De tédio ninguém morre neste país. Mal terminou a longa batalha pela declaração espelhada da constitucionalidade do artigo 283 do CPP e lá vem confusão. Quem perdeu não aceitou o resultado de 6 a 5. E quer mudar as regras do jogo.Até as pedras sabem que a CF estabelece em seu artigo 60 as condições constitucionais de possibilidade de reforma dela mesma (limites materiais).
Assim, a Constituição proíbe que seja objeto de deliberação qualquer proposta de emenda tendente a abolir “direitos e garantias individuais”. Isto quer dizer que, por meio de emendas à Constituição, os direitos e garantias fundamentais podem ser ampliados e desdobrados, mas — muita atenção — jamais abolidos, direta ou indiretamente, e, assim, não podem ser restringidos, porque restrição é também, para efeito do disposto no art. 60, § 4º, IV da Constituição, abolição violadora do princípio constitucional de proibição de retrocesso. Toda a boa doutrina constitucional sustenta exatamente isso.
E ainda mais quando uma restrição, direta ou indireta, implique subversão do próprio sentido normativo do direito e da garantia individuais, o que caracteriza, exatamente, aquilo que a melhor teoria constitucional chama de FRAUDE À CONSTITUIÇÃO, isto é, a tentativa fraudulenta de jogar a Constituição contra ela mesma, seja pela interpretação errônea, seja por modificação legislativa inconstitucional, mediante emendas.
Pois hoje tramitam no Congresso duas propostas de emenda à Constituição que pretendem subverter o sentido normativo da presunção de inocência até o trânsito em julgado da sentença penal condenatória (art. 5º, LVII, da Constituição).
A primeira tramita na Câmara. É a PEC n. 410/18, que propõe alterar diretamente o inciso LVII do art. 5º, a fim de possibilitar a antecipação da pena após condenação em segunda instância, mesmo quando essa decisão esteja pendente de recursos e, por óbvio, não tenha transitado em julgado. Da redação “ninguém será considerado culpado até o trânsito em julgado de sentença penal condenatória”, querem mudar para “ninguém será considerado culpado até a confirmação de sentença penal condenatória em grau de recurso”. O que implicaria, em termos práticos, inverter o ônus argumentativo da acusação para a defesa, esvaziando a presunção de inocência. Mais que restringe, a PEC mutila a garantia.1Absolutamente inconstitucional, pois.
A PEC 410 parte do pressuposto constitucionalmente incorreto, equivocado e absurdo, segundo o qual se poderia restringir e, assim, subverter a presunção de inocência, invertendo o ônus argumentativo, em base numa concepção normativamente fraca segundo a qual direitos devem ceder a argumentos políticos, porque direitos, em última análise, não passam de valores ou bens entre outros, ponderáveis. Uma ponderação ornitorrinco, bicho deveras esquisito. Algo que nem mesmo Alexy concordaria, já que, para ele, direitos individuais possuem precedência sobre supostos bens coletivos 2. Coisa óbvia, ululante.
Já a segunda PEC, de número 5/2019, proposta pelo Sen. Oriovisto Guimarães e outros, pretende, diferentemente de restringir por meio de uma alteração da literalidade do inciso LVII do artigo 5º, da Constituição, a garantia fundamental da presunção de inocência até o trânsito em julgado. O senador Oriovisto faz uma trucagem hermenêutica. Quer dar o drible da vaca na Constituição.
Explicaremos. A PEC 5/2019 propõe introduzir uma regra geral, por meio do acréscimo a um inciso, de número XVI, ao artigo 93, da Constituição, que trata, nos termos de seu caput, da “Lei complementar, de iniciativa do Supremo Tribunal Federal , disporá sobre o Estatuto da Magistratura, observados os seguintes princípios”, com a seguinte redação: “XVI – a decisão condenatória proferida por órgãos colegiados deve ser executada imediatamente, independentemente do cabimento de eventuais recursos”. Entenderam? Difícil, não? Como faz o quero-quero, a PEC do senador põe o ovo em um lugar e vai cantar em outro.
Pela exposição de motivos, a PEC n. 5 parte do pressuposto segundo o qual haveria um excesso de vias recursais, gerando uma “situação de preocupante insuficiência da aplicação da lei penal no país, dando à população uma grave sensação de insegurança e de impunidade”. Essa PEC pretende ser uma resposta a essa situação. Ou seja, atira fora a água suja…com a criança dentro. E, assim, quer “dar efetividade às condenações penais por órgãos de segunda instância. Com a alteração ora pretendida, as condenações penais em segunda instância terão imediata aplicabilidade”.
