Por Juca Ferreira
Estado opta pelo uso da força e da letalidade em vez de incluir população de periferias e favelas
A violência do Estado transformou bairros pobres das cidades brasileiras em zonas de guerra, em que os direitos da população são sistematicamente desrespeitados pelas polícias, sustenta ex-ministro da Cultura. Qualquer estratégia de construção de uma democracia séria no país terá que pôr fim ao extermínio em curso de negros e pobres, cuja vida é infernizada por traficantes, milícias e as próprias forças policiais.
“Tenho tão nítido o Brasil que pode ser, e há de ser, que me dói o Brasil que é.”
Resovi abandonar o que já havia escrito. Preferi rever o texto e transformar a minha indignação em uma proposta política para o novo ciclo democrático que viveremos em breve.
Diante dos assassinatos praticados no Brasil pelas forças policiais, em nome da sociedade, da ordem e do combate às drogras, não basta ficar indignado e postar algo na internet condenando esses crimes.
A sociedade brasileira, ou melhor, a parcela da sociedade que é respeitada pelas forças policiais, os que moram nos bairros onde as balas não se perdem, não pode continuar indiferente, encarando essas mortes por balas perdidas como fatos naturais e distantes, como se estivessem acontecendo em outro país.
Essas balas perdidas quase sempre saem das armas da polícia em operação nos bairros onde moram os trabalhadores pobres, nas periferias e favelas das grandes cidades brasileiras. O comportamento das forças policiais nos bairros de classe média ou alta sempre é totalmente diferente.
A insegurança nos territórios onde os pobres moram é enorme, e a polícia é parte do problema.
Traficantes, milícias e a polícia concorrem na infernização da vida desses brasileiros e brasileiras. Quase todos os dias, em praticamente todo o Brasil, pessoas são mortas ou feridas gravemente por essas balas perdidas, atiradas ao vento. Faz parte do cotidiano dos moradores dessas comunidades. Já são 595 o número de mortos em 2021, só no Rio de Janeiro, vítimas dessas operações policiais.
Muitas dessas vítimas são mortas dentro de casa. Quando não é a polícia, é a bala que invade esses lares, atravessando as paredes. Crianças são alvejadas por balas perdidas dentro da sala de aula, em casa, tomando o café da manhã, na pracinha, se preparando para ir para a escola.
A quase totalidade dessas vítimas são negras. Segundo registros, 79% das vítimas são negros e negras.
Pela escala e constância em todo o território brasileiro e pela resiliência capaz de sobreviver a períodos democráticos ou abertamente ditatoriais, esse padrão das forças policiais não pode ser considerado como uma simples arbitrariedade circunstancial ou um erro dos que estão no comando dessas operações.
Uma democracia minimamente legítima não pode se permitir conviver com essa gigantesca barbárie, com essa prática criminosa e esse genocídio. Esses crimes contaminam e produzem uma metástase em todo o corpo social.
Estamos vivendo, neste momento, um agravamento desse desencontro das polícias com a democracia, por meio da preparação e arregimentação dessas forças policiais para uma quebra do que sobra da ordem democrática em nosso país. Já é bastante visível a autonomia das polícias em relação aos governadores, aos quais, por força da lei, essas forças policiais devem obediência.
Esse comportamento nada civilizado das polícias quando estão nas periferias urbanas e favelas é, na verdade, uma estratégia de controle social, uma opção pela guerra contra uma parte da população, em lugar de incluí-la socialmente em condições de igualdade.
São crimes praticados pelo Estado em nome da sociedade. O caráter militar da polícia, por si só, já define a guerra como método na relação com essas comunidades.
Essa guerra contra uma parte da sociedade é produto da desigualdade social, uma ação preventiva vista como necessária pelas elites econômicas e políticas para manter e impor a ordem vigente com suas injustiças e ilegitimidades.
