em julgado, previsto na Constituição.
Foram sete minutos em que expôs aos ministros do STF que o assunto não interessa apenas a presos VIP da Lava Jato, como o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), mas a uma massa de detentos invisíveis.
“Há uma deturpação do senso comum, de que essa decisão só afetaria crimes de colarinho branco. Se a gente for analisar qual o índice de presos por esses crimes, é bem menor do que, por exemplo, por tráfico de drogas”, afirma.
Ela cita dados do sistema penitenciário de 2017, de que 64% dos presos são pretos ou pardos, para reforçar o argumento de que mudanças na legislação penal impactam primeiro esse universo. Na população geral, os negros são 53%.
Silvia teve pouco tempo para se preparar. Ficou sabendo que iria fazer a sustentação na véspera do julgamento, ao receber um telefonema da ONG a que é ligada enquanto estava jantando. De imediato, começou a se preparar e a reunir memoriais para embasar sua fala.
“Não deu tempo de ficar nervosa”, brinca. Naquela noite, dormiu seis horas. Não era um julgamento qualquer, e ela nunca havia feito uma sustentação no STF. Advocacia criminal tampouco é sua área de especialidade, já que, ao se formar, dedicou-se primeiro à área trabalhista e, mais recentemente, migrou para a prática de advocacy.
Seu dia a dia consiste em acompanhar junto ao Congresso Nacional temas de interesse da Conectas, como direitos humanos, refugiados e enfrentamento da violência. Está sempre na ponte aérea entre São Paulo, onde vive, e Brasília.
Foi a última advogada a chegar à corte, às 13h15, pois gastou até o último minuto possível preparando-se no hotel. Falou de improviso.
“Quando a gente sobe na tribuna, não dá para ficar lendo. É a oportunidade de chamar a atenção dos ministros para o que você está defendendo. É um momento tenso, a maior corte do país”, afirma.
A sensação de ter passado no teste completou-se uma semana depois, no dia 24, quando ela começou a receber mensagens sem parar em seu celular, no caminho para o aeroporto de Brasília. A ministra Rosa Weber, voto considerado decisivo para o caso, havia citado a sustentação da advogada em sua decisão. “Foi muito gratificante, muito emocionante. Fiquei lisonjeada.”
Nascida em Carapicuíba, na Grande São Paulo, cresceu na Vila Santa Rita, bairro de Itapevi, também na região metropolitana da capital, e viveu todas carências comuns às periferias. Quando chovia, o ônibus que a levava ao centro para estudar em escola pública não vinha, e o jeito era andar.
Foi a primeira a cursar uma universidade em sua família, formada pela mãe, empregada doméstica, o pai, marceneiro (separados), e dois irmãos. Com bolsa integral do Prouni, entrou no curso de direito da Unip em 2011 e formou-se em 2016. Atualmente, faz pós-graduação na Universidade Federal do ABC.
Começou a trabalhar como assistente jurídica num escritório de advocacia, e foi quando teve uma experiência que ela classifica como definidora para que entrasse de cabeça na militância negra.
Inscreveu-se em uma seleção interna para uma vaga de advogada júnior. O processo era longo, com provas envolvendo questões de múltipla escolha e dissertativas, além da redação de uma petição.
“Quando me deram o resultado, eu fui muito bem. Mas minha chefe na época me disse: ‘Olha, não vai dar para te contratar, porque é uma questão de perfil'”, afirmou.
Ela entendeu o que aquilo significava, mas diz que não teve forças para contestar o ato de racismo. “Eu me senti impotente. Minha decisão foi sair do escritório”. A partir daí, engajou-se em movimentos como a Educafro, ONG que defende a inserção de negros em universidades.
O racismo de hoje, diz ela, é algo que se manifesta de maneira menos explícita, mas ainda muito presente.
“Hoje em dia é muito mais difícil alguém falar para mim: sai daqui, sua macaca. O tratamento é tentar inferiorizar e rejeitar a minha presença em alguns lugares, contestar o que eu estou falando, duvidar se eu estou representando uma organização”, afirma.
A defesa da prisão após o trânsito em julgado, segundo ela, é fundamental para proteger a população mais pobre de abusos do Estado. “O princípio da inocência para a população mais pobre é vulnerabilizado desde a abordagem policial. O preto já é lido como um criminoso em potencial”, afirma.
Juridicamente, diz ela, não há discussão sobre o que diz a Constituição. O princípio da inocência é uma cláusula pétrea e, portanto, imutável da Carta.
Questionada se foi picada pela mosca azul com a experiência e se gostaria de ser mais uma advogada milionária como grande parte do time que ali estava, Silvia ri e responde de forma firme. “Não”.
“O direito para mim foi como um encantamento, pelo poder de saber quais direitos eu tinha. Para mim, o direito é uma arma, uma ferramenta de luta nas causas sociais”, afirma.
Ela diz desejar que o episódio ajude a pavimentar a presença de mais pessoas com seu perfil no Supremo futuramente.
“Espero que seja um start, que mostre que existem muitos profissionais, negros e negras, com capacidade de estar ali fazendo uma sustentação num caso tão importante.”
Reportagem publicada originalmente na Folha de S.Paulo.
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