Por Sergio Graziano e Eduardo Baldissera Carvalho Salles
Decreto atinge principalmente os CACs (caçadores, atiradores e colecionadores), que possuem 60 dias para recadastrar as suas armas no Sinarm. A cassação da posse e do porte de arma por seu proprietário responder a inquérito policial, queixa ou ação penal pela prática de qualquer crime doloso parece ofender aos princípios da proporcionalidade e da presunção de inocência
Um dos primeiros atos de governo, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidiu modificar a política de armas promovida pelo governo anterior, limitando a aquisição, posse e porte de armas de fogo. Entretanto, até o momento não houve alteração significativa no cenário existente, apenas relativo congelamento dos quantitativos de armas de fogo em circulação no país.
Importante neste momento já antecipar: certamente será mais uma fake news dizer que desarmar a população é dar segurança aos bandidos. O debate é muito mais rico e complexo. O novo decreto traz inúmeras modificações técnicas, as quais, de forma resumida traremos a seguir, mas, fundamentalmente é preciso dizer que estas alterações apresentam (ou reapresentam) uma nova política pública de segurança.
É muito significativo divulgar algumas conclusões do estudo feito pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública[1] sobre a relação causal entre armas e crimes, as quais revelam a falácia de que uma população armada aumenta a segurança privada. Conforme o referido estudo a cada 1% a mais na difusão de armas há aumento de 1,1% na taxa de homicídio, isto é, o aumento da difusão das armas terminou por impedir, ou frear uma queda ainda maior das mortes. Outra conclusão interessante do estudo é que não há relação estatisticamente significativa entre a disponibilidade de armas e diminuição dos crimes contra a propriedade, o que evidencia outra falácia do argumento armamentista, segundo a qual a difusão de armas faz diminuir o crime contra a propriedade.
Cabe, por fim, lembrar a conclusão do estudo realizado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública, o qual refuta o argumento de que mais armas de fogo nas mãos de particulares contribuem à redução dos homicídios no Brasil, isto porque a redução da quantidade de mortes violentas intencionais seria conseqüência inexorável da política armamentista produzida a partir de 2019. Na verdade, além de fragilizar os mecanismos estabelecidos pela lei 10.826/03, a ampliação da quantidade de armas impediu uma queda ainda maior da letalidade violenta no Brasil. Esta é a realidade! Isto posto, vejamos o que muda a partir da nova legislação sobre armas no Brasil.
O Decreto n. 11.366/23, de 1º de janeiro de 2023, determina, entre outros pontos: (i) a suspensão dos registros para a aquisição e transferência de armas e de munições de uso restrito por caçadores, colecionadores, atiradores e particulares; (ii) a restrição dos quantitativos de aquisição de armas e de munições de uso permitido; (iii) a suspensão da concessão de novos registros de clubes e de escolas de tiro; e (iv) a suspensão da concessão de novos registros de colecionadores, de atiradores e de caçadores.
Os CACs (caçadores, atiradores e colecionadores) são os principais atingidos. Durante o governo Bolsonaro eles podiam ter até 60 armas, sendo 30 de uso restrito e 30 de uso permitido (art. 3º do Decreto n. 9.846/2019). Também era possível adquirir anualmente até 1.000 munições para cada arma de uso restrito e 5.000 munições para cada arma de uso permitido, totalizando até 180.000 mil munições para cada caçador ou atirador (art. 4º, § 1º, do Decreto n. 9.846/2019).
Com a nova regulamentação, fica suspensa a compra de armas de fogo e munições de uso restrito (art. 3º, caput, e § 3º) e a aquisição de insumos para recarga de munições por pessoas físicas (art. 28). Ainda é possível adquirir armas de fogo de uso permitido, mas a quantidade baixou de 30 para 3 (art. 4º). No que se refere aos caçadores e atiradores a compra de munições passou a ser limitada a 600 unidades de munição por ano para cada arma registrada (art. 16, § 1º) e a 50 unidades para outras categorias de pessoas (art. 12).
Todas as armas adquiridas a partir de maio de 2019, durante o governo Bolsonaro, deverão ser recadastradas no prazo de 60 dias no SINARM (Sistema Nacional de Armas) da Polícia Federal (art. 2º). Atualmente as armas de fogo possuídas pelos CACs eram registradas no SIGMA (Sistema de Gerenciamento Militar de Armas), mantido pelo Exército (art. 1º, § 1º, do Decreto n. 9.846/2019). Essa nova determinação apenas exclui as armas de fogo das Forças Armadas e Auxiliares (art. 2º, parágrafo único, da Lei nº 10.826/2003).
Quem não recadastrar as suas armas no prazo estipulado pelo novo regulamento poderá incorrer no crime de posse irregular de arma de fogo de uso permitido (artigo 12 da Lei 10.826/03), cuja pena é de 1 a 3 anos de reclusão. Em se tratando de arma de uso restrito a conduta pode ser tipificada no crime do artigo 16, cuja pena vai de 3 a 6 anos.
