Por Leonardo Donato
Os recentes episódios envolvendo a divulgação de conversas que evidenciaram um verdadeiro consórcio entre “força-tarefa” do Ministério Público e o Juiz Sérgio Moro, no âmbito da denominada “operação Lava Jato”, são pano de fundo para uma necessária discussão acerca do lugar do juiz no processo penal. Para além da questão individual, que é caricata, o caso é sintoma de um contexto jurisdicional maior que antecede. Espelha um panorama macro. Se o teor dos conteúdos revelados não é suficiente para causar perplexidade em parte da comunidade jurídica e ganhar contornos de escândalo nos grandes jornais, é porque as condições de possibilidade para a normalização do anormal papel do juiz criminal estão aí de há muito.
Para tratar do desvirtuamento da função do magistrado no processo penal, que, em última instancia, está ligado a um problema circular no Direito, que é a subjetividade, calha trazer à tona dois conceitos teóricos que auxiliam na correta dimensão e descrição da conjuntura.
O estado de natureza hermenêutico, conceito talhado pelo professor Lenio Streck, simboliza metaforicamente o grau do discricionarismo positivista alcançado no sistema jurídico pátrio. Trata-se, pois, de um ambiente que comporta relativismos e certa liberdade interpretativa, expressões de correntes ainda vinculadas ao esquema “sujeito-objeto”, ora a literalidade da lei servindo como espécie de panaceia para todos os males – filosofia da linguagem –, ora a mesma lei devendo ser superada por valores que o intérprete há de descobrir – filosofia da consciência. Dentro dele, se torna legítimo ao juiz fazer escolhas, ao invés de decidir, renegando-se uma doutrina de “responsabilidade política do julgador” (DWORKIN, 2010), de modo que não raras vezes se interpreta como se existisse um “grau zero de sentido” (STRECK, 2017, p. 21).
Na “guerra” entre os interpretes, na qual os sentidos são determinados solipsisticamente, cada qual com seus próprios métodos, justificativas, para chegar, muitas vezes, em respostas já estabelecidas de antemão – porque sujeitos interessados –, o Estado de Direito Democrático sai enfraquecido, uma vez que o Direito não mais se assenta na linguagem pública e intersubjetiva; não nos regramentos e compromissos democraticamente estabelecidos; não mais naquilo que foi exaustivamente debatido politicamente, fruto de um processo civilizatório de séculos, que servem em certa medida para colocar freios ao poder punitivo, mas nos domínios de sentido subjetivos de quem tem o poder para dizer o Direito por último.
A crise identitária da jurisdição, por sua vez, é uma das dimensões daquilo que o professor Aury Lopes Jr. denomina de “crise do processo penal […] instituidora de todo o problema, na medida em que vai se refletir nas demais” (2020, p. 91). Aproximando categorias teóricas, pode-se dizer que é espécie que deriva do conceito geral talhado por Streck, pois identifica a postura proativa, de protagonismo do julgador, no processo penal. Trata-se de um verdadeiro deslocamento estrutural em que a toga não mais “induz ao recato” (CARNELUTTI, 2009), em que o magistrado não mais é espectador, mas, ator, comprometendo o princípio supremo do processo, que é o da imparcialidade; “o juiz se coloca em posição de ‘corresponder às expectativas sociais ou midiáticas criadas’ e assume um papel próximo à de justiceiro” (LOPES JR, 2020, p. 118). Para tanto, emprega-se os mais diversos mecanismos, transferindo-se a gestão/iniciativa probatória, desrespeitando-se a tipicidade processual e a legalidade estrita, limitando-se garantias a pretexto de “eficiência”, “busca da verdade”, “pacificação social” ou standards performativos e retóricos desse jaez, que escondem, em sua essência, o “decido conforme minha consciência” (STRECK, 2015).
