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O Iluminismo de representantes sem voto

Por Paulo Guilherme Ribeiro Bigonha

No livro “Sem data vênia: um olhar sobre o Brasil e o mundo”, lançado no final do ano passado (2020), o Ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso expõe a sua visão liberal, citando o economista e escritor norte-americano Milton Friedman: “se você colocasse o governo para administrar o deserto do Saara, em cinco anos haveria falta de areia”, para, em seguida, asseverar que “o mercado regulado adequadamente é mais democrático do que este Estado privatizado”.

Já no artigo intitulado “Contramajoritário, Representativo e Iluminista: papéis dos tribunais constitucionais na democracia”, publicado na prestigiada American Journal of Camparative Law, o iluminado jurista revela um olhar condescendente com uma atuação dos tribunais capaz de “interpretar e de atender o sentimento da sociedade”, como literalmente declarado em entrevista ao jornal Estado de São Paulo publicada em 31 de março de 2019[1].

É de se notar, de pronto, um paradoxo na composição do raciocínio, pois, ao mesmo tempo em que demonstra uma absoluta incredulidade em relação à capacidade de gerir do Estado (a economia, pelo menos), o ministro revela um sentimento de profunda crença na vocação das Cortes Constitucionais (que não seriam parte desse mesmo Estado?) para capturar o volksgeist, o espírito do povo, outrora assim denominado pela escola histórica do direito, numa perspectiva de representatividade e de promoção de “avanços civilizatórios”.

Para além dessa evidente dubiedade, essa visão idealizada acerca do papel do Judiciário apontada no artigo desafia uma questão crucial: qual seria a medida desse tal “sentimento da sociedade”?

Essa é uma pergunta relevante, na medida em que, até onde é possível enxergar, o Ministro toma como certo o fato de que o Supremo Tribunal Federal, exercendo o seu papel representativo, teria albergado “uma série de decisões apoiadas pela maioria da população que não tiveram acolhida na política majoritária”, sem apontar, no entanto, a fonte estatística dessa afirmação.

De fato, ao afirmar que decisões do STF como, por exemplo, a de declarar a inconstitucionalidade do financiamento privado das campanhas eleitorais ou a de possibilitar a prisão após a confirmação da condenação pelo tribunal de segunda instância contariam com “amplo apoio popular”, o insigne jurista não deixa claro se esse respaldo adviria de uma declarada maioria, assim como não indica o dado empírico que embasaria tal afirmação.

Paralelamente, tal silogismo depara-se com um outro problema igualmente fundamental: o da volatilidade da opinião pública. A ideia de que a Corte Suprema poderia capturar e interpretar o espírito do povo num determinado momento para atender aos anseios da sociedade (papel representativo) ou para promover um impulso civilizatório (papel iluminista) despreza dados da realidade como a velocidade e a diluição da informação no

ambiente virtual, o uso da propaganda (político-ideológica) e das fake news na comunicação de massa, a captura de (boa) parte das concessões públicas de rádio e televisão por corporações, políticos e religiosos, assim como o caráter hegemônico e oligárquico da grande imprensa brasileira, entre outros fatores que influenciam, direcionam e contaminam, de forma cada vez mais instantânea, a opinião pública.

Para ilustrar essa preocupação, podemos relembrar um fato relativamente recente, dotado de grande simbolismo. Em outubro de 2014, a Presidenta Dilma foi reeleita com a maioria dos votos válidos (51,64%) e, menos de dois anos depois, em agosto de 2016, ela foi impedida com um índice de reprovação de 77,6%[1], perdendo o cargo para o qual teria sido eleita após uma maciça campanha midiática vinculando-a às chamadas “pedaladas fiscais”. A responsabilidade pessoal da Chefe do Executivo Federal pelas manobras fiscais, contudo, não foi posteriormente comprovada[2].

É de se ter presente, ainda, um fato inexorável: por questões óbvias, a “voz das ruas” costumeiramente ganha maior destaque em momentos de aguda crise, em meio a protestos e manifestações populares, ocasiões em que a temperatura do caldeirão político se eleva e a pressão sobre as instituições atinge níveis críticos.

Como resultado dessa realidade, temos visto um deletério efeito de instabilidade (casuísmos) na jurisprudência dos tribunais, com patente destaque para aquela produzida pela Suprema Corte brasileira, que passou a construir “soluções” inéditas, muitas vezes sem um mínimo rigor técnico. Algumas, inclusive, beirando o limite da exceção.

Podemos ilustrar a afirmação citando, p.ex., a polêmica adoção da Teoria do Domínio do Fato de forma inédita e inusitada pelo STF na Ação Penal nº 470 (conhecida como “Processo do Mensalão”), cujo desvirtuado emprego foi criticado pelo seu criador, o jurista alemão Claus Roxin[3]. Duvida-se, nesse contexto, que o STF continuará reverberando a tese sob uma abordagem que foi rechaçada pelo seu próprio autor.

