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Pandemia de coronavírus e omissão das autoridades: pena de morte à brasileira

Por Cristiano Avila Maronna, Helena Fonseca Rodrigues e Luciana Boiteux

Que não falte coragem aos juízes que, na prática, decidirão quem vai ser solto (e sobreviver) e quem vai continuar preso

O Brasil possui a terceira maior população prisional do planeta, com mais de 850 mil presos, em um sistema que não comporta nem a metade desse contingente. A taxa de ocupação média é de 166%, porém em alguns estados esse número sobe para 230%. O STF declarou, em setembro de 2015, na ADPF 347, que nossas prisões são um estado de coisas inconstitucional, cenário de violação, massiva e persistente, de direitos fundamentais dos presos, consideradas falhas estruturais e a falência de políticas públicas —circunstância a reclamar a adoção, pela União, pelos Estados e pelo Distrito Federal, de medidas abrangentes, de natureza normativa, administrativa e orçamentária.

Desafortunadamente, essa declaração serviu apenas para editores criarem boas manchetes. Na prática, a União, os Estados e o DF nada fizeram e o Judiciário continuou a agir como se nada de errado houvesse em submeter pessoas presas a tortura, a tratamento desumano, degradante e cruel, justamente o oposto do que diz a Constituição. De setembro de 2015 a esta data, juízes e tribunais continuaram a atuar dentro da lógica do grande encarceramento. A proposta de “numerus clausus”, por meio da qual só seria possível o ingresso de alguém no sistema prisional se antes um preso for libertado, não foi acolhida.

Trocando em miúdos, os supremos magistrados reconheceram que nossos presos são submetidos à tortura sistemática, mas a prática judicial que possibilitou o superencarceramento permaneceu inalterada.

O mesmo ocorreu no caso do habeas corpus coletivo que pedia concessão de prisão domiciliar para mulheres presas, acusadas ou condenadas por crimes sem violência ou grave ameaça, gestantes ou com filho até 12 anos: no lugar de uma ordem com efeitos erga omnes, o tribunal decidiu “modular” a decisão, deixando a análise do cabimento do benefício ao “prudente arbítrio” do juiz de cada caso. Na prática, o que há são criativas justificativas para manter as mulheres presas, mesmo com o advento da Lei nº 13.769 de 2018.

Portanto, se já tínhamos uma pandemia de encarceramento no Brasil, produtora de graves e profundos danos à saúde dos presos e da sociedade, causado por uma política criminal perversa, populista e simbólica, referendada e, muitas vezes, até agravada, pelo Poder Judiciário, que reverbera o fetiche punitivista do senso comum, hoje estamos diante de uma nova encruzilhada: as condições já insalubres e inadequadas das prisões agora se tornaram mortais, pois muitos presos, especialmente os pertencentes aos grupos de risco, podem não sobreviver à pandemia do coronavírus e às degradantes condições que facilitam a transmissão de doenças infectocontagiosas no ambiente prisional.

Não bastassem todas as mazelas vividas pela população prisional, com destaque para o risco vinte e oito vezes maior de se contrair tuberculose, agora há grande chance de as unidades prisionais se transformarem em verdadeiras câmaras de gás.

É necessário e urgente reduzir o superencarceramento de forma rápida e eficaz para evitar essa tragédia anunciada e para isso é necessário que se cumpra e viabilize a aplicação da importante Recomendação nº 62 do Conselho Nacional de Justiça que, de forma responsável e humanitária, determinou medidas a serem adotadas pelos juízes de execução penal, tendo por foco em especial os grupos de risco e mais vulneráveis.

A maioria delas são medidas já previstas em lei, que já deveriam ser aplicadas no cotidiano, como por exemplo, as que envolvem adolescentes em conflito com a lei, para os quais a Constituição prevê a efetivação do princípio da proteção integral, devendo ser preferencialmente aplicadas medidas socioeducativas em meio aberto, bem como serem revistas as decisões que determinaram a internação provisória, devendo ser liberados aqueles que estão custodiados por fatos análogos a crimes praticados sem violência ou grave ameaça, adolescentes grávidas, mães ou responsáveis por crianças até 12 anos, indígenas e portadores de alguma deficiência, aqueles que estão em estabelecimentos superlotados, sem assistência médica e todos que estiverem em grupos de risco.

Que não falte coragem aos juízes que, na prática, serão os que vão decidir quem vai poder ser solto (e sobreviver) e quem vai continuar preso (e submetido a um elevado risco de morrer).

Esperamos que os magistrados com atuação nas áreas criminal e da execução penal em todo o país ajam rapidamente para libertar homens e mulheres encarcerados, e que também o Supremo Tribunal Federal e o CNJ fiscalizem se os juízes estão cumprindo as diretrizes humanitárias em prol da liberdade. Em especial, lembramos daqueles presos pela Lei de drogas, crimes contra a saúde pública, que hoje representam 40% das pessoas privadas de liberdade, a maioria negros, pobres, presos desarmados, sozinhos e com pequenas quantidades de drogas, como apontam várias pesquisas.

A liberdade se tornou uma questão de saúde pública, e é necessário desencarcerar para proteger a saúde pública e a vida dos presos e do restante da sociedade, como medida preventiva de contenção da pandemia de Covid-19, inclusive para proteger igualmente os agentes penitenciários, e as famílias destes e dos encarcerados. A única forma de evitar a morte em massa nas prisões é tratar a liberdade como questão de saúde pública.

Artigo publicado originalmente na Folha de S. Paulo.

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