A postura jurisdicional adotada na “Lava Jato” retrata o que já acontecia e acontece em maior ou menor escala nos mais diversos rincões do país, a saber, o deslocamento do polo de atuação do juiz: não mais um sujeito garantidor dos direitos fundamentais do cidadão (FERRAJOLI, 2002), mas um terceiro interessado; interessado, pois, não só escolhe um lado, como se acha legitimado a assim fazê-lo. O juiz se sente autorizado a agir como instrumento de segurança pública (CASARA, 2015), longa manus da polícia, e supridor das eventuais deficiências do Ministério Público, ancorando-se, na maior parte das vezes, na pretensa “busca por uma verdade dos fatos”, que nada mais é do que um argumento falacioso que perpassou séculos, chancelador de verdadeiras devassas, em patente incompatibilidade com a finalidade limitadora do processo. Em nome da verdade se cometeram e se cometem as maiores arbitrariedades (COUTINHO, 2020), sendo, na realidade, muitas vezes o subterfúgio empregado para justificar atos e posturas impróprias, manejando-se o poder da caneta para tornar o Poder Judiciário uma espécie de “superego” da sociedade.
Com efeito, para dar conta de uma sensação de aumento da criminalidade e impunidade, a cultura inquisitória (LOPES JR., 2020) é propícia para que o magistrado que não compreende o seu papel se poste como forma de ultima ratio no “combate à delinquência”. O sistema punitivo passa a ser visto como “capaz de evitar novos crimes e vê o processo penal como mero fim para alcançar a pena” (FERNANDES, 2020, p. 02). Ao agir com essa pretensão, isto é, de ser parte integrante de um sistema repressivo, de ser responsável por “afagar as dores da sociedade”, o horizonte de compreensão do juiz acerca do seu lugar em um processo penal se inverte e se distorce. A imparcialidade já não é constituidora de sentidos; não é mais a condição de possibilidade para a jurisdição, mas um mero capricho, que, a depender do contexto, do crime ou, principalmente, da pessoa imputada, pode ser relativizada e preterida. Chico Buarque tem razão, filha do medo, a raiva é mãe da covardia.
Cumpre, nessa toada, afirmar que uma postura parcial da judicatura, necessariamente, advém da discricionariedade. Nessa acepção, o comprometimento da imparcialidade, pedra de toque para um processo justo – no sentido de observância às formalidades – resulta do comprometimento ideológico com uma carga tensionatória cognitiva voltada à punição. Se há um óbice ao devido distanciamento objetivo por parte do julgador, já há, na largada, um prejuízo difícil de se contornar pela defesa, que muito provavelmente afetará cada ato processual, maculando o lastro que confere legitimidade a eventual punição. É que a imparcialidade é condição sine qua non para um processo democrático e acusatório, pois é a condição de possibilidade para concretização dos demais direitos. Não havendo a preservação do “valor imparcialidade”, inevitavelmente o juiz já estará deslocado de suas balizas programáticas, pois o que deveria ser o interesse em evitar o erro judiciário, transforma-se em interesse que presta deferência tão somente à pura e simples vontade pessoal.
O que se quer demonstrar, aqui, é, em suma, que o favorecimento, a simpatia, o comprometimento, enfim, ao “combate ao crime”, na condição de juiz, implica, no limite, no deslocamento de sua atuação constitucional, pois o ingresso no processo já se dá de forma enviesada. O resultado que decorre dessa postura acaba sendo, inexoravelmente, a parcialidade, afetando os atos decisórios subsequentes que forem tomados sob essa perspectiva. Se assim ocorre, é porque há certa complacência com o poder discricionário da judicatura, já que, por vinculação ao programa constitucional, sua fonte normativa de legitimidade, o juiz não estaria autorizado a agir com esse mister. Assim sendo, configura-se forma de ativismo judicial, que é aquela que deriva da quebra da imparcialidade do julgador que se desloca do lugar que lhe era cabido em um processo penal democrático.
Voto importante e rico que vai mais ou menos nessa linha foi o do Ministro Gilmar Mendes no AgRg no RHC 144.615/PR, em que reconheceu a quebra da imparcialidade do julgador que foge de sua posição legitimamente demarcada no campo processual penal, unindo-se ao polo acusatório e desequilibrando a balança da paridade de armas.
