Por Sarah Merçon-Vargas e Danyelle Galvão
Por razões que desconhecemos, algumas ideias no Direito são pouco discutidas academicamente. O que não quer dizer que sejam pouco mencionadas ou pouco reproduzidas. A “independência de instâncias” é um desses redutos pouco explorados. O que isso significa, exatamente? Que os ramos penal, civil e administrativo [e outros] do Direito são autônomos? Que o resultado de um não influencia o outro? Que os agentes de atos ilícitos devem ser processados e punidos em diferentes instâncias pelos mesmos fatos? Para quem tem formação jurídica, é difícil entendê-la; o mais complexo, porém, é tentar explicá-la aos não formados em Direito.
Explicar que alguém pode ter que responder, pelos mesmos fatos, ao mesmo tempo, a processos criminais, administrativos, punitivos não penais, civis etc, por que são instâncias independentes. Explicar que o resultado de um processo pode não se repetir no outro. Explicar que, possivelmente, serão necessários advogados diferentes para esses processos. Que pode haver condenação em todos eles. Ou em alguns. Ou em nenhum.
Do ponto de vista da ciência jurídica, compreender o significado e o alcance dessa ideia é um grande desafio. Faz sentido estudá-la academicamente para se avaliar em que medida e de que maneira a tal da independência de instâncias poderia conviver com a garantia constitucional do ne bis in idem [=proibição de novo julgamento pelos mesmos fatos]. Um baita tema. Mas não é esse nosso foco.
O objetivo aqui é bastante mais modesto. Queremos chamar a atenção para situações a que se pode chegar quando se extrema a ideia de “independência de instâncias”; quando a independência vai tão longe a ponto de permitir que uma instância funcione como se a outra simplesmente não existisse. Como se não fosse o mesmo Poder Judiciário. Como se não fossem os mesmos fatos. Como se não fossem os mesmos acusados ou o mesmo dano a ser reparado. E, em alguns casos, como se os delatores já não tivessem ressarcido valores.
Há casos em que o Ministério Público pede, na seara criminal, a fixação de um valor a título de reparação civil de danos pelos fatos criminosos e, em razão disso, pleiteia e obtém o bloqueio de bens para garantir o futuro pagamento da indenização pelos acusados. Com base nos mesmos fatos, pode ainda o órgão ministerial ajuizar, em paralelo, ação de improbidade administrativa com pedido de ressarcimento de danos, cumulada com requerimento de indisponibilidade de bens para o mesmo fim. Uma vez concedidos os pleitos, serão dois bloqueios judiciais de bens. Fácil notar também que são duas searas diferentes – e, portanto, dois processos diferentes – em que se discute a reparação civil de danos pelos mesmos fatos. Neste caso, a independência das instâncias poderia autorizar dois processos e dois pagamentos de indenização, pelos mesmos fatos, pelos mesmos danos? Nos parece que não.
Se for possível admitir a concomitância de ambos os pleitos – o que é, em si, questionável, à luz da garantia do ne bis in idem – é evidente que eventuais valores fixados na esfera criminal devem ser considerados e descontados no âmbito cível, e vice-versa, sob pena de a mesma conta ser paga duas vezes e de haver enriquecimento ilícito do Estado. E o que é grave, por ordem do Poder Judiciário.
Outra situação peculiar é quando um dos acusados faz um acordo de colaboração premiada ou a empresa de que é sócio firma acordo de leniência e assume a obrigação de ressarcir os danos causados. Os valores pagos por essas pessoas – físicas ou jurídicas – devem ser descontados dos valores cobrados em eventual ação de improbidade administrativa posterior (mais uma vez, se é que seria possível se admitir um novo pleito reparatório relativamente aos mesmos fatos e ao mesmo dano).
Um exemplo boêmio ilustra bem a situação. É como sair beber com os amigos, precisar ir embora mais cedo, pagar o que consumiu e deixar a “sua via do cartão” na mesa para, ao final, descontar o valor pago da conta a ser liquidada pelos demais. Se, ao final da noite, ao fechar a conta, o garçom ignorar que parte já foi paga, o bar receberá mais do que deveria, o que não é correto. Mas, neste caso, é possível reclamar, mostrar a “via do cartão” do amigo e exigir que o desconto seja feito. Mas e se não houver uma “segunda via do cartão”, por esquecimento ou outra razão qualquer, para ser deixada na mesa e os amigos não tiverem certeza do quanto foi adiantado pelo que foi embora? O desconto deve ser feito da mesma forma e cabe ao dono do bar fazê-lo da maneira mais transparente possível. Caso contrário, a conta [ou parte dela] será paga mais de uma vez.
O exemplo pode parecer desconectado da realidade judicial, mas não é. Se as empresas ou seus representantes firmaram acordos com as autoridades judiciais para ressarcimento de danos e se há um novo pedido de ressarcimento de danos – o que é, em si, discutível – esses valores devem ser, no mínimo, descontados, sob pena de a conta ser paga mais de uma vez, exatamente como no bar. E não só. No contexto de um dano alegadamente causado por várias pessoas, o valor já pago por colaboradores ou lenientes deve ser informado aos demais acusados, da forma mais transparente possível, sob pena de a conta ser paga duas vezes [ou mais] e de haver uma disparidade brutal de armas entre acusação e defesa.
Nos parece ser absolutamente inconcebível que, apenas por serem “independentes”, as instâncias não possam – ou não devam – dialogar. Não se pode, a pretexto de se ter uma instância independente, exigir que o acusado pague duas vezes para reparar um mesmo dano. Ou, no outro viés, conferir ao lesado dois ressarcimentos de um mesmo prejuízo. As esferas podem ser independentes, mas não os fatos, os réus e o dano.
Em boa hora, o substitutivo ao Projeto de Lei n.º 10887/2018, aprovado na Câmara dos Deputados e em tramitação no Senado, que altera a Lei de Improbidade Administrativa inclui o parágrafo 6º no artigo 12, em que se prevê, de forma expressa, que em caso de lesão ao patrimônio, a reparação do dano deve deduzir o ressarcimento ocorrido nas instâncias criminal, cível e administrativa tendo por objeto os mesmos fatos. Pelo visto, é mesmo necessário que isso seja afirmado normativamente.
Artigo publicado originalmente em O Estado de S. Paulo.
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