Jogar uma culpa eterna nas costas da pessoa que teve contra si a poderosa máquina do Estado é inverter o ônus da cidadania
Na série “Games of Thrones”, o personagem Ben Stark alerta para a malandragem do uso das orações adversativas: “Nada que alguém diz antes do ‘mas’ realmente conta”.
Vejamos a frase de reportagem da Folha que pergunta: “Mas como Lula é inocente sem ter sido inocentado”? E, na sequência, induz a um mau juízo: “Críticos e apoiadores de Lula têm se aproveitado de sutilezas dos termos jurídicos para distorcer o sentido de decisões e institutos legais empregados na Lava Jato”.
Que nós saibamos, apoiadores de Lula não se aproveitam de nenhuma sutiliza de termos jurídicos. Isto porque é possível demonstrar, cientificamente, que Lula é inocente e que foi inocentado. Nada de “é sem ter sido”.
Quem se aproveita da sutiliza de termos jurídicos (sic) é quem deseja tirar o mérito da inocência de Lula e com isso apagar os seus méritos no processo, os da sua defesa, as injustiças que sofreu e os quase dois anos que ficou preso injustamente. Esse é o ponto.
Então, por qual razão todas as manhãs o ex-presidente tem de enfrentar a “filosofia do mas, porém, contudo”? Por qual razão setores da imprensa insistem em não aceitar o que diz a ciência jurídica?
Por qual razão persiste a oração adversativa “mas não foi inocentando”?
Ora, sequer é necessário alguém ser inocentado para ser inocente. Inocentada é a pessoa que passou por um processo criminal ileso, em que, mesmo que não haja sentença absolutória, o resultado do processo é absolutamente equivalente.
Imaginemos alguém preso por engano, “reconhecido” por fotografia. Tenta em todas as instâncias demonstrar que é inocente (há milhares de casos assim). Depois de confirmada sua condenação –erradamente– pela segunda instância e não alterada pelo STJ, vem o STF e descobre que o juiz que condenou a pessoa era incompetente e, pior, agiu todo o tempo de forma parcial, falcatruando a instrução processual.
Então, o Supremo anula o processo. Como tudo era nulo, o STF não pode dizer que o réu era inocente. O Ministério Público ainda tenta pegar o processo e, reciclando as “provas”, bate de novo na trave. E, de novo, o Judiciário não pode dizer que a pessoa, mal presa, mal denunciada, mal condenada, era inocente.
Aumentem esse exemplo, colocando mais de um processo, sendo que, além do juiz parcial e incompetente, teve prescrição.
Ok? Essa pessoa é inocente, mas não foi inocentada? Como assim, se não teve a chance de ser inocentada, porque, escandalosamente, o juiz era incompetente e parcial?
Como alguém ousa dizer que um processo anulado ou prescrito deixa nódoas na vida da indigitada e infeliz pessoa que foi vítima de erro judiciário? Sim, porque ter juiz parcial é erro crasso da Justiça. É o pior pecado. É heresia jurídica.
É errado dizer que Lula é inocente e colocar a ressalva adversativa “mas não foi inocentado”.
Prescrição e nulidades absolutas fazem os processos desaparecerem. O estado de inocência é cristalino. A culpa das nulidades não é do réu. É do juiz. Se Lula tivesse provocado as nulidades, delas não poderia se aproveitar. Isso é acaciano. O Direito, gostemos ou não, é assim.
No mais, fora de Curitiba não houve uma condenação sequer. E por ali, é bom que se diga que todas as acusações levianas foram rebatidas com farta documentação pela competente defesa técnica do ex-presidente.
Para os que precisavam “ver para crer”, recomendamos o excelente documentário de Maria Augusta Ramos, premiada cineasta brasileira.
Já nos cinemas, “Amigo Secreto” convida a mídia brasileira, que ajudou a alimentar o monstro (lava-jatismo) que pariu o Bolsonarismo, a fazer uma necessária autocrítica do papel que teve na cobertura jornalística da operação mais desastrosa da história do país.
Jogar uma culpa eterna nas costas da pessoa que teve contra si a poderosa máquina do Estado, composta por procurador não isento, juiz incompetente e parcial, é inverter o ônus da cidadania. É como culpar à vítima por não ter se esquivado da bala.
Lula, ao fim e ao cabo, é culpado por ser só inocente. Poxa. Isso é pouco?
Artigo publicado originalmente na Folha de S.Paulo.
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