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Obstáculos epistemológicos e o caso do racismo na abordagem policial

Obstáculos epistemológicos e o caso do racismo na abordagem policial

1. Notas introdutórias
Nos anos 80, estudávamos, no mestrado, as obras de Gaston Bachelard e os “obstáculos epistemológicos”. Era a belle époque da pós. Quem ainda conhece ou ouviu falar de Bachelard nestes tempos de direito desenhado e de tese sobre agravo ou cheque?

Falo dos “obstáculos” para demonstrar como existem entraves à compreensão de um fenômeno. E como há formas de os evitar. Diogo Bacha, Marcelo Cattoni e eu (ver aqui) explicitamos isso em texto aqui no ConJur. O texto circulou razoavelmente no meio da comunidade jurídica. Houve inclusive críticas de lidadores do direito que não leram o texto e não gostaram. Muito comum hoje em dia, em tempos de pressa e fragmentação cotidiana. Perfeitamente compreensível.

Sigo. Para dizer que um bom exemplo sobre “obstáculos epistemológicos” pode ser o fenômeno chamado “cultura dos precedentes”. O que isso tem a ver com o julgamento do habeas corpus e da discussão da tese (precedente) sobre abordagem policial?

Tudo. E tentarei explicar. E peço paciência aos leitores.

Sobre o tema “precedentes” já se criou, na doutrina e na jurisprudência brasileiras, uma coagulação de sentido. De forma criterialista (refiro-me, evidentemente, ao aguilhão semântico denunciado por Dworkin — explicarei em seguida), estabeleceu-se inclusive um conceito de “precedente qualificado”. Algo como “precedente em sentido forte, em sentido moderado ou sentido fraco”. Se há algo que caracteriza o criterialismo é essa forma de desvio de sentido.

Outro exemplo de criterialismo é aposta no livre convencimento, livre apreciação, rol taxativo de suspeição, júri decidindo por íntima convicção e tantos outros temas como razoabilidade, proporcionalidade, pelos quais é possível dizer qualquer coisa sobre qualquer coisa. Qual é o limite do “livre”? O que é razoável?

Criterialismo, portanto, é essa ideia enraizada no direito brasileiro, que é convencionalista por excelência no sentido interpretativo da coisa. A ideia de que só se pode dizer o direito por meio dos critérios convencionalmente estabelecidos para se dizer o que é o direito.

Qual é o problema? Ora, no Brasil, discutimos se patins elétricos configuram “veículo” para uma regra que diz “proibido veículos no parque”. Ou se um tanque é veículo. E aí o Judiciário (a doutrina ajuda, é claro) põe os critérios a partir dos quais dizemos se é ou não um veículo. Só que esses critérios não são construídos pela intersubjetividade, muitas vezes: são simplesmente postos ad hoc, e nenhuma discussão é possível fora desses critérios colocados ad hoc. Cada juiz ou tribunal estipulará discricionariamente o que é um veículo. E, no final, se houver divergências, faça-se um enunciado ou tese dizendo, detalhadamente, o que é um veículo. Uma espécie de “veículo em tese”.

Mas isso tudo tem um contexto. A dogmática jurídica prevalente normalizou — e quase já normatizou — o criterialismo. E a dogmática passa a ser criterialista, e também ela cria seus próprios conceitos criteriais — de impossível discussão fora dos critérios que a própria dogmática que cria os conceitos põe. Faz uma espécie de “leito de Procusto”. Um deles é o de que os tribunais superiores estabelecem enunciados-teses-precedentes para decidir casos no futuro. Como se fossem leis e normas gerais.

O que isto quer dizer? Simples: em vez de olhar para o passado, os tribunais buscam construir respostas antes das perguntas. Não discuto a boa intenção nisso. Quero apenas dizer que essa pretensão — anti epistemológica — sempre foi denunciada por autores como Fr. Müller — para falar só deste — no sentido de que é o positivismo que pretende dar respostas gerais — antecipadoras. De um outro modo, Castanheira Neves lutava contra isso também.

2. Obstáculos epistemológicos e o aguilhão semântico
Comecemos daí — e o faço com toda a lhaneza com que venho tratando dos debates jurídicos. Primeiro: no plano da dogmática jurídica, os resquícios do velho positivismo permanecem até entre aqueles que confundem o conceito de positivismo ao ignorarem o giro ocorrido pós-Hart. Para esses, positivismo parece ser apenas o velho paleojuspositivismo.

