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O MP e o divã: “quem sou?” “Ou tenho os pés de Curupira?”

O MP e o divã: “quem sou?” “Ou tenho os pés de Curupira?”

Durante quase 30 anos estive lá. No Ministério Público. Eu sempre disse que o MP deveria ser uma magistratura. Imparcial. Isento. Sustentei dezenas de teses durante a carreira, especialmente relacionados às garantias processuais-constitucionais.

Como procurador, uma das teses — vencedora por um período no órgão fracionário (5ª Câmara Criminal) — que sustentei foi a de que o modelo constitucional brasileiro não tinha albergado a figura do assistente de acusação. A câmara criminal concordava comigo. As vezes deparávamos com bizarrices como, em uma apelação da defesa, o MP fazia arrazoado pela absolvição e o assistente pugnava pela condenação.

Fui derrotado mais tarde. Com humildade epistêmica, dobrei-me e passei a não mais me colocar contra a figura do assistente de acusação stricto sensu. Ele pode ser importante. E tem sido, por meio de brilhantes causídicos.

Porém, o que continua me intrigando é quando o MP demonstra, implícita ou explicitamente, que está satisfeito com o resultado (por exemplo, com uma absolvição em sede de apelação). Explico — e aqui tenho boas companhias, como Aury Lopes Jr, Jacinto Coutinho, Juarez Tavares, Gustavo Badaró, entre outros: se a ação é pública incondicionada, o dono da ação é o MP. Se ele se contenta com o resultado de uma sentença ou acordão, parece claro que o Estado descansou sua tese e seu interesse de agir. Quem fala pelo Estado é o MP.

Há uma série de problemas que exsurgem quando estamos diante de casos em que o MP não recorre e o assistente de acusação o faz, como se fosse o titular do direito de ação penal.

O primeiro problema é o interesse de agir. Nesses casos, o Estado já se afastou. Esse é o ônus da democracia e do devido processo legal naquilo que se entende por atuação como parte.

O segundo problema é intrínseco ao próprio Ministério Público. Recentemente, deparei-me com um caso mais que teratológico: sentença condenatória de primeiro grau; apelação da defesa provida por unanimidade reformando in totum a decisão; concordância do Ministério Público, em segundo grau, na ocasião da sessão; e, por coerência, o MP não recorre ao STJ e ao STF.

Parece óbvio que o não recorrer é um ato positivo de concordância com o resultado. Causa finita.

Ou não. Porque eis que o assistente de acusação interpõe REsp (e a coisa pode piorar: há casos em que o assistente recorre e o MP dá parecer contra; há casos de REsp em que o MP não recorre, o assistente recorre e o MP, intimado, nada faz. As variações são muitas…).

E esse REsp é contra-arrazoado pela defesa.

O REsp não recebe juízo de admissibilidade favorável. Rediscussão da prova e coisas desse jaez.

Tudo terminou? Acreditem, não terminou. O assistente de acusação interpõe AREsp. Na origem, o MP nem dá bola. Afinal, não há interesse de agir.

Só que esse AREsp recebe parecer favorável do MP junto ao STJ. E então?

Nesses casos, a defesa é surpreendida. Primeiro, o MP fala por quatro ou cinco vozes diferentes, o que parece bizarro; segundo, se o MP junto ao STJ fala sozinho, então deve ser na condição de custus legis — e nunca como parte! E muito menos como “assistente do assistente”. Esse é o busílis.

Resumo da ópera: precisamos falar sobre o Ministério Público. Já escrevi mais de uma coluna sobre isso. E a coisa se agrava.

O MP tem de deitar-se em um divã. “– Quem sou?  Sou parte? Sou fiscal? Sou os dois? Ou sou assistente do assistente de acusação?” “Ou posso querer o melhor de todos esses mundos?”

“Ou tenho os pés de Curupira?” “O cidadão pode confiar em mim? Bem, em mim, quem?” “Qual é a minha voz que vale?” Do MP que pediu a condenação? Do que pediu a absolvição? Do que não recorreu? Ou do MP que se torna assistente do assistente de acusação?

Deveria ser uma platitude, mas assistente de acusação atua somente como coadjuvante do MP. Assistente é assistente de algo que existe: a acusação. Mas quando não há mais acusação, não há mais o que ser assistido.

Assistente de acusação tem um papel relevante enquanto existir acusação feita por quem está legitimado: o MP. Assistente de acusação arrazoa recursos interpostos pelo titular. Simples assim. Se o titular não recorre, termina a pretensão punitiva do Estado. Ainda não vivemos vingança privada.

Se se admitir que o assistente atue autonomamente, estão admitiremos que o assistente assume o papel do Estado. Porém, paradoxalmente, ele será um Estado-B, porque o Estado-A já se pronunciou. Isso é esquizofrenia pura. Ou bipolaridade jurídica.

De todo modo, numa palavra final, o que não pode ocorrer é o Ministério Público, instituição que possui as mesmas garantias da magistratura — às vezes o MP esquece disso —, transformar-se em assistente do assistente de acusação. Já temos funções em demasia na República. Se o assistente assumir as funções autônomas do MP e este se transformar em seu assistente, corremos o risco de o assistente cobrar isonomia com o MP, se me permitem uma pequena ironia.

Os pés do Curupira estão para trás, mas caminham para a frente? Ou vice-versa?

Post scriptum: o ministro Rogério Schietti, ex-integrante do MP, tem feito críticas que se colocam na linha do que aqui sustento e venho sustentando. Nesse sentido, este texto; também este; e vejam o julgamento do Habeas Corpus 709.986-SP, novamente o ministro Schietti falando sobre condenações malfeitas.

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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