Nessa altura, cumpre questionar: Qual é, então, o lugar e a função do juiz em um processo penal acusatório? É, em síntese, cumprir o instrumento fonte de sua legitimidade, isto significa garantir e tutelar, de acordo com o Direito, e com a absoluta imparcialidade e distanciamento, em todas as decisões emanadas, os direitos e garantias fundamentais do indivíduo, especialmente do acusado, que é o débil e sofre o poder e a violência do Estado enquanto sujeito processual (FERRAJOLI, 2002). Simples e complexo. E o cumprimento de sua função se dá e se controla por meio da decisão judicial, locus pelo qual se “diz o Direito”. em que a prestação jurisdicional se concretiza.
O juiz é um ser-no-mundo (HEIDEGGER, 2000), naturalmente terá suas preferências ideológicas, valorativas, seu senso de justiça, enfim. O óbvio às vezes não deixa de ser oportuno: não se está a falar aqui em neutralidade. O fato é que a imparcialidade subjetiva é de difícil aferição; não há, efetivamente, como “acessar a cabeça do juiz”. No entanto, se o magistrado parte da premissa inadequada e do lugar descabido no processo, essas tendências, cedo ou tarde, hão de se manifestar objetivamente no processo, especialmente nos momentos decisórios, e é controlável a partir da intersubjetividade da linguagem, característica notável após o giro ontológico-linguístico (STRECK, 2017). O ponto nevrálgico é ter elementos para oferecer critérios preventivos aptos a mitigar a discricionariedade – ou, na pior das hipóteses, em atuação reparatória, conseguir identificá-la e corrigi-la – porque é dela que irá advir uma postura que retira o magistrado do seu lugar de garantidor para levá-lo a agir por interesses metajurídicos, lastreados em argumentos inidôneos. Assim sendo, para que não se fique dependente simplesmente do autorreferimento do julgador, ao estabelecer uma teoria decisória para auxiliar a maximização do agir imparcial, se os pressupostos estiverem corretos, é possível, a partir dela, o efetivo controle dos atos e posturas judiciais. Nesse sentido, a teoria da decisão que prega a Crítica Hermenêutica do Direito parece instrumento útil e adequado.
Influenciado por essa postura crítica, em matéria penal, parece necessário estabelecer ainda alguns outros marcos deontológicos. O primeiro, é o desapego da noção de “busca da verdade”, pois ao se desafeiçoar por este desiderato, evita-se visões moralizantes na marcha processual e assume-se outro horizonte. Assim, “a verdade, no processo, deve ser produzida analogicamente sob a forma narrativa e não encontrada no processo de forma correspondente” (KHALED JR., 2016, p. 501), muito menos, de forma “real”. Nesse sentido, importa destacar que, sendo a verdade algo que se reconstrói narrativamente – ou seja, por meio da linguagem, passível de diversas contingências –, sob o signo do análogo, “isso significa que a verdade é algo essencialmente contingente: ao final restará apenas representância, o que só pode significar que a ênfase deve residir nas regras do jogo e na contenção ritualizada do poder punitivo através do devido processo legal” (KHALED JR., 2016, p. 521).
A segunda questão é absoluto comprometimento com o distanciamento objetivo e o desinteresse pelo protagonismo do processo, deixando que as partes tenham o encargo de trazer os rastros, que possibilitam de forma aproximada rastrear o passado, muito embora jamais consigam preencher o déficit de veracidade presente em uma produção narrativa (KHALED JR., 2016). Se a noção de busca da verdade for renegada, entrega-se automaticamente a gestão da prova nas mãos do Ministério Público e da defesa, homenageando o caráter eminentemente acusatório que o sistema deve possuir, em um autêntico “processo penal de partes” (COUTINHO, 2001, p. 07). Trata-se do dever do magistrado de se manifestar nos limites dos rastros e dos pontos suscitados pelos outros sujeitos processuais. Assim, possibilita-se salvaguardar a função de garante do magistrado, além de viabilizar uma construção intersubjetiva das decisões, com a capacidade de as partes interferirem, quantitiva e qualitavamente, no deslinde das resoluções.