Daí — e aqui vem o segundo ponto — vem o problema do aguilhão semântico: vemos isso acontecer no exemplo do conceito de “flagrante”. Ora, o que é um flagrante em 2023? É o mesmo flagrante de, digamos, 1943? Ou 1964? Por que digo que isso é um problema tipicamente positivista? Porque o positivismo — e aqui está o ponto — ainda que não se saiba (ou se reconheça) positivismo, trata todos os conceitos jurídicos como se fossem criteriais, isto é, como se tivessem seus significados previamente fixados por critérios de convenção semântica. O aguilhão semântico é a crença de que todos os participantes de uma mesma prática, para que possam se entender, devem ter a mesma concepção sobre o que aquela prática é. Ser vítima do aguilhão semântico, diria Dworkin, é discutir se o Palácio de Buckingham é ou não uma casa. Ora, é uma abstração que trata os conceitos como se fossem meramente criteriais; como se fossem tipos naturais. Ora, temos x e y, então temos o conceito; se não temos x e y, não se trata do conceito, dirá a dogmática criterialista. Isso é ser vítima do aguilhão semântico porque os conceitos em direito são interpretativos. O direito é uma prática que deve ser lida em coerência e integridade.

Com todo o respeito acadêmico, permito-me dizer que, sem compreender esse fenômeno, a comunidade jurídica andará em círculos.

3. O caso do habeas corpus e da “formação de uma tese”
Enfim, anos a fio tento trazer reflexões acerca do valor da epistemologia (e dos obstáculos epistemológicos). Já são mais de mil colunas escritas aqui no ConJur.

O caso do habeas corpus e a busca por uma tese sobre racismo na abordagem policial que tramita no STF é um bom (ou mau) exemplo de como não se deve procurar respostas antes das perguntas.

Explicarei as razões nos seis tópicos abaixo:

1. Habeas corpus serve para resolver problema de violação de direitos. Pretender que um tribunal — mesmo sendo o Supremo Tribunal — busque todas as respostas antes das perguntas (os casos) é pedir demais do direito. Até porque o STF deve decidir sobre o que passou e não sobre o que vai passar.

2. Escrevemos, Cattoni, Diogo e eu: “A função do Poder Judiciário é levar os elementos e as circunstâncias do caso concreto a sério para, enfim, realizar o julgamento. A edição de enunciados com a pretensão de que se tornem, ex ante, precedentes e abarquem todos os casos futuros desconsidera o fato de que, em primeiro lugar, os precedentes são relevantes julgamentos realizados no passado que se tornam autoridade argumentativa — de forma contingencial — na discussão presente de um caso concreto. Em segundo lugar, desconsidera também que as ‘teses’, como textos normativos que são, não prescindem jamais do processo de interpretação/concretização que só se dará analisando os casos concretos e levando-os a sério”.

3. Levar o caso concreto a sério é conhecê-lo nas suas mínimas circunstâncias e o examinar. Porém, o ministro Fachin não conheceu (d)o caso. Se já é indevido fazer uma “norma geral” sobre um caso de habeas corpus, muito mais grave é estabelecer uma tese (norma geral) a parte de um caso que a corte sequer conhece.

4. De todo modo, insisto para que removamos os obstáculos epistemológicos da presente discussão e possamos responder: Que sistema de justiça é essa que leva um caso desses à Suprema Corte?

5. E, finalmente: que sistema de justiça é esse que necessita que a Suprema Corte faça uma “lei geral” para dizer que a polícia não deve fazer perfilamentos com conotação racial? E que sistema é esse pelo qual a Suprema Corte tem de dizer, em norma geral, que o MP não deva oferecer denúncias nesses casos porque a prova é nula? E que a justiça não deva condenar alguém nessas circunstâncias exatamente porque a prova é nula?

6. O que houve, afinal? Antes de fazermos normas gerais a partir do Poder que não é legitimado para tal (afinal, quem legisla é o outro Poder), não estaria na hora de repensarmos o nosso direito e o nosso sistema de justiça?

Numa palavra, amarrando os pontos. Imaginemos um caso em que o sujeito é multirreincidente. A lei impede a causa especial de diminuição de pena, de modo que a pena, havendo condenação por tráfico, partiria, independentemente da quantidade de narcóticos apreendidos, de 5 anos. A estes 5 anos (60 meses), acrescente-se 1/6 (da reincidência). Havendo causa especial de aumento, de 1/6 a 2/3, e assim a coisa vai aumentando… E o que está por trás do caso? “Tráfico” por 1,5g.

Reincidência de tráfico de 1,5 mostra a dura face do criterialismo. O que é um tráfico? O que é reincidência? Ah, o criterialismo para isso existe. E não existe. Porque, quando os critérios são ad hoc, podem mudar amanhã. Eis o busílis.

E até hoje a dogmática não criou critérios sólidos, robustos e intersubjetivos para reconhecer o princípio da insignificância. Precisamos falar sobre isso também!

Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.

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