Não há, portanto, na PEC de Oriovisto, nenhuma referência direta ao inciso LVII, do art. 5º, da Constituição, apenas a pretensão de desdizer o que acabou de dizer o STF.
De duas uma: ou essa proposta de PEC é absolutamente inócua ou é uma grande fraude. Tertius non datur. Explicamos:
a) Inócua porque genericamente institui a regra geral pela qual as decisões condenatórias proferidas por órgãos colegiados devem ser executadas imediatamente, independentemente do cabimento de eventuais recursos. Ora, como como se sabe, o inciso LVII do art. 5º, LVII, da CF, porque especial, prevalece sobre essa pretensa regra geral. Por isso, insistimos, inócua, porque não altera nada. A montanha parirá, a olhos vistos, um ratinho.
b) Ou, então, esta(re)mos diante de verdadeira fraude à Constituição. Sim, pois se por meio do acréscimo de um inciso como esse se pretende, segundo a própria exposição de motivos da PEC, combater politicamente uma suposta sensação de impunidade e de insegurança ao atribuir às condenações em segunda instância (e ao júri), colegiadas, imediata aplicabilidade, sem mesmo referência direta alguma ao disposto no artigo 5º, LVII, da Constituição, estaremos, justamente, diante de um caso claro de fraude à Constituição, da pretensão juridicamente abusiva de jogar a Constituição contra a Constituição, restringindo e violando uma garantia fundamental, por meio de uma via indireta.
Em resumo, as duas PECs são inconstitucionais. A de n. 5/2019 é apenas mais absurda, porque estamos diante do uso de um subterfúgio ingênuo — ou apenas esperto — para violar garantia fundamental, pretendendo criar uma falsa antinomia no interior do sistema normativo, todavia facilmente superável por meio de um raciocínio jurídico mais do que tradicional no Direito ocidental, porque desde os romanos sabemos que “regra especial prevalece sobre regra geral”, ainda que a regra geral seja posterior.
Ou seja, uma PEC como essa seria aplicável a todas as decisões condenatórias, mas não exatamente às penais, ainda por força do artigo 5º, LVII, da Constituição. Trata-se, portanto, de um expediente fraudulento, e, ainda por cima, inócuo!
Por fim, sempre é bom trazer a voz de alguém conservador como o professor Ives Gandra Martins. Disse ele, em artigo denominado Supremo não pode relativizar presunção da inocência, que:
“Não sem razão, o constituinte tornou cláusula pétrea a presunção de inocência, não se justificando que possa o Supremo Tribunal Federal arvorar-se em poder Constituinte originário — já que derivado não poderia ser, diante da cláusula pétrea do inciso LVII do artigo 5º — e declarar que, onde escrito está “será considerado culpado após o trânsito em julgado” deve-se ler “será considerado culpado após decisão de segunda instância”, devendo sua pena ser aplicada desde então”.
Mais claro, impossível. Nem o Supremo e nem o Parlamento podem relativizar a presunção da inocência. Cláusula pétrea! Simples assim. E é bom que os protagonistas das PECs e os demais parlamentares deem um voto de confiança à ciência jurídica. Ouçam a doutrina. Ouçam os constitucionalistas. Essa gente estuda isso a anos. Escrevem livros. Se esforçam. Eles não querem o mal do país. Só querem preservar o Estado Democrático de Direito. Não façam nada errado, consultem a Constituição e aos constitucionalistas.
Além do mais, o Parlamento deve saber que não se faz lei com raiva. Nem leis e nem PECs podem ser de conveniência. Devem ter prognose. Se cada vez que for contrariado, o parlamento resolver se vingar (e isso está nítido pelo discurso ressentido que se ouve em relação à decisão do STF), estará instaurada a balbúrdia, porque o STF poderá declarar inconstitucional a alteração e assim criar um moto contínuo, prejudicial à democracia.
Existe uma caixinha de vidro em uma livraria em Buenos Aires. Dentro dela dorme um exemplar da Constituição. Na tampa, o recado: em caso de crise, quebre o vidro.
Aqui podemos dizer: em caso de tentativa de fraude ao Estado de Direito, quebre o vidro e use a Constituição!
Artigo publicado originalmente no Consultor Jurídico.
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