Por Martonio Mont’alverne Barreto Lima
Amaldiçoar a corrupção, simplesmente, é a forma mais fácil de permitir sua reprodução
Pedidos formulados por PCdoB, PSOL e Solidariedade e patronos legais na ADPF (arguição de descumprimento de preceito fundamental) 1.051 foram criticados nesta Folha pelo colunista Conrado Hübner Mendes (“O ‘estado de coisas inconstitucional’ do lobby advocatício”, 26/4). A ação no Supremo Tribunal Federal pede a suspensão do pagamento de multas estabelecido nos acordos de leniência entre o Estado e empresas no âmbito da Operação Lava Jato.
O debate se estendeu por outros meios da imprensa e já conta com dois requerimentos para ingresso na ADPF sob a forma de amigos da corte. Pelo que se viu até agora, seja da crítica de Conrado Hübner ou das petições dos candidatos a amigos da corte, o argumento moralista tem dominado o raciocínio de privilegiadas mentes. A advertência de Spinoza —”Quem faz a razão serva da fé ensandece”—, desde 1670, parece permanecer um apelo no deserto.
No debate sobre o caso, já se disse muito sobre os pedidos: a inclusão da Advocacia-Geral da União na nova pactuação dos acordos de leniência firmados com as empresas; e a declaração do estado de coisas inconstitucional operado pelo lavajatismo econômico, principalmente. Neste breve artigo, destaco o que a materialidade da história diz sobre casos semelhantes —em contraposição às palavras do colunista.
Ninguém duvidou da parceria entre capital financeiro, liberais, grande indústria, imprensa e burocracia judiciária com sistemas autoritários e totalitários. Tampouco se ignorou os crimes de seus representantes. Falsários/ignorantes da história não olham as roubalheiras da pré-modernidade, como aquelas de Lord R. Clive ou Sir Warren Hastings, na esperança de dizer que o caso brasileiro supera todos e tudo —ou pela pueril disposição de conceber a corrupção como um problema a ser resolvido pela moral e bons costumes. Enfrentar a corrupção significa compreender suas formas e raízes na historicidade dos processos de desenvolvimento econômico e político. Amaldiçoá-la, simplesmente, é a forma mais fácil de escapar dela e permitir sua reprodução.
Quando se olha após 1945, constata-se que os grandes colaboradores econômicos das experiências totalitárias fascista e nazista receberam investimentos nacionais e internacionais para sua recuperação. Por motivos de sobrevivência da economia nacional, empresas de tecnologia de ponta para a guerra, como a indústria química, puderam se reestruturar e reorganizar o mercado, o emprego e a soberania econômica de suas sociedades. Obrigadas a reconhecerem os crimes de seus diretores e pagar indenizações, não foram riscadas do mapa nem se tornaram inviáveis depois da guerra. Para isso, recorreram exatamente ao que mais desprezaram: o Estado de Direito. Muitos de seus cérebros foram absorvidos por potências emergentes —e aí está a história para mostrar o acerto cultural, econômico e político de tal opção.
O tema não é novo no Brasil. Em 2015, Walfrido Warde Jr. (um dos signatários da ADPF), Gilberto Bercovici e José Francisco Siqueira Neto elaboraram um estudo sobre o assunto chamado “Um plano nacional de ação para o salvamento do projeto nacional de infraestrutura”. Desde o século 18, registram os autores, qualquer governante menos desatento separa a empresa de seus dirigentes, de maneira a preservar interesse e soberania nacionais. Nos idos de 2015, o lavajatismo estava no auge, com ampla notícia de que advogados —os quais orientavam seus clientes diretores de empresas a não caírem na tentação dos acordos de delação— eram substituídos por outros profissionais, mais adeptos do sistema lavajatista.
Portanto, nenhuma novidade que os signatários da ADPF mantenham a posição de hoje, com o ajuizamento da arguição; posição que já manifestavam durante os tempos da Lava Jato.
A soberania econômica, que por óbvio defende a empresa nacional, está no art. 170 da Constituição. Rever acordos assinados sob o argumento da defesa das empresas nacionais nada mais corresponde do que a efetivação desse dispositivo. Assim como requerer do Supremo que discipline os termos de novos acordos, sob o comando da Constituição e de leis. Na verdade, a ADPF 1.051 é apenas parte de uma longa, porém necessária, reconstrução econômica e política nacional.
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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