Não é mais permitido aos CACs transportar armas municiadas, mesmo no denominado “porte de trânsito” para se dirigir ao clube de tiro (art. 14). O porte havia sido autorizado pelo governo Bolsonaro para defesa do acervo no trajeto entre o local de guarda e o local de prática (art. 8º, § 1º, do Decreto n. 9.846/2019). Agora, a arma deve ser transportada com munição acondicionada em recipiente próprio e separado das armas.
A norma também volta com a exigência de comprovação da efetiva necessidade para autorização de posse de arma de fogo (art. 5º, I). Antes, exigia-se apenas que o interessado declarasse (art. 3º, I, do Decreto n. 9.845/2019). Pelo novo texto, o certificado de registro da arma deve ser renovado a cada 5 anos (art. 5º, § 8º). Na regra anterior esse prazo era de 10 anos (art. 3º, § 10º, do Decreto n. 9.845/2019). Se o proprietário não cumprir algum dos requisitos, deverá entregar a arma de fogo à Polícia Federal ou então transferir para terceiro.
Os CACs podem continuar frequentando os clubes de tiro normalmente. Entretanto, essa atividade passou a ser exclusiva das pessoas já registradas. Aqueles que não possuem registro como caçadores, atiradores ou colecionadores estão proibidos da prática de tiro recreativo em clubes, escolas de tiro e entidades similares (art. 13, parágrafo único).
Nas disposições finais e transitórias, o novo Decreto determina que “serão cassadas as autorizações de posse e de porte de arma de fogo do titular que responda a inquérito policial ou a ação penal por crime doloso” (art. 27). Inexiste ressalva: basta ser crime doloso para perder o direito à arma de fogo. O proprietário deverá entregar a arma mediante indenização ou providenciar a sua transferência para terceiro, no prazo de trinta dias, contado da data de ciência do indiciamento ou do recebimento da denúncia ou queixa pelo juiz (art. 27, § 1º).
Embora o art. 27, § 5º, trate especificadamente dos casos de ação penal ou inquérito envolvendo violência doméstica e familiar contra a mulher, a disposição parece ser desnecessária, afinal, o caput tem uma redação bastante ampla, impondo a suspensão da autorização e apreensão da arma de fogo em todas as hipóteses de crimes dolosos.
Apesar da boa intenção, da forma como redigida essa disposição parece desrespeitar a presunção de inocência, porque impõe a restrição a posse e porte de arma de fogo sem que haja convicção de culpa. Também parece ser desproporcional que o indiciamento ou o recebimento de denúncia ou queixa seja suficiente para automaticamente cassar a autorização de posse ou de porte de arma de fogo. Ao permitir essa espécie de medida cautelar genérica, abre-se a possibilidade de que qualquer policial ou magistrado, que possuem direito legal ao porte, tenham esse direito suspenso apenas porque respondem a um inquérito ou processo criminal, inclusive aqueles de menor potencial ofensivo como os crimes contra a honra.
Para melhor atingimento da finalidade almejada pelo Decreto, o art. 27, caput, poderia ter a redação modificada para constar “poderão ser cassadas” no lugar de “serão cassadas”, cabendo essa decisão, devidamente motivada, ser delegada à autoridade judicial. Assim, preserva-se que inquéritos ou ações criminais mais simples, de menor potencial ofensivo, sejam empregadas para impor uma penalidade indireta ao proprietário da arma de fogo.
Tendo sido instituído grupo de trabalho para apresentar nova regulamentação ao Estatuto do Desarmamento (art. 1º, V), além da aparente inconstitucionalidade da redação do art. 27, espera-se que algumas lacunas sejam resolvidas. Por exemplo, como o novo Decreto não estipula categorização de arma de uso restrito ou permitido, seria conveniente que a regulamentação fosse explícita para impedir que armas de alta potência estivessem nas mãos de pessoas sem preparo suficiente. Também é importante que o tiro desportivo e recreativo seja regulamentado de maneira mais ponderada, tanto para que os interessados não sejam exageradamente cerceados no esporte, quanto para que as pessoas comuns não sofram com o aumento da violência, insuflada por uma política armamentista descontrolada e, finalmente, é importante lembrar a necessidade de revisar a legislação armamentista no sentido de controlar de forma responsável a disponibilidade de armas e munições à população, em especial porque o próprio decreto determinou a instituição de grupo de trabalho para apresentar nova regulamentação à Lei nº 10.826/2003 (Estatudo do Desarmamento).
É certo que este novo decreto não tem o condão de retirar imediatamente armas de circulação, mas impede, de forma significativa, o aumento desenfreado da quantidade de armas nas mãos da população e indica, felizmente, que mudanças positivas estão por vir anunciando uma política pública de segurança mais responsável, vigilante, atrelada à ciência e digna de proteção à vida.
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