Por Ricardo Lewandowski
Artigo originalmente publicado na edição desta sexta-feira (18/6) do jornal Folha de S.Paulo.
Saber quem comanda as Polícias Militares é uma pergunta que não se restringe apenas à questão da responsabilidade última pela formulação das políticas de segurança pública, mas diz respeito ao próprio cerne da forma federativa de Estado, adotada por nós desde a proclamação da República, em 1889, e que figura como cláusula pétrea da atual Constituição.
Em interessante estudo denominado “Pequeno Exército Paulista”, Dalmo de Abreu Dallari, a propósito, relata que, quando a economia paulista começa a desenvolver-se nas últimas décadas do século 19, “ocorre a modernização e o crescimento da Força Pública do estado de São Paulo, elemento que se tornou decisivo para impedir intervenções federais que foram muito frequentes em outros estados da Federação”.
De fato, a corporação teve um papel decisivo na Revolução Constitucionalista de 1932, impedindo, ao menos temporariamente, que o governo central tivesse êxito em esmagar a autonomia estadual. No entanto, tal acabou ocorrendo em 1937, com o advento da ditadura getulista, e depois novamente a partir de 1964, com a implantação do regime militar.
Em 2 de julho de 1969, conforme lembra Dallari, por meio do decreto-lei 667, assinado pelo general Costa e Silva e ainda hoje vigente, “o governo federal colocou todas as Polícias Militares sob o controle do Ministério do Exército”. Na sequência, o governador paulista, Abreu Sodré, extinguiu a Força Pública mediante o decreto-lei 217/1970, transformando-a em Polícia Militar.
A Constituição de 1988, todavia, recolocou as Polícias Militares sob o comando das autoridades civis, estabelecendo com minúcias, nos artigos 42, 142 e 144, a sua disciplina jurídica. Neles consta que os integrantes dessas corporações são servidores militares dos entes federativos, organizados com base na hierarquia e disciplina, cabendo-lhes a polícia ostensiva e a preservação da ordem pública.
Como militares que são, não podem filiar-se a partidos políticos e sindicatos, sendo-lhes proibido fazer greve. E, muito embora constituam forças auxiliares e reserva do Exército, subordinam-se, assim como os bombeiros militares, aos governadores — os quais, inclusive, conferem aos seus oficiais as respectivas patentes.
Apesar de classificadas como forças auxiliares e reserva do Exército, o recrutamento dessas milícias locais pela União só pode ocorrer em situações extraordinárias, como estabelece o próprio decreto-lei 667/1969, em seu artigo 3º, quais sejam, “em caso de guerra externa ou para prevenir ou reprimir grave perturbação da ordem ou ameaça de sua irrupção”. Tais situações coincidem com aquelas que autorizam o estabelecimento do estado de defesa e do estado de sítio, cuja decretação, contudo, sujeita-se à anuência do Congresso Nacional, nos termos dos artigos 136 e 137 da Lei Maior.
A competência privativa da União, prevista no artigo 22 para legislar sobre normas gerais de convocação e mobilização das polícias e bombeiros militares, não tem o condão de elidir o princípio basilar da democracia, segundo o qual todo o poder emana do povo, que o exerce por meio de representantes eleitos.
Por isso, qualquer ato do governo federal que retire ou atenue o controle dos governadores sobre essas corporações, salvo nas hipóteses excepcionais acima indicadas, e respeitadas as salvaguardas pertinentes, não só contrariaria disposição constitucional expressa como também vulneraria o próprio princípio federativo, concebido justamente para impedir a concentração do poder — no caso, do poder armado.
Artigo publicado no Consultor Jurídico.
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