É muito claro o significado dessa opção do Estado brasileiro pela violência como linguagem e o uso da força e da letalidade, no lugar da inclusão dessas populações na vida econômica, social e política. O antipetismo e a rejeição a Lula é uma manifestação dessa interdição a qualquer tentativa de substituir a desigualdade e a violência por construção de igualdade, inclusão e participação.
A constância da violência do Estado contra essas populações deixa claro que não existe por parte das nossas classes dirigentes a intenção de incluir econômica e socialmente essa parcela da população brasileira.
Qualquer estratégia minimamente séria para construir uma democracia entre nós terá que enfrentar e pôr fim a esse extermínio de negros pobres, trabalhadores que moram nesses bairros onde a lei e a ordem é ditada pelo tráfico, pelas milícias e onde a polícia legitima, amplia e consolida com suas ações violentas o padrão imposto pelas organizações criminosas nesses territórios.
A violência do Estado transformou esses territórios em zonas de guerra, onde paz, direitos, cidadania, civilidade e respeito dos direitos mais básicos, como o direito à vida, e elementares, como a inviolabilidade do lar, estão banidos.
Essa prática genocida tem origem na abolição incompleta da escravidão, sem incorporar para valer, com direitos e oportunidades iguais, os africanos e seus descendentes até então escravizados. As primeiras favelas surgiram com a expulsão dos trabalhadores escravizados das fazendas e das casas dos senhores com a abolição da escravidão. Essas pessoas ficaram sem lenço, sem documento e sem ter para onde ir.
Para pôr fim a essa guerra e conquistar os direitos garantidos aos demais cidadãos e cidadãs, vai ter que ser uma conquista, vai ser necessário o surgimento de um poderoso e amplo movimento antirracista, democrático e socialmente includente para dar voz aos trabalhadores pobres.
Só uma grande movimentação social em toda a sociedade será capaz de pôr fim a esse cotidiano dantesco e a naturalização e a invisibilização dessa barbárie e dos muitos crimes contra essas comunidades. Esse movimento terá que ser capaz de sensibilizar toda a sociedade, incluindo as camadas médias e os meios de comunicação, para que se posicionem favoráveis a esse processo de democratização da sociedade brasileira.
Vai ser preciso que o Estado democrático implemente uma política de distribuição de renda para aumentar o acesso desses cidadãos e cidadãs a bens, serviços e direitos e, ao mesmo tempo, desenvolver um processo político para qualificar as relações sociais.
Isso significa diálogo de igual para igual, dignidade e respeito para todos. Uma outra cultura política. Caberá ao processo político reconhecer e universalizar os direitos em todas as suas dimensões e setores da sociedade, em todo o território nacional e transformar o país em um ambiente de oportunidades e direitos iguais para todos.
O Brasil precisa levar a sério o princípio da democracia como uma sociedade de iguais e romper com toda a herança da escravidão, inclusive com a natureza do Estado brasileiro, herdada da escravidão.
Para fortalecer esse processo democratizante, vai ser preciso abrir para todos os brasileiros e brasileiras, como fizemos com as universidades nos governos Lula e Dilma, os espaços sociais que hoje significam privilégios de alguns.
Será um momento muito oportuno para desenvolvermos um urbanismo capaz de regenerar e qualificar as periferias e integrar em outras bases esses territórios à dinâmica das nossas cidades.
Para tornar irreversível esse processo, para o Brasil virar essa página, vamos ter que executar uma ação intensa para levar políticas sociais e serviços para esses territórios, para assim possibilitar o desenvolvimento social desses trabalhadores e suas famílias.
Se não formos capazes de nos comprometermos com essa meta civilizatória e nos diferenciarmos profundamente das forças políticas conservadoras e socialmente reacionárias, não conseguiremos dar estabilidade e perenidade a uma democracia no Brasil e seremos vistos, pelo povo pobre e excluído, como parte do lado opressor e privilegiado.
O descrédito e um certo cansaço da sociedade em relação à democracia e a redução das expectativas na política só serão revertidos com o enfrentamento dessa ferida aberta, para podermos caminhar no futuro próximo em direção a uma sociedade civilizada, de iguais.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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