Mas não faltam exemplos de jaez similar. Para citar apenas um, o próprio perecimento do direito invocado no Mandado de Segurança nº 34.441/DF[4] – impetrado em favor da ex-Presidenta Dilma Rousseff, questionando, entre outras coisas, a constitucionalidade das normas que descreveriam o crime de responsabilidade pelo qual ela estaria sendo responsabilizada no sobredito processo de impeachment –, cuja perda superveniente do objeto foi declarada pelo STF, é bastante incomum, especialmente considerando-se o regime de tramitação prioritária ao qual o writ é submetido e o significado e a importância de uma decisão que poderia trancar o processo de impedimento da Chefe do Executivo Federal e, consequentemente, mudar o curso da história recente do Brasil.

Sem tecer considerações sobre o mérito desses julgamentos, pois esse não é o cerne do debate proposto, pretende-se apenas ressaltar a dimensão do problema em se admitir que o Poder Judiciário se conduza a partir daquilo que, em determinado momento, supostamente possa aparentar ser “a voz do povo”. E o perigo que significa que representantes sem voto (e sem mandato) possam ser os porta-vozes do espírito do tempo (zeitgeist), ou seja, aqueles que têm a habilidade de ler os auspícios e de traçar os caminhos a serem percorridos pela sociedade.

Em produção intitulada “Teoria da Legislação e Argumentação Legislativa: a contribuição de Manuel Atienza”[5], a Professora de Direito, Constitucionalismo e Políticas Públicas da Universidade de Brasília, Roberta Simões Nascimento, constrói, a partir de uma compilação dos escritos do respeitado jurista e filósofo espanhol, um quadro contendo as características que diferenciam os juízes dos legisladores. Entre elas, está a imparcialidade dos magistrados em contraponto com a representatividade (dos eleitores) por parte dos políticos. Também o fato de que o Poder Judiciário foi desenhado para se alcançar o consenso, sendo impossível a livre escolha dos temas a serem apreciados; ao contrário do Legislativo, que rege o dissenso e tem total liberdade para pautar a temática a ser tratada. Além da visão judicial ser voltada para o passado em resposta ao julgamento do caso concreto e com a finalidade de cumprir o Direito (objetivos internos), em contraposição ao raciocínio dos legisladores, que tomam as suas decisões com o olhar no futuro, e com absoluta discricionariedade, tendo como fim o uso do Direito para o atingimento de objetivos sociais (objetivos externos).

Nesse horizonte, embora se reconheça a valiosa contribuição do artigo publicado pelo Ministro Luís Roberto Barroso, especialmente ao defender a original ideia com inegável clareza e costumeiro brilhantismo, é fácil perceber a incompatibilidade dos papéis representativo e iluminista invocados pelo festejado julgador com a própria arquitetura do Poder Judiciário e os limites impostos pela atual ordem constitucional.

Decerto, é impossível saber se estas (e outras) recentes decisões da nossa Corte Constitucional representaram efetivamente o sentimento majoritário da nossa sociedade, mas é bem fácil perceber que estamos vivendo um momento de profundo retrocesso, de grave obscurantismo, com profundas fissuras no nosso tecido social, que, para muitos e relevantes pensadores, teriam origem exatamente nos ideais neoliberais e jus-iluministas que ofuscam alguns julgamentos da Suprema Corte brasileira.


[1] Para ver os dados citados, acesse: https://www.terra.com.br/noticias/brasil/politica/impeachment/exclusivo-as-vesperas-da-do-impeachment-popularidade-de-dilma-e-a-maior-em-1-ano,3a24d4d9620b1ff8d5734aa38b8c140c283y4l10.html

[2] Sobre o tema, consulte: https://www.brasildefato.com.br/2016/06/27/pericia-nega-participacao-de-dilma-em-pedaladas-fiscais/

[3] Sobre a aludida crítica, consulte: https://consultor-juridico.jusbrasil.com.br/noticias/136864441/claus-roxin-critica-aplicacao-atual-da-teoria-do-dominio-do-fato

[4] Para consultar o precedente citado, acesse: https://jurisprudencia.stf.jus.br/pages/search/sjur425341/false

[5] NASCIMENTO, Roberta Simões. Teoria da legislação e argumentação legislativa: a contribuição de Manuel Atienza. Teoria Jurídica Contemporânea, v. 3, n. 2, 2018, pp. 157-198.

[6] Para acessar a citação, acesse: https://acervo.estadao.com.br/pagina/#!/20190331-45820-nac-10-pol-a10-not

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