Por Tania Maria de Oliveira
O bolsonarismo contra-ataca
A jurisprudência alemã remonta ao pós-guerra. Mas, em fevereiro de 2020, atento ao crescimento da intolerância, o governo alemão aprovou uma lei que endurece as regras sobre manifestações de discurso de ódio em redes sociais
“Então é assim que a liberdade morre, com um estrondoso aplauso”
(Padmé Amidala – Star Wars – Episódio III)
Após a prisão do deputado bolsonarista Daniel Silveira, uma série de ataques ao direito à liberdade de expressão vem sendo orquestrada por pessoas e coletivos, além de órgãos oficiais do governo Bolsonaro.
Uma entidade autointitulada Ordem dos Advogados Conservadores do Brasil – OACB publicou uma mensagem nas redes sociais em que anuncia uma espécie de “disque-denúncia”, para que internautas reportem “ofensas” feitas ao presidente Jair Bolsonaro, a familiares dele ou a integrantes do governo federal, prometendo processar a todos e todas. A Ordem dos Advogados do Brasil – OAB abriu investigação sobre o grupo.
A pedido de um deputado do PSL do Rio Grande do Sul, Bibo Nunes, a Controladoria-Geral da União – CGU instaurou processo disciplinar contra dois professores da Universidade Federal de Pelotas – UFPel, em decorrência de críticas feitas a Jair Bolsonaro durante live transmitida pelo canal da Universidade, diante da possível nomeação da segunda colocada na lista tríplice para a reitoria, preterindo o mais votado pela comunidade acadêmica.
Ao mesmo tempo, o Ministério da Educação e Cultura – MEC enviou ofício-circular aos dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES), com uma recomendação do Procurador da República Ailton Benedito de Souza, de tomada de providências “para prevenir e punir atos político-partidários nas instituições públicas federais de ensino”.
Todos os atos listados, para citar apenas os que repercutiram, possuem em comum, além da condição de serem total e absolutamente inconstitucionais, a de buscarem aplicação da mais explicita censura e cerceamento a um direito constitucional fundamental. Intentam colocar-se no campo da disputa de narrativa sobre as noções de liberdade, ocupando o vácuo normativo que confunde os limites, como se a afirmativa fosse: “ou tudo pode, ou nada pode”, ou “se não podemos, eles também não”.
Representam, na prática, um contra-ataque às prisões de militantes bolsonaristas no decorrer de 2020, e do deputado Daniel Silveira em 2021. Fazem uma ofensiva geral de natureza repressiva e violadora de direitos, com tentativas de perseguir e calar os que se colocam contra as truculências e perversidades do governo Bolsonaro. E o fazem sob a falsa roupagem de legalidade e, muito grave, usando os órgãos do aparelho de Estado.
A prisão do deputado Daniel Silveira funcionou como um divisor de águas. Não que haja ineditismo na ação do Supremo Tribunal Federal, que já mandou prender e afastar outros parlamentares no exercício do mandato, mas por oportunizar um debate sobre temas de fundo até aqui relegados a notas de pé de página. Qual é o limite da imunidade parlamentar? Ou, se sairmos da discussão corporativista feita na Câmara: qual é o limite da liberdade de expressão?
As diferenças entre os diversos ordenamentos jurídicos no mundo sobre o tema são muito grandes. É o caso de Alemanha e Estados Unidos. Enquanto no país europeu discursos que negam crimes de guerra e o genocídio praticados e promovidos por causa da ideologia nazifascista são interditados e criminalizados, no país norte-americano falas sobre os mesmos temas estão acobertadas pela free speech, que veda limitação da liberdade de expressão. Esse é o já antigo entendimento da Suprema Corte dos Estados Unidos e sua interpretação da Primeira Emenda (1791) à Constituição de 1787.
A jurisprudência alemã remonta ao pós-guerra. Mas, em fevereiro de 2020, atento ao crescimento da intolerância, o governo alemão aprovou uma lei que endurece as regras sobre manifestações de discurso de ódio em redes sociais, como Facebook, Twitter e YouTube. Com exigência que essas plataformas denunciem tais crimes à polícia, a NetzDG, como é chamada, é a primeira regulação mais dura sobre redes sociais em um país democrático. Tornou-se referência pelo mundo. Ao menos 13 países e a União Europeia já adotaram leis inspiradas na alemã.
O Brasil nunca enfrentou esse debate como tese. O julgamento do pedido de Habeas Corpus (HC 82424) de Sigfried Ellwanger em 2004 é considerado um marco da jurisprudência. Levou nove meses para ser concluído, com maioria dos ministros entendendo que a prática de racismo abrange a discriminação contra os judeus. No entanto, os casos continuam sendo tratados um a um, e embora possuamos normativas gerais no combate ao preconceito, e diversas condutas passíveis de punição, existe um vácuo no que se refere ao tratamento dispensado às ações que possam contemplar critérios gerais. Parte-se da premissa de que as manifestações de ódio dirigidas contra indivíduos já são objetos de sanção e resposta jurídica, fundadas em categorias já tratadas pelo direito, como o racismo, e contempladas nos crimes contra a honra.
O projeto de lei das Fake News (PL 2.630/20) aprovado no Senado no dia 30 de junho de 2020, com normas para as redes sociais e serviços de mensagem como WhatsApp e Telegram, foi cercado de polêmicas e preocupações com sua extensão, sobretudo pelo poder concedido às plataformas para arbitrar o que pode e o que não pode ser publicado, deixando possibilidades de censura no ar.
Conquanto democracia e República sejam noções complexas, a materialidade de ambas está corporificada na Constituição Federal. Quando na cena pública perde-se referências elementares e estabelecem-se confusões propositadas, com o uso das instituições e do aparelho de Estado para determinados procedimentos fora da cultura democrática e republicana para perseguir pessoas, é preciso pensar de fato em regramentos, a partir de profundos debates, dentro das instituições e com participação popular.
O projeto de lei apresentado na Câmara pelo deputado Paulo Teixeira no ano passado, intitulado “Lei de defesa do Estado Democrático de Direito” tem essa pegada de buscar ajudar a desmontar esse processo de uso de argumentos legítimos para justificar a barbárie.
Se quisermos ter alguma chance de deter o rumo das coisas urge investir no aprofundamento desse tema. E entender que não se trata apenas de explicar a diferença entre críticas e ameaças, entre debate dentro da ordem democrática e apologia a ditaduras, entre disputar as diferenças e querer a eliminação do diferente. É tudo isso, mas é, sobretudo, do quanto de civilização nos restará se assistirmos à morte da liberdade sem reação ou sob aplausos.
Artigo publicado originalmente no Jornal GGN.
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