Nessa perspectiva, alguns padrões hermenêuticos podem atuar para auxiliar o agir processual por princípio do magistrado, auxiliando o fechamento de sentidos na interpretação das regras, norteando a postura equidistante que deve almejar. Identifica-se do que já foi dito até aqui a possibilidade de formulação de cinco perguntas fundamentais pelo próprio magistrado que devem orientar a sua jurisdição; (1) se está diante de um ato decisório tomado a partir do desinteresse com a busca da verdade e despido de pretensões metajurídicas? (2) se está diante de um ato decisório assentado com base em argumentos de Direito? (3) se está diante de um ato decisório que está respeitando a acusatoriedade do sistema, proporcionando isonomia e igualdade às partes? (4) se está diante de um ato decisório que está sendo tomado com a efetiva contribuição intersubjetiva das partes, no limite do que foi alegado pela acusação e de acordo com os rastros carreados ao processo? (5) se está diante de um ato decisório que pode superar as dimensões da presunção de inocência (regra de tratamento; regra do Estado; regra de juízo)?
É preciso que haja a correta compreensão do magistrado da nobreza que a sua função lhe distingue: ser o terceiro efetivamente imparcial e desinteressado. Trata-se, sobretudo, de uma postura crítica, algo para que, como adverte Galeano (1996), “não se deixe de caminhar”, a todo momento buscando suplantar o sujeito solipsista, visando reconstruir o melhor sentido do Direito e do Processo Penal a partir da Constituição. Nessa senda, o caminho é melhor que a pousada (ORTEGA y GASSET, 2017), e a responsabilidade de ter olhos implica em não só ver, mas, também, reparar (SARAMAGO, 1995), afinal, como bem lembra Darcy Ribeiro, “só há duas opções nesta vida: se resignar ou indignar”. A resignação frente ao arbítrio significa condescendência. Resta, então, a indignação, que deve ser dirigida à utopia de um processo penal democrático que pode ser. Há de ser.
Referências:
CARNELUTTI, Francesco. As misérias do processo penal. São Paulo: Ed. Pillares, 2009.
CASARA, Rubens. Mitologia processual penal. São Paulo: Saraiva, 2015.
COUTINHO, Jacinto Nelson de Miranda. O papel do novo juiz no processo penal. In: Crítica à Teoria Geral do Direito Processual Penal. Rio de Janeiro: Renovar, 2001.
DWORKIN, Ronald. Levando os direitos a sério. 3ª ed. São Paulo: Ed. WMF Martins Fontes, 2010.
GALEANO, Eduardo. As palavras andantes. Porto Alegre: L&PM, 1994.
FERNANDES, Maíra. Uma janela sobre a utopia: o modelo penal garantista. In: Consultor Jurídico – ago. 2020, disponível em: <https://www.conjur.com.br/2020-ago-05/escritos-mulher-janela-utopia-modelo-penal-garantista>. Acesso em: 23, ago. 2020.
FERRAJOLI, Luigi. Direito e razão: teoria do garantismo penal. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2002.
HEIDEGGER, Martin. Ser e tempo. Petrópolis: Vozes, 2000.
KHALED JÚNIOR, Salah H. A busca da verdade no processo penal: para além da ambição inquisitorial. São Paulo: Atlas, 2016.
LOPES JUNIOR, Aury. Fundamentos do Processo Penal – Introdução Crítica. São Paulo: Saraiva, 2020.
ORTEGA Y GASSET, José. La rebelión de las masas. Barcelona: Austral, 2017
SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo: Companhia das Letras, 1995.
STRECK, Lenio Luiz. Dicionário de hermenêutica: quarenta temais fundamentais da teoria do direito à luz da crítica hermenêutica do direito. Belo Horizonte: Letramento: Casa do Direito, 2017.
____. O que é isto – decido conforme minha consciência? 5ª ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2015.
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